Texto Andreia Sofia Silva | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Primeiro era a Dulce “que se transformava num Grémio Literário”, os dois filhos a chatear, e depois as mãos de Eurídice, muito bonitas e fascinantes, mas que levaram o escritor nunca lido Gracindo Tavares à desgraça. Em Timor-Leste, uma jovem ousou sonhar tirar um curso na universidade e ir além dos receios da irmã. Em São Tomé e Príncipe, uma mulher maltratada e traída pelo marido decidiu dar-lhe uma lição.
Todas estas histórias contadas em português subiram ao palco do Teatro D. Pedro V entre os dias 16 e 21 de Outubro, no âmbito da segunda edição da Mostra de Teatro dos Países da Língua Portuguesa (Teatrau), no âmbito da Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa promovida pelo Fórum Macau. O público pôde assistir às diferentes linguagens cénicas de cinco companhias de teatro, vindas de Macau, Portugal, Timor-Leste, Moçambique e São Tomé e Príncipe, os únicos países do espaço lusófono que faltavam participar depois da primeira edição do evento, em 2014, que trouxe a Macau projectos do Brasil, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.
João Laurentino Neves, director do Instituto Português do Oriente (IPOR), traçou um balanço positivo de um evento que, desta vez, se pautou por algum desequilíbrio em termos de experiência das companhias. “Tivemos duas companhias experientes e três companhias que estão a dar os primeiros passos em áreas diferenciadas. Temos de perspectivar os estágios de desenvolvimento destes países na área da dramaturgia, e é o que estamos a fazer: a conferir oportunidades para essas companhias se mostrarem e aprenderem com outras experiências. É transformarmos Macau num espaço onde esses encontros, entre os que já fazem teatro há muito tempo e aqueles do teatro amador, possam levar a um intercâmbio de experiências.”
O projecto Tomato Leste, de Timor-Leste, impulsionado pela professora espanhola Mireia Clemente, constitui um exemplo do amadorismo de que fala João Laurentino Neves. Com a peça Babalú, as actrizes Olga Freitas e Esménia Ximenes pisaram pela primeira vez um palco profissional. Estudam português na Universidade Nacional de Timor-Leste e apaixonaram-se pelo teatro assim que viram o anúncio para a criação de um grupo.
“Gosto de teatro porque sempre vi na televisão, mas foi a primeira vez que pude fazer uma peça. Em Timor-Leste não há muitos teatros. Pela primeira vez apresentamos uma peça num palco e estou sem palavras. É bom porque temos todas as facilidades para actuar. Foi uma boa experiência e oportunidade”, contou Olga Freitas.
Para Laurentino Neves, este projecto universitário de jovens que também davam os seus primeiros passos na língua portuguesa, trouxe a Macau um “projecto arrojado”, que revela muito da realidade timorense. “Deram o seu melhor e nós também aprendemos alguma coisa.”
Já a companhia portuguesa Seiva Trupe, do Porto, anda nestas lides há 42 anos. No entanto, esta foi a primeira actuação em Macau, depois de terem passado por um processo concorrido de selecção através da Fundação Oriente. A escolha do monólogo As mãos de Eurídice era óbvia, por, num dado momento da história, as personagens deambularem pelos casinos de Macau.
“Estreámos esta peça no ano passado, no Porto, e já percorremos vários teatros em Portugal. Mas esta foi a primeira vez que saímos do país. Esta peça enquadra-se, fala de jogo e as personagens inclusivamente passaram por Macau. A tragédia acontece em Macau, e não foi nenhuma adaptação, originalmente era assim. Tivemos duas casas bem compostas e as pessoas reagiram bem”, disse o actor Rui Spranger, que considerou ainda importante a realização de um projecto como o Teatrau. “É um projecto interessante, do ponto de vista da língua e do ponto de vista da cultura, e até da linguagem cultural, com esse confronto através das várias linguagens”, apontou.
O grupo Os Criativos, de São Tomé e Príncipe, trouxeram a Macau a peça O Médico, que misturou o drama de uma mulher maltratada pelo marido com laivos de comédia que acabaram por divertir a plateia. De Maputo, Moçambique, chegou A Cavaqueira do Poste, da Companhia de Teatro Lareira Artes. Aqui, problemas actuais como a fome a miséria são retratados através das personagens de Calvino, um homem cego, e Tendeu, que não tem braços. Ambos são sem-abrigo e têm um poste como casa.
