Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro
Inocência Mata chega à entrevista à hora marcada num dia cinzento e de chuva. Ao meio-dia, o novo campus da Universidade de Macau, na Ilha da Montanha, mais parece uma cidade fantasma; apenas duas ou três pessoas caminham pela larga avenida da Faculdade de Letras. Inocência Mata traz às costas uma mochila, com um padrão africano de tons verdes e azuis. Em Angola, chama-se pano do Congo, explica. Não é capulana, corrige-me, enquanto pousa a mochila em cima da secretária. A voz, pausada, reanima o silêncio desta pequena sala, de paredes brancas, vazias. “Sabe, gosto de viver aqui [no campus]”, vai dizer no final da entrevista, quase como se fosse difícil de acreditar.
Ao longo deste encontro de pouco menos de uma hora, recuamos alguns anos. Não muitos – do trajecto pessoal, Inocência Mata não vai adiantar muito. “Não gosto de falar de mim”, vai dizer. Mas faz as apresentações. É filha de São Tomé e Príncipe e de Angola. Dos sete irmãos, foi a única a nascer na ilha do Príncipe – todos os outros nasceram em São Tomé, a maior ilha do arquipélago. Na genealogia desta professora destaca-se um avô angolano de origem cigana, um avô da ilha do Príncipe com raízes no nordeste brasileiro, uma avó são-tomense e outra da ilha do Príncipe. Inocência Mata é resultado destas raízes plurais, deste fluxo migratório.
Os avós maternos – particularmente a avó da ilha do Príncipe, “de quem herdei o nome Inocência mas não certamente a sageza”, como destaca em entrevistas que deu – foram determinantes no percurso da professora. “A minha formação foi entre a escrita e a oralidade”, nota. E aqui, Inocência Mata regressa a esses instantes passados, a uma casa de família cheia de livros. De visita, a avó, sem saber nem ler nem escrever, era quem tinha por hábito contar histórias.
Foi durante esses tempos que Inocência, ainda pequena, começou a pegar nos livros proibidos. Leu as Cartas de Prisão de George Jackson, prisioneiro político norte-americano, chorou com A Cabana do Pai Tomás, obra de Harriet Beecher Stowe, abolicionista e símbolo da libertação dos escravos. “O meu pai sempre achou que eu ia para Direito porque eu contestava tudo. Mas não, nunca tive dúvidas que queria era mesmo humanidades, letras. Foi a ordem natural das coisas.”
Teorias pós-coloniais
Os laços familiares definiram desde cedo o percurso desta professora. Do pai, Inocência Mata conta numa entrevista à revista Crioula da Universidade de São Paulo: “Era um nacionalista, o que fez com que realmente desde pequena eu tivesse olhado o mundo de forma um pouco menos ingénua, do que, possivelmente, os meus colegas”.
Inocência Mata terminou o secundário em Angola, mas a formação intelectual tomou uma direcção definitiva em Portugal, onde começou em 1985 a licenciatura em Línguas Modernas/ Estudos Portugueses e Ingleses pela Faculdade de Letras de Lisboa. “Tive óptimos professores, em todos os aspectos, do ponto de vista humano, científico e pedagógico.”
Foi ao longo da carreira académica que conheceu o romancista, ensaísta e estudioso das culturas e literaturas africanas de expressão portuguesa Manuel Ferreira – o professor, que viveu em Angola, Índia e Cabo Verde, introduziu em Portugal o ensino das literaturas africanas de expressão portuguesa ao nível universitário e é autor de uma obra literária marcada pela denuncia à repressão do colonialismo.
Foi com Manuel Ferreira que Inocência Mata se iniciou no mundo dos ensaios. O primeiro de muitos que viria a escrever versa sobre a obra do escritor angolano Luandino Vieira. Mas é só mais tarde, quando faz o doutoramento em Letras, em finais dos anos 90, que aborda pela primeira vez a questão pós-colonial, área de estudo que acaba por aprofundar num pós-doutoramento realizado na Universidade da Califórnia, Berkeley (EUA). “Era algo bastante novo, lembro-me que quando pedi uma bolsa na Fundação Calouste Gulbenkian para passar um ano no Brasil, não havia sequer essa área, de maneira que pode dizer-se que o meu pedido fez jurisprudência nesse sentido”, relembra. E sorri.
Inocência Mata começa a pôr em causa as premissas das teorias pós-coloniais. “Quando dizemos pós-coloniais e libertação, até parece que depois da independência todo o mundo ficou livre, e não ficou. As teorias pós-coloniais dão-nos a possibilidade de discutir. Uma coisa é a independência, outra é a liberdade.”
E que obras se podem rever neste tipo de literatura, pergunto? Mayombe de Pepetela é um exemplo, responde. “A personagem começa antes da independência a contestar as relações ditatoriais dentro do movimento. Vemos isso em quase toda a sua obra. Não é maniqueísta, no sentido que os nacionalistas são os bons e os colonialistas são os maus. [A obra] diz assim, dentro do nacionalismo, existem relações de poder bastante coloniais.”
Conceito da lusofonia “não é adequado”
No ano em que Inocência Mata lançou dois trabalhos que considera “marcantes” – a autoria do prefácio da colecção dos livros publicados pela Casa de Estudantes do Império, encerrada por intervenção da PIDE há 50 anos, e do prefácio da segunda tradução em Portugal da obra do filósofo e revolucionário Frantz Fanon, Os Condenados da Terra – a académica foi distinguida com o prémio Femina 2015.
