Portugal no coração

O número de estudantes de Macau inscritos em instituições de ensino superior portuguesas deverá aumentar já a partir do próximo ano lectivo. Esta é, pelo menos, a expectativa dos responsáveis pelas universidades e pelos institutos politécnicos de Portugal, para quem os protocolos assinados com a RAEM deverão facilitar não só o acesso de estudantes a algumas das mais conceituadas instituições terciárias da Europa, como também contribuir para a consolidação de um novo paradigma em termos de mobilidade estudantil.

 

Texto Marco Carvalho

 

São empenhados, diligentes, naturalmente curiosos e poderão começar a chegar em maior número às universidades portuguesas já a partir de Setembro próximo. O contingente de estudantes de Macau que frequenta as instituições de ensino superior de Portugal queda-se actualmente um pouco aquém das três centenas de alunos, mas a fasquia deverá engrossar a breve e médio prazo, graças ao promissor protocolo firmado, no início do corrente ano lectivo, entre o Governo da Região Administrativa Especial de Macau e o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP).

O acordo, assinado no Porto a 22 de Setembro de 2017, prima pela ousadia e pela inovação. Ao abrigo do memorando, as 15 instituições de ensino superior membros do CRUP comprometem-se a aceitar os resultados do Exame Unificado de Acesso às Instituições de Ensino Superior de Macau como ferramenta de selecção e avaliação dos estudantes locais que ambicionam ingressar nas universidades portuguesas.

Um dia antes, nas instalações do Instituto Politécnico de Leiria, um outro protocolo de semelhante teor tinha já sido assinado entre o Gabinete de Apoio ao Ensino Superior (GAES) e pela direcção do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP).

Os dois acordos, quando considerados na sua globalidade, abrem as portas de virtualmente todas as universidades e estabelecimentos públicos do ensino superior politécnico aos alunos do território que queiram dar seguimento aos estudos em Portugal. “Estes protocolos oferecem maiores facilidades aos estudantes de Macau que queiram frequentar o ensino superior em Portugal e permitem que mais estudantes locais possam ingressar em universidades e institutos politécnicos portugueses”, considera Chang Kun Hong.

Em entrevista à MACAU, o coordenador-adjunto do GAES sustenta que a iniciativa deve contribuir de forma decisiva para suavizar um dos mais relevantes desafios com que Macau se depara: a escassez de quadros bilingues qualificados. “A medida vai permitir a formação de mais quadros bilingues em diversas áreas. Estes profissionais deverão depois contribuir para o desenvolvimento sócio-económico de Macau”, antecipa Chang. “Esta política vai ao encontro das medidas definidas pelo Governo para tornar Macau num centro de formação de quadros bilingues. Por outro lado, permite que as instituições se articulem com os padrões internacionais”, complementa.

Procedimentos

As novas regras de admissão de estudantes de Macau ao ensino superior público de Portugal devem surtir efeito já a partir do próximo ano lectivo, ainda que os preceitos e os métodos de avaliação dos candidatos a um lugar nas universidades e nos institutos politécnicos lusos ainda estejam a ser definidos. No final de Janeiro, revelou Chang Kun Hong, representantes do GAES e do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos estiveram reunidos para discutir e decidir a forma como os alunos serão avaliados, bem como estipular as condições de admissão estabelecidas pelos estabelecimentos de ensino superior politécnico de Portugal. “O GAES vai elaborar uma directiva sobre os procedimentos de candidatura aos Institutos Politécnicos portugueses. Se um aluno local quiser frequentar um curso superior numa universidade ou num estabelecimento de ensino politécnico de Portugal, deve manifestar o seu interesse junto dessa instituição. Se a instituição de ensino superior em questão tiver dúvidas sobre as notas e o aproveitamento dos alunos, pode requerer ao GAES que confirme e certifique a nota”, explica o coordenador-adjunto. “Os alunos podem-nos solicitar também, por mote próprio, uma declaração que confirme estes dados.”

Os protocolos firmados em 2017 definem que cabe ao Governo de Macau disponibilizar os resultados do Exame Unificado de Acesso ao Ensino Superior e comprovar que os alunos que se candidatam à frequência do ensino superior em Portugal se submeteram mesmo a exame. Ao CRUP ou, em alternativa, ao CCISP compete divulgar os resultados dos exames às entidades suas afiliadas, seleccionar os candidatos, bem como notificá-los sobre os resultados das respectivas candidaturas.

Para António Fontainhas Fernandes, presidente do CRUP, o acordo deverá ter o condão de agilizar um processo que exigia um esforço extraordinário aos alunos de Macau interessados em estudar nas universidades públicas portuguesas. O reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que assumiu a presidência do CRUP no início de Outubro, já depois do memorando com Macau ter sido assinado, defende que o protocolo vai ao encontro dos interesses das instituições de ensino superior portuguesas em domínios como a mobilidade e a internacionalização. “O protocolo abre novas perspectivas de cooperação entre Portugal e Macau, em particular em termos de mobilidade de estudantes, uma vez que facilita o acesso de alunos de Macau que desejam continuar os seus estudos em universidades portuguesas. Os procedimentos nele previstos para o reconhecimento e aceitação dos resultados do Exame Unificado de Acesso, que foram acordados com o GAES, devem permitir um processamento mais rápido e expedito das candidaturas de estudantes chineses às universidades afiliadas ao CRUP”, explica o responsável.

