Quando o chá de Macau mudou os Açores

As duas únicas plantações de chá com fins industriais da Europa ficam na ilha de S. Miguel, nos Açores, e contam com uma produção anual de cerca de 50 toneladas. Das seis fábricas que por largos anos abasteceram o mercado europeu, só duas sobreviveram. Uma longa história que começou a escrever-se graças a dois chineses de Macau

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Texto João Paulo Meneses | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Se a indústria do chá não tem hoje o impacto na Ilha de São Miguel que já teve na primeira metade do século passado, ainda subsistem duas fábricas, uma delas a trabalhar ininterruptamente desde 1883. Além de ser o chá mais antigo produzido na Europa, é hoje ponto de peregrinação de turistas, curiosos em espreitar as encostas por onde se espalham as plantações e aprender mais sobre o processo da colheita até à chávena. Essa marca identitária dos Açores deve-se a dois chineses de Macau, contratados no século XIX com a missão de ensinarem a técnica de preparação das folhas e fabrico do chá em São Miguel. O chá surgia na altura como saída à crise da laranja – até então o principal produto da região – e a sua concretização foi impulsionada pela Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense (SPAM). O saber ancestral passou de geração em geração e criaram-se novas fábricas de chá na ilha. A única, porém, que haveria de sobreviver é a do Chá Gorreana, colocando no mercado o chá verde Hysson e as marcas de chá preto Orange Pekoe, Pekoe e Broken Leaf.

Todos os especialistas concordam que Lau-a-Pan e Lau-a-Teng tiveram um papel decisivo no aparecimento e desenvolvimento desta indústria na ilha. “O chá chega à Europa por via marítima ainda no século XVI, trazido por comerciantes portugueses vindos de Macau”, aponta o investigador Mário Moura, enquanto que outro especialista no tema, Pedro Pascoal de Melo, refere que “sabe-se da existência da planta do chá – Camellia sinensis – nos Açores desde pelo menos finais do século XVIII, nomeadamente na ilha Terceira, mas desconhece-se no entanto como lá terá chegado ou quem a terá levado”.

 

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A historiadora Margarida Machado aponta que “a manipulação da planta não era conhecida”, mas que há registos da sua existência a partir de 1820. Com o declínio das exportações de laranja, os agricultores tinham de se virar para outra produção lucrativa e foi então que a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense iniciou contactos para contratar peritos do chá. “Todos os autores da época são unânimes em dar a paternidade da indústria do chá à SPAM, pois foi ela que, com os seus artigos no Cultivador, com as experiências feitas nos terrenos dos seus sócios e com os esforços para a vinda de dois chineses para ensinarem a manipulação do chá, introduziu verdadeiramente esta indústria na ilha de S. Miguel”, diz Margarida Machado, que se especializou nesta temática.

A partir de meados de 1874 são encetados contactos com o Governador de Macau, com os cônsules portugueses em Hong Kong, Japão e Calcutá (Índia) e com várias representações no Brasil. “O excessivo secretismo demonstrado por alguns dos intervenientes ou o desproporcionado preço estabelecido por outros marcaram as acções desenvolvidas”, aponta Pedro Pascoal de Melo. “Apesar de tudo aprovado, as negociações com Macau levaram tempo e tiveram alguns reveses, pois as indústrias chinesas encontravam-se agrupadas em grémios, com regras muito rígidas, sendo extremamente ciosas das suas técnicas e tudo fazendo para que elas não saíssem do seu país”, lembra Margarida Machado.

Só em 1877 a SPAM consegue contratar os dois técnicos a Macau, por intermédio do então director das Obras Públicas, o major de engenharia Augusto Supico, que estava “desejoso de prestar serviços à terra a que o prendem tantos laços de amizade”, lê-se numa notícia publicada a 9 de Janeiro de 1878 no jornal local A Persuasão. Supico era ele próprio membro da SPAM.