Criado em 2010 com o objectivo de agraciar mulheres portuguesas, o Femina alargou no ano passado o âmbito de premiação a luso-descendentes e mulheres de outros países de língua portuguesa que se tenham distinguido no mundo ao nível profissional, cultural e humanitário “pelo conhecimento e pelo seu relacionamento com outras culturas”. “Fiquei contente, foi uma surpresa, confesso.”
Com uma carreira dedicada à divulgação das obras literárias africanas em português, ao estudo da relação entre as várias literaturas africanas e à investigação da presença de África na literatura portuguesa no pós-25 de Abril, a professora são-tomense foi premiada “por mérito nas Letras: Literatura – Investigação e ensino de literaturas lusófonas”.
Ao longo da entrevista, esta será a primeira (e única) vez que é feita referência aos termos “lusófono” ou “literatura lusófona”, conceitos que Inocência Mata rejeita por considerar redutores. “Não é adequado para referir a produção cultural dos oito países que têm o português como língua oficial. Não dá conta das inúmeras cumplicidades linguísticas e etnolinguísticas dos países de língua portuguesa”, justifica.
Da literatura em língua portuguesa, resta hoje pouco em comum nestas nações, refere. “Eu diria que só a língua, o que, aliás, não é coisa pouca”, ressalva.
De acordo com a académica, foi a partir do processo de independência das antigas colónias portuguesas em África que estas literaturas começaram a seguir direcções opostas, acabando por se aproximar dos países fronteiriços. “Hoje a literatura moçambicana dialoga muito mais com a literatura do Zimbabué ou da África do Sul, e a literatura angolana dialoga muito mais com a literatura da Zâmbia e dos Congos”.
Inocência Mata alerta também para o lugar que a língua portuguesa ocupa actualmente em África. E, aqui, vale a pena recordar uma conferência em Macau, em que a são-tomense citou a estudiosa Fernanda Cavacas quando disse que o português assume em Angola o papel de “língua afectiva”, em Cabo Verde de “língua solene”, na Guiné-Bissau de “língua de passaporte”, em Moçambique de “língua política” e em São Tomé e Príncipe de “língua irmã”.
Visão utilitária do ensino da língua em Macau
Inocência Mata percorre mundo com as literaturas em português e os estudos pós-coloniais na bagagem. Estados Unidos, Alemanha, Índia, Angola ou Senegal são apenas alguns dos países por onde a académica passou para dar aulas, cursos ou seminários. No Brasil, foi professora convidada durante um semestre em várias universidades do país – em Niterói, no Recife e em Salvador. A Universidade de Letras de Lisboa, onde lecciona desde que terminou os estudos, é o que chama de “casa”. “A universidade portuguesa é muito endogâmica”, vinca. E explica: “Não existe essa mobilidade em Portugal; no Brasil, uma pessoa sai de uma universidade e vai para outra; nos Estados Unidos é muito difícil permanecer na universidade onde se fez os estudos”.
Macau, onde está desde 2014, foi uma excepção na vida desta professora. Chegou à RAEM convidada por Fernanda Gil, professora catedrática da Universidade de Letras de Lisboa e directora do departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Macau. A académica são-tomense, que integra o corpo docente do departamento de português por um período de três anos, olha para esta etapa de vida como um “desafio”.
Na cidade, veio encontrar alunos com competências e motivações completamente diferentes daquelas a que estava habituada. Fala da ausência de debate dentro da sala de aulas e também de uma visão “muito utilitária” da aprendizagem do idioma em Macau. “Aprende-se para fazer comércio”, diz, referindo-se às portas que o ensino da segunda língua oficial de Macau abre na hora de procurar um emprego.
“Não há na história da Humanidade aproximação dos povos por via do comércio pura e simples, porque os povos aproximam-se por outras questões – as questões culturais, o conhecimento da cultura, das vozes, da produção cultural, da literatura, da música, das artes”.
Inocência Mata diz ainda que, além das competências linguísticas, é necessário que os alunos aprofundem os conhecimentos do perfil cultural e histórico dos países onde se fala português. Uma espécie de missionário. É assim que Inocência Mata olha para um professor – “tal como o médico, são missões”.
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Afiliações e publicações
Inocência Mata é doutora em Letras pela Universidade de Lisboa e possui um pós-doutoramento em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela Universidade de Califórnia, Berkeley. É professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de Literaturas, Artes e Culturas. Actualmente é docente no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Macau, directora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Português Língua Estrangeira/Língua Segunda. É ainda membro do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, da Association por L’Étude des Literatures Africaines (sediada em França), da Associação Internacional de Estudos Africanos (AFROLIC) e da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa (AILP-CSH). Membro fundador da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e Príncipe (UNEAS) e sócia honorária da Associação de Escritores Angolanos. Membro Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa – Classe de Letras. É autora de diversos livros sobre literaturas africanas e sobre teoria pós-colonial, entre os quais: A Rainha Nzinga Mbandi: História, Memória e Mito (2012), Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana (2006), Literatura Angolana: Silêncios e Falas de uma Voz Inquieta (2001) e Diálogo com as Ilhas: sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe (1998).