“Há cada vez menos conhecimento sobre o que aconteceu no passado. [As autoridades] não sabem como lidar com a história, com o passado colonial como o de Ferreira do Amaral. Acho que devíamos recuperar a estátua, pô-la num museu, ou assim”, afirmou o presidente da Associação de Sociologia de Macau, em entrevista à agência Lusa, referindo-se a um dos mais polémicos governadores da história de Macau, visto pelos chineses como símbolo do poder opressor português.
João Maria Ferreira do Amaral liderou o território entre 1846 e 1849, quando foi assassinado. No início dos anos 1940 foi erguida no centro da cidade uma estátua em sua homenagem, em que o governador empunhava um chicote sobre um grupo de chineses, que foi retirada em 1992. “Devemos compreender a avaliar o legado colonial, o que foi bom, o que foi problemático. E se houve algo bom, devemos manter esse legado e até expandi-lo”, defendeu o autor do livro “Macau History and Society”, que analisa a história do território, com particular foco no desenvolvimento identitário de Macau.
O académico aponta a “tradição religiosa” como um exemplo de um “legado positivo”, tal como a relativa democratização, refletida na possibilidade de eleger uma parte da Assembleia Legislativa.
Apesar de salientar o sistema eleitoral como a principal falha dos portugueses durante as negociações que antecederam a transição – ao não insistirem para que a Lei Básica de Macau previsse o sufrágio universal, como aconteceu em Hong Kong –, Hao concede que “a democratização [existente] é um legado português”, que deve ser valorizado e desenvolvido, acabando com deputados nomeados pelo chefe do Executivo ou, pelo menos, reduzindo o seu número.
Segundo o académico, considerando “a longa história de totalitarismo” da China, é necessário em Macau “algo que contraponha essa tradição”, ou seja, o legado dos portugueses, que transporta a tradição europeia “de liberdade e direitos humanos”.
Hao não hesita em reconhecer que a relação entre chineses e portugueses foi sempre de desencontros, mantendo-se assim até hoje. “Os portugueses não tiveram uma boa prestação no passado porque estiveram sempre separados da comunidade chinesa. É uma pena, até depois da transferência podia ter havido mais diálogo”, aponta.
Para o sociólogo, Macau precisa de “empreendedores culturais” que estabeleçam essa ponte. “Aqui não temos essas pessoas, todos estão a tratar das suas coisas, não procuram as outras comunidades”, diz.
Ainda assim, 500 anos de presença portuguesa deixaram marcas no tecido social, mesmo após o retorno à China. “Diria que as pessoas têm orgulho em ser de Macau, acreditam que são diferentes dos chineses da China continental. São mais abertas politicamente, menos controladas pelo Governo, mais rebeldes. Também há rebeldes na China, mas são muito poucos, proporcionalmente. Consideram-se mais progressistas e isso faz parte do legado português”, diagnostica.
No entanto, o desconhecimento da história acaba por criar um distanciamento entre o conceito e a realidade, de que o património classificado pela UNESCO é símbolo: “As pessoas valorizam muito o património e têm orgulho nele. Agora, em que medida o compreendem ou integram na sua forma de viver, isso é outro assunto”.
As pessoas de Macau – a que chama ‘macauans’ (na expressão em inglês) por oposição ao termo ‘macaense’ que reflete a mistura étnica entre portugueses e chineses – “estão numa crise de identidade”.
A esmagadora maioria identifica-se como chinesa, mas tem em conta que isso acarreta muitas facetas: “As pessoas têm mesmo de pensar em quem são, politicamente. Se respondem que são chineses, de que tipo? Identificam-se com o Governo chinês ou com valores universais? São a favor do centralismo, de ditadura ou de democracia? Que tipo de China perspectivam?”
O sociólogo defende que há pouca identificação com a República Popular como entidade política e o que o princípio ‘Um país, dois sistemas’ é acolhido. Ao abrigo deste princípio, as políticas socialistas em vigor no resto da China não se aplicam em Macau e Hong Kong (exceto nas áreas da Defesa e Relações Externas), permitindo um alto grau de autonomia. “É o único mecanismo que os protege”, sublinha.
Em termos de valores, Hao identifica uma juventude em Macau mais preocupada com a democracia, em grande parte por influência de Hong Kong e Taiwan, ambos territórios com relações conturbadas com a China. “Isso reflectiu-se num inquérito sobre a mudança de atitudes em relação à China. Identificam-se menos do que antes, menos do que em 1999 [quando a administração deixou de ser portuguesa] e até do que há uns anos”, explica.
O académico acredita que a comunidade portuguesa poderia ter um papel relevante no esforço de democratização. “Se houvesse diálogo entre grupos, entre os que acreditam na democracia, por exemplo, podia delinear-se uma estratégia para lutar por isso”, afirma o investigador, sublinhado como seria benéfico que portugueses e chineses cooperassem para “fazer um trabalho sério” de “investigação sobre Macau”.
Apesar do seu olhar otimista quanto ao futuro, identifica sinais de ‘continentalização’ que considera preocupantes, como o caso dos dois académicos – Éric Sautedé e Bill Chou – que foram afastados dos seus lugares na Universidade de São José e Universidade de Macau, respectivamente, por motivos políticos.
Além disso, aponta, há “alguns problemas com a comunicação social em termos de liberdade de expressão”.
Estes elementos, juntamente com o falhanço do movimento pró-democracia de Hong Kong de final de 2014, pintam um cenário “pessimista a curto prazo”, mas Hao mantém as boas perspectivas para um futuro mais longínquo. “Não há fuga à democratização. Não acho que o Governo da China possa manter esta pressão em Hong Kong e, por associação, em Macau”, defende.
Olhando para 2049, data até à qual é garantido o funcionamento do princípio ‘Um país, dois sistemas’, vários cenários se vislumbram: “Se a China se democratizar – política, social e culturalmente –, Macau e Hong Kong também o vão fazer. Esse é o melhor cenário, mas há também a possibilidade de as coisas se manterem mais ou menos na mesma, até depois de 2049. Há uma terceira possibilidade, pior, em que Macau se torna mais ‘continentalizado’, com menos liberdade de expressão, de imprensa, mais problemas na indústria do jogo, mais descontentamento popular. Mas acho improvável”.