A primeira vez que vi Macau

Macau é um espaço "improvável", um "estranhamento constante" com "fronteiras invisíveis". Esta é a cidade vista por três autores de língua portuguesa que se cruzaram na última edição do Festival Literário Rota das Letras.

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

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FELIPE FRANCO MUNHOZ

Milhares de possibilidades

1 de Fevereiro de 2016. “Está decidido: vou à China atrás dela. Macau. Médica. E mais nenhuma informação. Preciso encontrá-la. Preciso. Cabelo curto. Chanel? Desfiado? Um metro e – quanto? E o peso? E eu?, serei reconhecido? Quase dois anos. Ainda tenho aquele terno azul.”

Esta é uma das micronarrativas ficcionais que o escritor brasileiro Felipe Franco Munhoz foi publicando no jornal Ponto Final antes de chegar a Macau, onde participou na 5.ª edição do Festival Literário Rota das Letras. Ao longo de um mês, Felipe Franco Munhoz vai construindo um homem “em depressão”, que quer partir para Macau à procura “dessa chinesa que ele conheceu”.

Macau é o título de um livro de Paulo Henriques Britto. Macau é um refúgio no livro O Bigode, de Emmanuel Carrère. Macau é a mulher que me salvou do suicídio”, escreve ainda a 11 de Fevereiro de 2016. Na realidade, Macau era pouco mais do que isso para esse homem – e para o próprio escritor, que antes de chegar à cidade não a sabia explicar.

Munhoz fala à revista MACAU cinco dias depois de aterrar. Local que escolheu para a entrevista: a pequena biblioteca do Jardim de São Francisco, no coração da cidade que o autor vai, entretanto, começando a entender. Macau, diz, tem “milhares de possibilidades”. Pode ser cenário de cinema, de livro, tem cheiros desconhecidos, que são temperos, são coisas novas.

Subimos ao primeiro andar do Pavilhão Octogonal, a primeira biblioteca pública da cidade. Antes disso, este edifício de estilo arquitectónico chinês, construído em 1927, foi restaurante, foi sala de bilhar. “Edifícios como estes, de arquitectura chinesa, em contraste com a ostentação dos casinos, com prédios que se assemelham ao nosso terceiro mundo, e outros de arquitectura refinada contemporânea são uma mistura muito interessante”, diz.

A biblioteca foi uma escolha óbvia. “Ainda não vi outra em Macau”, nota Munhoz. Livros e bibliotecas apareceram lá atrás na vida do jovem autor. É preciso recuar um pouco: nos primeiros anos de vida é-lhe diagnosticada uma bronquite. A família muda-se para Riviera de São Lourenço, para perto da praia, ar puro do litoral paulista, onde não vivem mais do que 20 famílias. Os livros acompanham-no porque está só; a biblioteca aparece depois, quando aos dez anos vai viver para Curitiba. É aí que lê os clássicos: Kafka, Hemingway, Nabokov, Machado de Assis.

Agora que estamos sentados nesta pequena biblioteca, poucos vão pegar em livros, todos lêem jornais. Felipe Munhoz vai mexendo a bengala que o acompanha para todo o lado – cabo negro, empunhadura prateada. Um problema na perna, explica.

O corpo continua a precisar de descanso. Esta foi a primeira noite bem dormida. “A gente chega com o corpo em todos os horários diferentes, de sono, e tudo, e escuta essa língua, sem entender nada”.

“Mas é muito bacano.” Munhoz fala do bilinguismo. Sente-se mais estranho numa cidade alemã do que nesta chinesa. Sente-se mais perto do Brasil quando olha para o nome das ruas, em português e chinês. “É um estranhamento constante, porque ao mesmo tempo parece que a gente está no nosso lugar, e não está.”

Na Avenida da Praia Grande, que percorremos de volta ao hotel, um cavalo-marinho desenhado na calçada portuguesa. É também o símbolo de Riviera de São Lourenço, a terra que lhe deu os livros.

 

 

Perfil

Nasceu em São Paulo, Brasil, em 1990. Licenciado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Paraná, o autor recebeu em 2010 a Bolsa Funarte de Criação Literária para escrever Mentiras, um livro inspirado na obra do romancista norte-americano Philip Roth. Foi convidado em 2013 para ler excertos do romance durante as comemorações dos 80 anos de Roth, em Newark. Escreve poesia, coordena o site Antessala das Letras e já publicou em diversos órgãos de comunicação, como a Gazeta do Povo, Rascunho, Cândido e The Huffington Post. É membro da Associação Paulista de Críticos de Arte.