Aposta no bilinguismo
A primeira peça em chinês e português apresentada no Teatrau surgiu da fusão de dois grupos. O recém-criado Macau ArtFusion e a companhia Hiu Hok, com mais de 40 anos de vida, juntaram-se e fizeram A Cegueira , que se baseia num texto em chinês intitulado A Line, de Anthony Chan, e que foi adaptado para português por Fernando Sales Lopes e para chinês por Billy Hui.
Em palco, um pastor e uma pastora são muito amigos e um jogo acaba por destruir essa amizade. “É uma brincadeira, mas depois acaba por não o ser, porque as pessoas assumem de tal maneira o seu território que começa a haver um confronto e uma total desconfiança entre eles, o que é mais grave. Eles que são amigos chegam a odiar-se. Esta é uma história transversal ao que acontece na sociedade, em que o poder e uma série de coisas levam a isso”, explicou Fernando Sales Lopes, que faz ainda uma segunda interpretação da história: “Também podemos fazer uma leitura de Macau, sobre o facto dos chineses e portugueses serem amigos ao longo de séculos, mas na verdade existir um grande desconhecimento uns dos outros.. Um não conhece a cultura do outro, há uma desconfiança, que leva por vezes a mal-entendidos. É esta a mensagem da peça.”
Com dois actores locais – ela tradutora de português e ele apenas falante de cantonês em palco – A Cegueira incorpora vários elementos da cultura lusa. “Utilizamos excertos do livro Ensaio sobre a Cegueira, do nosso Nobel [José Saramago], porque se encaixa bem nesta peça. No fim de contas isto é uma cegueira. Temos ainda música da Amélia Muge”, referiu Fernando Sales Lopes.
Laura Nyogeri, que dirigiu a peça ao lado de Fernando Sales Lopes e Billy Hui, explica que esses elementos acabaram por funcionar bem num projecto que pretende misturar culturas diferentes. “Acabou por ajudar a passar a mensagem de outra forma. A música, a literatura e o teatro juntos, combinando o chinês e o português, levou a uma fusão das culturas”, apontou. Laura Nyogeri acredita que esta mostra de teatro vai levar com que mais pessoas apostem na dramaturgia em Macau. “Todas estas iniciativas são importantes para criar o bichinho e promover, porque existem muitas pessoas em Macau com o gosto pelo teatro e vontade de fazer.
Depois desta primeira experiência nas duas línguas oficiais da RAEM, o director do IPOR confirmou que o objectivo da terceira edição do Teatrau é apresentar todas as peças nas duas línguas. “O nosso grande objectivo é que no próximo ano as peças possam ser todas bilingues, e já encontramos meios técnicos para o fazer. Metade da sala na peça de Macau era um público não português, e é um facto que nos agrada muito, que aqueles que estão a aprender português possam ter aqui uma forma diferente de aprendizagem.”
Um espaço de formação
Apesar do sucesso do projecto, muitas das peças da segunda edição do Teatrau não tiveram casa cheia, isto apesar das entradas serem gratuitas. “Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo em Macau. O teatro não é fácil, tivemos uma assistência muito boa com a companhia Seiva Trupe. É natural que as pessoas privilegiem as duas companhias que são mais sólidas e experientes, como a companhia de Macau e a portuguesa”, rematou.
Apesar de ainda não haver planos concretos para a terceira edição, o Teatrau pretende, mais do que mostrar teatro, constituir-se como um espaço de formação de actores e de encenadores. “Tenho chamado a atenção para os constrangimentos e a dificuldade que é reunir gente de todo o mundo. Temos companhias curtas, com poucos actores, mas essa é também uma aposta dessa mostra. Tornarmos esta semana cultural numa mostra de exercício de actor, para vermos como o trabalho do actor e do encenador é muito importante”, explica Laurentino Neves. “Ao trazermos isto para Macau estamos a ir ao encontro daquilo que é a finalidade da Semana Cultural, e também aquilo que o Executivo da RAEM procura, que Macau se afirme como um sítio para as várias expressões artísticas. É com grande satisfação que acolhemos estes grupos.”