O presidente do CRUP enfatiza também o carácter inovador de um memorando de entendimento que antecipa e potencia tendências que poderão vir a moldar e definir o próprio futuro do ensino superior. “O futuro passa, indubitavelmente, por dinâmicas de internacionalização em tudo o que a universidade faça. Na presente era da globalização, as universidades devem afirmar-se nas questões do ensino, da investigação e da valorização do conhecimento, adoptando metodologias sistémicas e transdisciplinares, uma estratégia que pode ser potenciada por este protocolo”, sustenta António Fontainhas Fernandes.

Para Nuno Mangas, presidente do CCISP, função que acumula em simultâneo com a presidência do Instituto Politécnico de Leiria, o compromisso assinado com as autoridades de Macau traz vantagens incontornáveis não só às instituições de ensino superior portuguesas, como também aos jovens de Macau que queiram dar seguimento aos seus estudos em Portugal e que até agora tinham de se submeter a um longo e penoso processo para que as suas competências académicas fossem reconhecidas. “Ao reconhecer os resultados do Exame Unificado de Acesso às Instituições de Ensino Superior de Macau, este protocolo vai permitir aos jovens da RAEM o acesso ao ensino superior português, representando para aqueles estudantes um alargamento das suas opções de escolha em termos de formação superior e para as instituições de ensino superior portuguesas novas oportunidades de captação de estudantes”, sublinha o dirigente.

Uma penosa epopeia

Para Dinis João Carvalho Chan, os protocolos firmados entre o GAES e os organismos que tutelam as instituições de ensino terciário portuguesas chegaram com dois anos de atraso. Em 2015, então com 20 anos – e já depois de ter frequentado uma licenciatura em Jornalismo – o jovem rumou a Lisboa com o propósito de estudar Direito.

Sem nenhuma bolsa, Chan submeteu-se por mote próprio a uma verdadeira odisseia. “Fiz os exames nacionais do 12.° ano sem nunca ter estado formalmente inscrito no ensino secundário português. Tive de aprender português, história de Portugal e filosofia para me poder candidatar à universidade e durante um ano dediquei-me por inteiro a aprender aquilo que os alunos do ensino secundário de Portugal aprendem ao longo de seis”, resume.

O esforço só ao fim de dois anos acabou por dar os frutos almejados. Depois de uma primeira tentativa fracassada, Dinis Carvalho Chan voltou a repetir, no Verão passado, os exames de acesso ao ensino superior e é hoje o único aluno de Macau inscrito no primeiro ano da licenciatura em Direito ministrada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Não é fácil. Ainda continuo a batalhar para ultrapassar alguns obstáculos”, afiança o jovem, que quando se fixou em Lisboa quase não falava português.

A língua, esclarece Chan, mantém-se como a principal dificuldade com que se deparam os alunos da RAEM que rumam a Portugal, mas não é, de todo, o único problema. “Para muitos dos estudantes de Macau que estudam nas universidades portuguesas a língua continua a ser uma barreira. É algo que influencia de sobremaneira a nossa vida social e académica, mas é uma dificuldade que temos necessariamente de ultrapassar. No que diz respeito aos desígnios da internacionalização, instituições como a Nova e o ISCTE, que estão orientadas para o universo dos negócios, oferecem aulas em inglês, o que facilita a integração dos alunos. No meu caso, e dadas as características do meu curso, a maior parte das cadeiras são leccionadas em português”, explica.

Ainda que o caso de Dinis Carvalho Chan se configure como extremo em mais do que um aspecto, muitos dos quase 300 alunos da RAEM actualmente inscritos nas universidades e nos politécnicos portugueses tiveram de se submeter a um moroso processo de certificação de qualificações e não foram poucos os que tiveram também de se submeter a exames em Portugal. Para um número significativo, não restou outra hipótese que não o ingresso na Universidade Católica, instituição com a qual o Governo local tem protocolos assinados desde o final da década de 1980.

Simplificação

O cenário deverá mudar já no Verão deste ano, com os estudantes de Macau a poderem candidatar-se ao ingresso em virtualmente todos os cursos de licenciatura ministrados pelas instituições públicas de ensino superior de Portugal, salvaguarda feita a uma excepção de vulto. “Todas as áreas científicas podem ser alvo deste protocolo, tirando um ou outro sector que são alvo de algumas restrições em Portugal. Segundo o conhecimento que temos, as Faculdades de Medicina portuguesas continuam a não aceitar alunos provenientes de fora do país”, atesta Chang Kun Hong.

