Velhos edifícios que voltam a contar histórias

O património ao serviço da cultura, do turismo e da comunidade. O Governo de Macau tem apostado nos últimos anos na requalificação de edifícios históricos, muitos dos quais estavam ao abandono. Especialistas defendem que a alteração da legislação e a conservação da identidade e narrativa histórica destas estruturas são elementos fundamentais para o sucesso do projecto.

 

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Passam despercebidos na nova cidade do jogo. Edifícios de interesse histórico do século XIX e XX, afastados do centro nobre da cidade, estão agora a ser recuperados pelo Governo de Macau. É uma extensa lista de estruturas de raiz portuguesa e chinesa, que fazem parte da memória colectiva da cidade e que vão trazer uma nova vida aos bairros antigos e comunidades que os habitam.

A linha costeira do Porto Interior – velha casa da comunidade piscatória de Macau – alberga vários destes edifícios. Alguns exemplos: na Rua da Ribeira do Patane, entre os números 69 e 81, estão a ser remodelados sete prédios contíguos dos anos 1930. Aqui vai nascer a futura Biblioteca do Patane, com instalações culturais multifunções. Quem caminha em direcção à Barra encontra também na Doca D. Carlos as instalações das velhas Oficinas Navais, erguidas em finais do século XIX. Será um espaço de exposições.

“Ao planear os projectos de revitalização dos edifícios arquitectónicos, o Instituto Cultural (IC) levou a cabo as investigações devidas com base nas necessidades dos residentes e da comunidade”, explica o organismo à MACAU, notando que cada um destes projectos “tem uma função comunitária diferente”.

A requalificação destes edifícios pretende desviar rotas turísticas para outros pontos da cidade, dinamizar os bairros antigos e impulsionar as indústrias culturais e criativas.

“Nota-se uma aposta forte do Governo neste sentido”, começa por dizer Manuel Wu, que trabalhou como especialista na área do planeamento urbano na Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes e que é membro do Conselho de Planeamento Urbanístico, um órgão de consulta do Governo da RAEM. O também director-geral da agência de viagens Macau Explorer defende, porém, a manutenção da identidade destas estruturas.

 

 

Pensar na gestão e actualizar a legislação

É que a preservação do património por si só não basta. “Tem de se devolver a vida a todos esses edifícios”, vinca Manuel Wu, para quem a gestão destas estruturas deve ser estudada de forma ponderada.

Manuel Wu recua pouco mais de dez anos, altura em que se procedeu à requalificação do Bairro de S. Lázaro. “Apesar da preservação dos edifícios bem conseguida, o espaço interior não é facilmente partilhado com o público.”

A Escola de Música do Conservatório de Macau, no número 35 da Rua do Volong, é um dos exemplos apontados pelo especialista. “Não posso entrar no local porque não sou aluno desta escola e o mesmo acontece com outras estruturas [do bairro].”

 

 

Ainda não se sabe qual será o futuro deste edifício da década de 1920, mas segundo declarações do IC no ano passado, deverá estar ligado às indústrias criativas. As três escolas do Conservatório de Macau (Dança, Teatro e Música), que se encontram espalhadas por diferentes pontos da cidade, poderão vir a ocupar o mesmo espaço, ali perto, na Praça do Tap Seac – no local onde se encontra o antigo Hotel Estoril e onde o Executivo poderá vir a criar um centro de artes e escolas artísticas.

O que também está ainda por definir é o futuro das 12 moradias verde-água, de estilo arquitectónico português, localizadas entre a Avenida do Coronel Mesquita e a Estrada de Coelho do Amaral. O Governo avançou recentemente a possibilidade de aproveitar estas antigas vivendas para a criação de uma zona cultural.

Manuel Wu fala na necessidade de lançar concurso público para a gestão destas mansões e admite a possibilidade de concorrer com um projecto para o local. “Devem ser estabelecidas políticas e condições que atraiam adolescentes e pessoas ligadas às indústrias criativas.”

A legislação, salienta Wu, “também tem condicionado as indústrias criativas”. “Se organizo um passeio pela cidade e convido alguém para cantar para os turistas na rua, a polícia aparece a perguntar se pedi licença ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais.” Manuel Wu sugere ainda a actualização dos regulamentos de construção. “Para abrir um albergue num edifício antigo na zona do Porto Interior é exigido, por exemplo, que o pé-direito [desse albergue] tenha 2,7 metros.”

 

Manter a narrativa histórica

O arquitecto e académico Francisco Vizeu Pinheiro faz uma divisão entre os projectos de requalificação que se conseguem “manter fiéis à narrativa histórica, ao valor social e cultural” dos que não conseguem. “Se não conseguirem, então está a escrever-se uma fantasia.”

Para o arquitecto, a requalificação do edifício da Biblioteca Sir Robert Ho Tung, uma construção de finais do século XIX, é um bom exemplo: manteve-se a função original – era uma biblioteca desde 1958 – e a estrutura do edifício. “O edifício antigo não foi adulterado e a nova biblioteca foi construída da parte de fora, com um desenho inteligente e muito bem conseguido.”

O mesmo conceito deve ser adoptado para a reconversão das Oficinas Navais, diz. “Faz parte da tradição marítima de Macau e seria uma pena se isso se perdesse.”

