Chá | Reinventar uma tradição

Foi um dos principais portos de saída do chá chinês para o Ocidente. Hoje é um simples consumidor. Foi casa de grandes salões de chá de quatro pisos, que deram lugar a comuns restaurantes. Macau nunca abandonou a tradição do chá, mas esta já não é o que era. Há quem a queira reinventar

 

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Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Divididos entre bebidas

Em casa ou no yam cha. São muitos os que mantêm a tradição de beber chá entre quatro paredes. Mas uma oferta cada vez mais diversificada tem retirado ao chá o estatuto de bebida do dia-a-dia. O café começa a ganhar terreno.

O Alberto não precisava de fazer anos, nem este precisava de ser o sétimo dia do Ano Novo Chinês. A família Gageiro encontra-se quase todos os fins-de-semana no yam cha – literalmente significa “beber chá” e é uma refeição tradicional do sul da China, que mistura pratos diferentes, acompanhados de chá. Este domingo é no Jardim das Borboletas, um novo restaurante na Taipa.

São seis irmãos; trouxeram os filhos, os netos. Numa das extremidades da mesa, está já sentada Lúcia Ng Gageiro. O cabelo curto, volumoso e branco-neve deixa logo adivinhar que se trata da matriarca da família. Lúcia nasceu no Interior da China, chegou menina a Macau, casou-se com um português. Completa aqui as quatro gerações desta família chinesa e portuguesa, que se senta à volta de duas grandes mesas circulares. Levanta-se para cumprimentar com dois beijos.

 

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São perto de 30 pessoas, falam cantonês entre si – nesta mesa, o português vai deixando de resistir à passagem do tempo e chega às gerações mais novas como uma tradição difícil de manter. Um pouco como o hábito do chá, que compete hoje com o café, com os sumos e os refrigerantes de lata.

A pequena Alicia Lei, uma das netas, vai dizer-me que gosta de beber chá de limão, fresco e de pacote. “Gostas de chá quente?”, pergunto. “Yes“, responde.

Na mesa, apontam para o pai. “Ele é um entendido no assunto”, dizem. Anderson Lei bebe puer, um chá que se envelhece como o vinho, e que tem origem na Província de Yunnan. Dizem especialistas que o puer é a única peça antiga que se pode beber. “Suave e ao mesmo tempo forte”, nota Anderson, sublinhando que gosta de qualquer tipo – chinês ou japonês, tanto faz. Mas tem uma queda para o chá preto. E para o café, que prepara com maior frequência no trabalho. “Tenho uma máquina, é só pôr uma cápsula e já está.”

 

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Mas ao longo deste almoço só se vai beber chá. Pequenas bases de velas mantêm os bules aquecidos. A acompanhar o cheong fun de porco assado, os dumplings de camarão ou as patas de galinha estão os chás do costume – puer (tipo escuro) ou tie guanyin (tipo oolong).

Lúcia simula um brinde para a fotografia, levanta por um momento a xícara branca com a mão direita. “Ela não gosta de beber chá, mas nós insistimos porque faz bem à saúde”, diz Albertina, uma das filhas. “Aproveitamos o yam cha para estar com a família, porque durante a semana temos pouco tempo para nos vermos”. Durante esta curta conversa, Albertina vai dizer que prefere o chá verde. “É mais leve”, explica. “Costuma comprar?”, pergunto. “Para levar às minhas amigas em Portugal, que gostam do sabor a jasmim”. Albertina nega que o costume se esteja a perder em Macau. E a prova é que “abrem cada vez mais restaurantes como este”.

Luís Gageiro, sentado ao lado da irmã, passa-me uma chávena. “Hoje é um dia ainda mais especial, porque é o sétimo dia do Ano Novo Lunar, sinónimo do aniversário de toda a gente.” A escolha de Luís Gageiro vai para o tie guanyin. “Um pouco amargo, mas com um sabor agradável”, nota.