 

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Longo processo, longa viagem

Lau-a-Pan era o mestre e Lau-a-Teng seu ajudante e tradutor. “Trabalhavam provavelmente numa das 14 ou 15 fábricas de chá de Macau”, confirma Mário Moura à Macau. A 13 de Novembro de 1877, os dois técnicos assinaram um contrato bilingue (chinês e português) em Macau na presença do próprio governador, Carlos Eugénio Correia da Silva. Embarcaram de imediato no barco à vela “África”, da Marinha Portuguesa, e seguiram viagem durante três meses até Lisboa.

O contrato era de um ano, renovável por mais três, e garantia aos dois técnicos um salário que seria pago em Macau e outro na ilha, em partes iguais. Lau-a-Pan, o mestre, recebia 25 dólares mensais, para além de casa, mesa (duas libras de arroz ou o equivalente em pão, uma libra de peixe fresco ou salgado ou meia libra de vaca e uma libra de hortaliça) e as passagens de ida e volta no barco. Em contrapartida comprometiam-se a “ensinar todos os segredos da cultura e preparação do chá sem reserva alguma”, como escreve Pedro Pascoal Melo na obra Breve História da Cultura do Chá na Ilha de São Miguel. Um documento da época diz que a contratação era “um pouco cara mas não foi possível obtê-los por menos”. Já Mário Moura encontrou num jornal de Lisboa opinião diferente sobre o tema: “O preço do contrato é relativamente baratíssimo”.

 

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Chegados então a Ponta Delgada, a 5 de Março de 1878, começaram a trabalhar quase de imediato. Visitaram locais onde já havia plantações de chá, começaram a fazer demonstrações sobre a apanha e transformação e fizeram sementeiras com aquilo que trouxeram de Macau. Mas a presença destes dois chineses foi tudo menos pacífica.

Desde logo o facto de vestirem “à chinês” e usarem uma longa trança causou burburinho na sociedade local. Até postais com a sua imagem foram postos à venda, conforme apurou Mário Moura. “Eram vistos de modo ambíguo e estereotipado. Ao mesmo tempo que se lhes reconheciam conhecimentos técnicos valiosos, divulgava-se a sua imagem em postais à venda e descrevia-se um exótico de vestir e usar o cabelo, também eram tidos como supersticiosos, dúplices e preguiçosos”. De qualquer maneira, o ajudante do mestre converteu-se ao catolicismo e passou a usar o nome António. Ambos usavam tanto trajes portugueses e chineses, mas nunca abdicaram do “rabicho”: “O mestre tem-no de metro e meio e o coadjutor de 90 centímetros. Cortá-lo seria uma renúncia feita à pátria, e a perda da vida, quando nela dessem entrada”, escreveu Rafael de Almeida, o encarregado nomeado pela SPAM, que com eles conviveu durante meses, no jornal A Persuasão de 11 de Janeiro de 1879.

 

Herança duradoura

Se é certo que na Primavera de 1879 produziram cerca de 52 quilos de chá quatro tipos diferentes, dividem-se os especialistas quando se analisam os resultados imediatos do trabalho durante ano e meio da dupla. Enquanto Pedro Pascoal de Melo cita os registos da SPAM, que dizem que as análises feitas por especialistas mostraram “excelente qualidade” e Margarida Machado conta que “os resultados foram altamente positivos e o optimismo era geral, fazendo com que as áreas cultivadas desta planta se expandissem por grande parte da ilha”, Mário Moura lembra que “menos de três meses após o início do contrato os responsáveis da SPAM andavam desencantados com o desempenho dos dois chineses”.

Foi nomeada, entre os membros da SPAM, uma comissão para acompanhar o trabalho dos dois chineses. Mas se há quem entenda que a intenção era vigiar o trabalho, a historiadora Margarida Machado entende que a comissão se deveu “ao interesse que a Sociedade punha nas suas experiências”. Descontentamento apenas relativamente ao chá verde, cuja manipulação o mestre quase desconhecia.