De acordo com o IC, este espaço vai ser convertido num centro de exposições de arte contemporânea e de venda de produtos culturais e criativos.

 

Projectos para a comunidade

A cultura é pública e não um acto isolado, sublinha Francisco Vizeu Pinheiro, que defende uma maior participação da comunidade no planeamento da cidade. Residentes, historiadores, sociólogos e urbanistas, todos devem ser chamados à discussão. A criação de políticas culturais deve, além disso, “andar de mão dada com as políticas para os transportes e o património”, sublinha.

Regressamos, por momentos, à Praça do Tap Seac, onde foi construído um parque de estacionamento subterrâneo para os autocarros turísticos. “A ideia era que os turistas caminhassem até às Ruínas de São Paulo e passassem pela zona das indústrias criativas de S. Lázaro, revitalizando essa área. Mas isso não aconteceu.”

Modelos turísticos como estes são defendidos também por Manuel Wu. A diversificação dos itinerários turísticos pode “beneficiar economicamente” as comunidades destes bairros. “Pode desenvolver-se o turismo de lazer: uma pessoa senta-se num largo, come um gelado, bebe um café ou um vinho do Porto e isso vai ajudar a impulsionar os negócios locais.” A aposta deve ir para um tipo de turista “diferente”, “mais educado” e que queira “descobrir o verdadeiro lado de Macau”.

 

 

 

 

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Biblioteca do Patane

Situado na Rua da Ribeira do Patane 69-81, este grupo de sete edifícios construídos na década de 1930 vai albergar a Biblioteca do Patane e outras instalações culturais multifunções com o objectivo de alargar os espaços de lazer à comunidade local. No passado, o rés-do-chão destes edifícios destinava-se ao comércio e o andar superior à habitação. O abandono, a falta de manutenção e a danificação nas estruturas têm dificultado as obras de recuperação. O projecto tem um custo de cerca de 22 milhões de patacas.

 

Antiga farmácia Chong Sai

O edifício, situado no número 80 da Rua das Estalagens, foi comprado pelo Governo de Macau em 2011. Tudo indica que aqui tenha funcionado a antiga Farmácia Chong Sai, fundada em 1892 pelo primeiro presidente da República da China, Sun Yat-sen. Durante os trabalhos de recuperação foram descobertos vestígios arqueológicos do que terá sido o antigo cais da cidade. O edifício deverá servir como espaço de exposições. A recuperação vai custar aos cofres do Governo cerca de 12 milhões de patacas.

 

Antigas oficinas navais

O grupo de edifícios, localizado na Doca D. Carlos, foi erguido nos finais do século XIX para a construção e reparação de barcos. A casa de máquinas e o gabinete do director da fábrica estão a ser renovados pelo Instituto Cultural e vão transformar-se num centro de exposições de arte contemporânea e venda de produtos culturais e criativos. O espaço deverá abrir as portas ao público ainda este ano. O custo dos trabalhos de reabilitação ronda as 10 milhões de patacas.

 

Academia Jao Tsung-I

Construída em 1921, esta moradia de estrutura neoclássica faz parte da lista de património classificado de Macau. Nas obras de recuperação, com um custo de cerca de 12 milhões de patacas, o exterior manteve-se intacto. A academia abriu ao público em 2015 com uma exposição de pinturas e obras de caligrafia doadas pelo professor Jao Tsung-I, que em Macau estabeleceu o Departamento de História e Literatura Chinesa da Universidade da Ásia Oriental. O espaço alberga ainda uma biblioteca, uma sala para exposições temporárias e um auditório, destinados à divulgação da cultura e arte chinesas.

 

Posto do Guarda-Nocturno do Patane

O Instituto Cultural e a Associação de Piedade e de Beneficência Patane Tou Tei Mio associaram-se para revitalizar o antigo Posto do Guarda-Nocturno do Patane, situado nos números 52 e 54 da Rua da Palmeira. Sendo o único espaço do género em Macau, serve de testemunho da antiga prática dos guardas-nocturnos, que anunciavam as horas e advertiam a população para tomarem precauções contra incêndios e roubos. O espaço de exposições divide-se em duas salas temáticas: Os Postos dos Guardas-Nocturnos em Macau e Imagens de Guardas-Nocturnos. A recuperação do local custou 2,15 milhões de patacas.

 

Moradias da Avenida do Coronel Mesquita e Estrada de Coelho do Amaral

As 12 moradias de matriz portuguesa, edificadas em meados do século XX, serviram como residência oficial de funcionários públicos. Embora o futuro destas casas permaneça incerto, o Governo avançou recentemente que está a estudar a possibilidade de restaurar e aproveitar estas vivendas para projectos relacionados com a cultura.

 

Biblioteca Sir Robert Ho Tung

O edifício da Biblioteca Sir Robert Ho Tung foi construído em finais do século XIX. Passou por vários proprietários até 1918, quando foi comprado pelo comerciante de Hong Kong, Robert Ho Tung para servir de casa de Verão. No testamento, Robert Ho Tung deixou ao Governo de Macau o edifício, o recheio e 25 mil dólares de Hong Kong para a compra de livros, com o objectivo de estabelecer uma biblioteca pública chinesa. A construção de uma nova estrutura nas traseiras da biblioteca, em 2006, custou 10 milhões de patacas.