Para Nuno Mangas, a exclusividade de que goza a área da medicina não comprometerá o sucesso do acordo. O presidente do CCISP lembra que há vários outros cursos ligados à área da saúde que os estudantes de Macau poderão frequentar. Um dos objectivos das instituições de ensino superior portuguesas passa, de resto, por atrair alunos a outros domínios que não o Direito ou o estudo da língua portuguesa. “O acesso à Medicina encontra-se vedado pelo despacho regulador das vagas para estudantes internacionais. Naturalmente que a Língua e a Tradução são áreas fundamentais, mas são áreas em que já existe alguma tradição na mobilidade de estudantes”, recorda o dirigente. “Uma das coisas que o protocolo vem permitir é exactamente o alargamento a todas as demais áreas de formação, que abrangem a engenharia e as tecnologias, o desporto, as áreas da biologia e das biotecnologias, a gestão e o marketing, entre outras”, enuncia o também presidente do Instituto Politécnico de Leiria.

O objectivo de atrair os estudantes a outros domínios do saber é partilhado pelo CRUP. Atento à realidade da RAEM, António Fontainhas Fernandes está convicto que além de estarem capacitadas para formar quadros bilingues em áreas como a Tradução e o Direito, as universidades afiliadas ao organismo que lidera poderão ainda dotar a RAEM de profissionais diligentes em áreas como as indústrias culturais e criativas e a protecção do património. “A língua portuguesa e a formação de tradutores continuarão certamente a atrair estudantes de Macau, mas outras áreas existem que podem igualmente habilitar esses alunos a integrar mais facilmente o mercado global. As competências digitais, as indústrias de conteúdos culturais, a história e a preservação do património, o direito, a economia ou as engenharias, constituem apenas exemplos de capacidade instalada que as universidades afiliadas ao CRUP podem oferecer aos estudantes da RAEM”, considera o reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

A perspectiva de dotar Macau de quadros qualificados bilingues não apenas no âmbito do domínio da língua ou do funcionamento do sistema jurídico, mas também – e sobretudo – noutras áreas técnicas é algo que agrada ao GAES. A formação de quadros bilingues qualificados em diversas áreas do saber é, recorda Chang Kun Hong, uma das razões que estiveram subjacentes à assinatura de ambos os acordos. De uma forma abrangente, as universidades e os institutos politécnicos de Portugal deverão ajudar Macau a cumprir o desígnio de diversificar a sua economia, contribuindo indirectamente quer para o desenvolvimento da República Popular da China, quer para a definição do papel da RAEM no âmbito da iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. “A formação de quadros bilingues qualificados é um factor muito importante no âmbito do desenvolvimento social e económico, quer do país, quer da RAEM, e é um factor que contribui também, com grande relevância, para a concretização do desígnio nacional ‘Uma Faixa, uma Rota’”, aponta o coordenador-adjunto do GAES.

O processo de apresentação de candidaturas por parte de estudantes locais às universidades e aos institutos politécnicos de Portugal só deverá arrancar em Junho, depois de conhecidos os resultados do Exame Unificado de Acesso ao Ensino Superior, um instrumento metodológico que congrega quatro das principais instituições de ensino terciário do território (a Universidade de Macau, o Instituto Politécnico de Macau, o Instituto de Formação Turística e a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau). As provas de aferição decorrem entre 4 e 8 de Abril e avaliam os conhecimentos dos alunos em quatro disciplinas tidas como estruturantes: o português, a língua chinesa, o inglês e a matemática.

 

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GAES quer “Exame Unificado” reconhecido por Pequim

Depois de Portugal, a República Popular da China. O Gabinete de Apoio ao Ensino Superior está a discutir com o Ministério da Educação o eventual reconhecimento do “Exame Unificado de Acesso das Quatro Instituições do Ensino Superior de Macau” como método de certificação das qualificações dos alunos da região que queiram dar seguimento aos estudos em universidades chinesas, revelou Chang Kun Hong, em declarações à MACAU. Coube ao coordenador-adjunto do GAES a responsabilidade de liderar, no final de Janeiro, uma delegação que se deslocou a Pequim com o propósito exclusivo de discutir a possibilidade com representantes do Ministério liderado por Chen Baosheng.

A República Popular da China está entre os destinos favoritos dos jovens de Macau interessados em dar continuidade aos estudos fora de portas e até há mesmo um número crescente de alunos que procuram as universidades chinesas para estudar português. “Há muitos jovens locais a estudar no Interior do País. Este ano, por exemplo, cerca de 25 alunos de Macau mostraram interesse em frequentar cursos de português em universidades chinesas. É um dado muito curioso”, ilustra Chang Kun Hong.

O coordenador-adjunto do GAES garante que o Governo está a fazer um esforço acrescido para assegurar a convergência do ensino terciário local com os padrões internacionais em domínios como o acesso e a mobilidade estudantil, mas também o intercâmbio académico e o reconhecimento de graus. “Quanto ao reconhecimento de graus, o Governo da RAEM também tem dado muita atenção às outras regiões, no sentido de alargar este mecanismo. O reconhecimento de habilitações em Portugal já está em discussão, o mesmo sucedendo com o Interior do País”, revela o dirigente.