 

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Entre os elementos da Sociedade houve quem defendesse a renovação do contrato, por ser cedo para se avaliar os resultados, e quem quisesse o regresso dos dois homens a Macau. Mesmo com a SPAM a atravessar sérias dificuldades financeiras, acabou por renovar o contrato. Os técnicos cumpriram apenas alguns meses do segundo contrato e regressaram a Macau a 18 de Julho de 1879. Mas a herança ficou, tanto nas duas fábricas que ainda hoje produzem chá – Gorreana e a Porto Formoso – como no orgulho de que os Açores têm em dizer que produzem o único chá da Europa.

O investigador Mário Moura, que está a preparar o doutoramento sobre o tema do chá nos Açores, refere à MACAU que “visto com o considerável recuo que o tempo geralmente oferece, ainda que tenham inicialmente desiludido, a sua vinda contribuiu, não haja dúvidas, para um virar de página na história da introdução do chá na Ilha de São Miguel”.

 

O declínio e a sobrevivência

Nos tempos áureos da indústria – início do século XX – chegou a haver seis fábricas de chá na costa norte da ilha de São Miguel. A partir dos anos de 1960, as fábricas foram fechando e as plantações foram sendo substituídas por pastos para as vacas. Já nos anos de 1980, só uma, a Gorreana, na Ribeira Grande, continuou a funcionar. Está na mesma família há cinco gerações (existe desde 1883) e foi salva pelas demonstrações científicas que o chá é benéfico para a saúde. Esteve para fechar, em 1975, mas, desde então, não parou de crescer em produção, área de cultivo e clientes, até mesmo na exportação.

A fábrica, que emprega 40 pessoas, produz chá preto e verde e dos seus 42 hectares de plantação, saem anualmente 40 toneladas de produto. Do seu volume de negócios, que ronda os 500 mil euros, cerca de 20 por cento advém da exportação, essencialmente para a Alemanha e França. As plantações são por si só uma atracção turística obrigatória da ilha. Aqui os visitantes podem percorrer as diversas secções de transformação das folhas e saboreá-lo numa sala com vista panorâmica.

A outra fábrica em funcionamento é a Chá Porto Formoso, também no concelho da Ribeira Grande, que voltou a abrir em 2001. A produção é pequena, com cinco hectares de plantação e produção entre 12 e 14 toneladas de três variedades de chá preto por ano, vendendo cerca de 60 por cento da produção na própria loja do espaço da fábrica, que é visitada por mais de 20 mil turistas todos os anos. O restante é vendido nos Açores e uma pequena parte nas chamadas lojas gourmet do resto do país.

 

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Mais dois

Doze anos depois da despedida da primeira dupla de chineses, um dos fundadores e sócio dirigente da SPAM, produtor e dono de uma das fábricas, José do Canto, contratou em Macau mais dois técnicos para o ajudarem na produção de chá, nomeadamente na laboração de uma nova fábrica. Chum Sem e Lum Sum chegaram, diz Mário Moura, devido “aos bons ofícios do então Governador de Macau”, em Dezembro de 1891. Sobre eles pouco ou nada de sabe, mas Margarida Machado defende que “terão deixado descendência na ilha”. Mário Moura aponta que “os segundos chineses, ao contrário dos primeiros, vestiam já completamente à europeia”.

 

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Chá em Macau?

“Apesar de Macau não cultivar chá, produzia chá. Como?” O espanto é do investigador Mário Moura, que foi encontrar a resposta numa intervenção do deputado Horta e Costa feita no Parlamento português em Maio de 1889, e dirigida ao ministro da Marinha: “O chá, vindo do interior quase em bruto, ou preparado e passado por tantas operações sucessivas, de modo a sofrer uma alteração tão completa, que quase deverá ser esquecida a sua classificação primária, para ser considerado apenas como um produto da indústria daquela colónia”. Da intervenção daquele que viria a ser, depois, duas vezes governador de Macau fica a saber-se que havia naquela altura 15 fábricas de transformação de chá em Macau, “onde trabalhavam 120 operários fixos e 853 avulsos, dos quais 348 eram homens e 505 mulheres, e isto ainda além de 300 outros, empregados em carretos e transportes. E todo este chá ali preparado vai para Hong Kong, e dali para Inglaterra”.