 

 

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LUÍS CARLOS PATRAQUIM

Fronteiras invisíveis

É possível ler Luís Carlos Patraquim e pensar – também – em Macau. Em A Cabeleira da Língua, uma das crónicas que escreveu, o autor moçambicano, nascido na “cidade do cimento”, Maputo, entra “por um subúrbio adentro”, num cabeleireiro. “Encimando a porta, em letras tropegantes mas gordas, cada uma de sua cor, o nome funcional e solene: Cabelaria Corte Rápido”, escreve. Um surrealista que o quisesse imaginar não conseguiria, diz. “Mário Cesariny não o conseguiria.”

Quem vive ou passou por Macau encontra uma mão cheia de exemplos: “Fomento predial e loja de papei para parede”; “Pastelapia Ou Mun Lou Benka”, entre muitos outros.

Da utilização da língua portuguesa, em Moçambique, Patraquim escreve: “Por vezes roçando incongruências ou ‘erros’, ei-la que se libertou da canga colonial.”

A Canção de Zefanias Sforza, a estreia do poeta na prosa, foi um dos livros apresentados em Macau durante o festival literário. Publicado em 2010, este é um olhar sobre os 35 anos da independência de Moçambique. Patraquim dá-nos dados sobre a toponímia de Maputo: a Avenida 24 de Julho, uma das principais artérias da cidade, manteve o nome já depois da independência; a Manuel de Arriaga, antiga D. Carlos, passou a Karl Marx. Já sobre os painéis a azulejo com os nomes das ruas de Macau, em chinês e português, o poeta fica em dúvida: “Disseram-me que o que está escrito em caracteres chineses é uma coisa e em português é outra, mas não sei se é verdade ou não.”

Mas voltando à obra do autor. Também aqui sinais de uma “descomplexificação em relação à língua portuguesa”, com novas palavras a surgirem no dicionário pessoal do poeta: desconseguir, confusionar. “As pessoas começaram a falar assim.”

E Macau ‘confusiona-o’?, pergunto. “Não é confusionar, é ainda não ter a percepção do mapa.”

Estamos no Norte da cidade, a zona com maior densidade populacional do mundo – os últimos Censos revelam que vivem aqui 142.300 pessoas por quilómetro quadrado. Na zona das Portas do Cerco, Luís Carlos Patraquim não se perde entre a multidão de pessoas que atravessa todos os dias a fronteira para o lado de lá. Traz uma boina preta, mantém quase sempre um cigarro entre os dedos, caminha em sentido contrário. Aqui não encontra as acácias de Maputo, não vê uma cidade verde. “Falta um pouco isso, embora tenha passado por algumas zonas arborizadas”, diz.

“A pátria honrai que a pátria vos contempla”, pode ler-se na parte superior do Arco das Portas do Cerco, monumento construído em 1871 em homenagem ao governador Ferreira do Amaral e ao coronel Vicente Nicolau de Mesquita pela defesa da administração portuguesa em Macau (uma pesquisa revela que a tradução de uma praça e avenida em Macau baptizadas com o nome destes dois homens manteve-se fiel em chinês).

“O que me confusiona é julgar que conhecia alguma coisa, porque havia muitos chineses e macaenses em Lourenço Marques, e depois chegar aqui e perceber que é mais complexo, e bem mais subtil, do que aquilo que imaginávamos.” Esta é apenas uma “pontinha da imensa China que nunca mais acaba”, nota.

Do outro lado, onde nunca esteve, imagina: “Talvez mude tudo, uma arquitectura e ambiência totalmente diferentes, como se estivesse noutro país”.

Patraquim fala ainda de outras fronteiras em Macau, mas “invisíveis” – a língua, que divide as comunidades; os casinos, que dividem quem cá habita. “Mas não tenho de ter posições moralistas sobre isso.”

 

 

Perfil

Nasceu em Maputo, Moçambique, em 1953. Poeta, dramaturgo, guionista e jornalista, foi refugiado político na Suécia entre 1973 e 1975. Fez parte do grupo fundador da Agência de Informação de Moçambique, trabalhou no Instituto Nacional de Cinema de Moçambique e na Televisão Moçambicana. Em 1986 fixou-se em Portugal. Escreve para cinema e teatro, colaborando na imprensa moçambicana e portuguesa. Em 1980 lançou Monção, a primeira de muitas obras poéticas que viria escrever. A Canção de Zefanias Sforza marca a estreia de Patraquim na prosa.