 

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Diana Madeira tem 30 anos e está sentada na outra ponta da mesa ao lado do namorado, Chen Io Weng, de 29 anos. Diana é neta de Lúcia e domina o português; o namorado fala inglês. Voltamo-nos a dividir entre idiomas. E entre o chá e o café. “Sinto que antigamente se bebia muito mais chá e que esta é uma tradição que se está a perder”, diz Diana, admitindo que prefere beber café. Chen Io Weng refere que a infusão chinesa se tornou numa bebida de convívio. “Bebo ao pequeno-almoço ou ao almoço quando tenho companhia.”

Entre o grupo de familiares encontra-se ainda Juliana Almeida. A filha, ainda pequena, permanece em silêncio ao colo do pai. Juliana bebe chá desde sempre e no trabalho não é excepção. Em casa, tem um tabuleiro para praticar a cerimónia de chá. “É só uma brincadeira, o meu marido aprendeu com o pai e vê no YouTube como se faz”, explica.

“Se reparar, as gerações mais velhas bebem o mais escuro, que é mais forte, e os mais novos têm preferência por sabores mais simples e leves”, explica em chinês o marido, Wong Hoi Ian. É Juliana que faz a tradução.

 

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Classificação geral do chá

Verde

Não fermentado, feito a partir da planta Camellia sinensis. O que o diferencia dos outros chás extraídos da mesma planta é o rápido processamento a vapor que evita a fermentação e a oxidação das folhas e mantém intactas algumas das propriedades farmacológicas.

 

Branco

Semi-fermentado e extraído da planta Camellia sinensis. Típico da Província de Fujian, é produzido a partir dos brotos ainda jovens.

 

Amarelo

Semi-fermentado e muito popular durante a Dinastia Tang. Vem também da planta Camellia sintesis e tem um processo de fermentação e secagem mais lento, o que confere a cor amarelada às folhas.

 

Oolong

Parcialmente fermentado e feito das mesmas folhas e dos brotos da Camellia sinensis. As folhas secam ao sol e o tempo de exposição ao calor é menor, apenas o suficiente para oxidar as margens das folhas, que depois são sujeitas a movimentos de rotação.

 

Preto

Fermentado e produzido a partir da Camellia sinensis, caracteriza-se pelas folhas e líquido vermelhos. A diferença entre os vários tipos deste grupo é o fabrico: o método ortodoxo preserva as folhas inteiras, o método CTC (sigla inglesa para Esmagar, Rasgar, Enrolar) tritura as folhas.

 

Escuro

Pós-fermentado e com origem na planta Camellia sinensis. As folhas passam por um segundo processo de fermentação, ficando expostas à microflora. O envelhecimento é um elemento importante, podendo o chá passar por um período de maturação de anos. O exemplar mais conhecido é o puer.

 

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Curiosidades

O CHÁ COMO BEBIDA terá sido introduzido nos hábitos domésticos dos chineses em 2738 a.C. pelo lendário Shen Nong. De acordo com relatos populares, foi por casualidade que folhas de plantas medicinais caíram num copo com água a ferver. Shen Nong observou então que o contacto das folhas com a água a ferver produzia uma infusão. Decidiu provar e rendeu-se ao sabor aromático da bebida.

 

A PALAVRA PORTUGUESA “CHÁ” deriva da palavra cantonesa “tcha” e integrou o léxico comum da língua portuguesa a partir de Macau. Já a palavra inglesa “tea” deriva de “te” do dialecto de Amoy (Xiamen) de Fujian, pelo contacto directo dos holandeses com Taiwan e a Europa no início do século XVII.

 

A ÁRVORE DE CHÁ MAIS ANTIGA DO MUNDO encontra-se na comunidade de Qianjiazhai, na Província chinesa de Yunnan. Estima-se que tenha cerca de 2700 anos, sendo a mais velha árvore selvagem deste género a crescer na natureza. Geralmente, uma árvore de chá com mais de 100 anos pode ser considerada antiga. Há quem diga ainda que só a partir dos 360 anos.

 

O CHÁ MAIS ANTIGO DA EUROPA produz-se em São Miguel, nos Açores. A cultura do chá apareceu em finais do século XIX para fazer face à crise da laranja, por iniciativa da então Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense (ver reportagem nesta edição).