 

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RICARDO ADOLFO

Lugar improvável

 

É impossível repetir. Não se volta à infância. A primeira vez que Ricardo Adolfo viu a China “era tudo azul e verde”. E Macau era um lugar “puro, muito inocente”. Vivia na Taipa, “que era campo, lodo, canaviais”. A escola, na península, chamava-se Santa Rosa de Lima. Ao cinema, ali ao lado, ia sozinho. E quando se perdeu para os lados do Leal Senado, deixou-se ficar sentado durante horas até que o problema se resolvesse.

Estas são memórias de criança deste escritor português, nascido em Angola, que aqui viveu dos seis aos oito anos de idade, no início da década de 1980. Entretanto voltou à Ásia – “a Singapura, acho” – e lembrou-se de velhos sentidos. “Um cheiro muito perto do de Macau e que eu nunca mais tinha sentido.”

A Macau regressou já depois da transferência de administração, primeiro em 2007, e este ano para participar no festival literário Rota das Letras. Macau parece-lhe agora alguém que não via há muito tempo. “É como se essa pessoa tivesse feito uma plástica e tu não soubesses o que lhe dizer.”

Encontramo-nos no velho Hotel Lisboa, o único casino que tem na memória. Em pequeno, Ricardo Adolfo não foi além do hall de entrada. “Era um mito para mim”, diz. Subimos ao primeiro andar, escolhemos um café que está vazio, género cantina, de paredes curvadas, enfeitadas com fotos da cidade a preto e branco. São seis da tarde, na mesa ao lado senta-se um homem. Vegetais, tofu e arroz no prato.

Ricardo Adolfo é publicitário em Tóquio (e escritor quando todos já estão a dormir). Numa vida paralela, diz, gostava de trabalhar num casino, de preferência ser jogador. “Às vezes, os meus pais diziam-me que iam ao casino e eu achava fascinante.” Dizia-se também por Macau que, em tempos de tufão, os casinos estavam lotados. “E eu tinha de ficar em casa com as janelas marteladas”, recorda.

O jogo ficou desde aí: começou por ver as pessoas jogar mahjong nas ruas de Macau; depois aprendeu o póquer, a canastra, o king; e quando começou a escrever em cafés foi a espadinha, a sueca. “Jogava sempre a dinheiro.”

Na literatura, foi dar a escritores que utilizavam o jogo como elemento narrativo. É o caso do norte-americano Mario Gianluigi Puzo em Os Loucos Morrem. Mas dos cinco livros que publicou, Macau não existe em nenhum. É um não-assunto, porque era perfeito. “A cidade está agora mais interessante para ser trabalhada a nível de escrita, acho que a memória que eu tenho é tão idílica e perfeita que talvez por isso nunca tenha ligado nenhuma.”

Desta Macau adulta, “tão improvável”, Ricardo Adolfo não consegue deixar nada de fora. “Concentram-se hedonismos num espaço tão pequeno, que só pode ser fantástica.” Tem uma poesia dramática, que é própria só da Ásia. São os casinos, já se sabe, mas são também estas tascas de rua, a vida mais de chinelo, a humidade, as paredes verdes de musgo.

Da primeira vez que deixou Macau: “Saí daqui a chorar no barco para Hong Kong, onde íamos apanhar o avião. Esta é uma das memórias mais fortes que tenho, lembro-me de pensar: o que é que me estão a fazer?”

 

 

Perfil

Português, nascido em Angola e a trabalhar em Tóquio, Ricardo Adolfo viveu durante a infância em Macau. Em 2003, publicou Os Chouriços São Todos Para Assar, uma compilação de contos, seguindo-se, em 2006, o romance Mizé – Antes Galdéria do que Normal e Remediada. O terceiro livro, Depois de Morrer Aconteceram-me Muitas Coisas, foi publicado em 2009 e Maria dos Canos Serrados em 2014. Colaborou com Wong Kar-Wai na curta-metragem There’s Only One Sun. O autor foi escolhido como sendo uma das Caras do Futuro da literatura portuguesa pelo escritor António Lobo Antunes na edição do 20.º aniversário da revista Visão. Acaba de publicar Tóquio Vive Longe da Terra, que explora o dia-a-dia de um assalariado estrangeiro no Japão.