União pela promoção da cultura de leitura

Publica-se, em média, mais do que um livro em Macau por dia. O desafio é fazer com que estas obras encontrem os seus leitores. Editores portugueses falam no desejo de promover o interculturalismo e na dificuldade em manter uma actividade contínua. O Instituto Cultural diz fazer um esforço contínuo para “promover uma cultura de leitura em Macau” e também para apoiar o desenvolvimento do sector editorial local 

Texto Paulo Barbosa | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro 

Mudam-se os tempos, mudam o perfil dos leitores e as formas de ler. Macau é um local profícuo em editores, que publicam centenas de livros por ano. Sem ter livrarias de grande dimensão, a região possui uma rede de bibliotecas públicas vasta e frequentada por pessoas de todas as idades. Mas que tipo de livros se publicam na região? Será que a leitura continua a ser um hábito cultural numa era de smartphones e de rotinas pessoais cada vez mais aceleradas? 

Os dados fornecidos à MACAU pelo Instituto Cultural (IC) indicam que, em 2019, existiam 954 editores registados em Macau no sistema de Número Padrão Internacional de Livro – ISBN. Nesta caracterização de editores estão incluídas escolas, departamentos governamentais e organizações não governamentais, entre muitas outras entidades que não têm como actividade principal a edição de obras literárias.  

A verdade é que grande parte das editoras registadas não está activa. Um relatório recente sobre o estado da publicação livreira em Macau indica que, nos últimos cinco anos, a média anual de editores que publicam livros é de 200. Estes levaram à chancela um total de 601 obras em 2018. Segundo as estatísticas das obras publicadas de Macau entre 2017 e 2018 recolhidas pelo IC, os livros em língua chinesa são maioritariamente de âmbito artístico, seguindo-se os livros de ciências sociais e de língua e literatura. Já os livros publicados em línguas estrangeiras são sobretudo de aprendizagem de idiomas e literatura, seguindo-se os livros de ciências sociais, artes, entretenimento, lazer e desporto. 

Outro dado revelador do acervo livreiro disponível em Macau é que as bibliotecas públicas tinham, no seu conjunto em 2019, 807.968 volumes. Em 2018, foi emitido um total acumulado de 165 mil cartões de leitor e os serviços bibliotecários foram utilizados 2.895.467 vezes. Já no ano passado, registaram-se 494.271 empréstimos de livros e 35.044 empréstimos de materiais audiovisuais. Só em 2019, segundo estatísticas oficiais, as bibliotecas de Macau receberam mais de 3,3 milhões de visitantes.  

De acordo com o registo de empréstimos das bibliotecas, os livros publicados localmente mais populares são os de história, seguindo-se os livros do âmbito jurídico.  

Ricardo Pinto

Desafios de quem edita em português 

Os dados fornecidos pelo IC parecem indicar que o interesse pela leitura em Macau está bem e recomenda-se. Mas será que as novas gerações acompanham o hábito de ler livros que muitos dos cidadãos mais velhos de Macau mostram ter? Ricardo Pinto, director do jornal Ponto Final, fundador do Festival Literário de Macau – Rota das Letras e gestor da Livraria Portuguesa desde 2011, refere à MACAU que a mudança de hábitos de leitura é um fenómeno global. “Lê-se muito mais agora na Internet do que em livros impressos. E na Internet a leitura dirige-se muito mais às redes sociais e a sites informativos do que a obras literárias disponíveis online. Daí a relevância de um evento como o festival literário; daí também a importância de continuarmos a lançar romances ou obras de não ficção sobre Macau, cuja maior proximidade dos leitores ajuda a sedimentar novos públicos”, enumera. “Daí, enfim, a importância da existência de uma Livraria Portuguesa bem no centro de Macau, onde todas as semanas são apresentadas as novidades literárias dadas à estampa dias antes em Portugal, e onde se podem encontrar livros para todos os gostos. Os livros, como alguém disse, são amigos constantes, conselheiros sábios, professores pacientes. Se lidos, naturalmente.”  

O editor e agente literário Hélder Beja, também ele fundador do festival literário local, argumenta que o trabalho de estimular o gosto da leitura entre os jovens passa pelas escolas, mas não só: “Devia haver um programa claro do livro e da leitura para as escolas de Macau – mas também com entidades externas que possam visitar as escolas, levando livros e autores até aos alunos, levando na verdade histórias em qualquer suporte viável. Parece-me evidente, para quem vive na cidade, que não se lê muito nos transportes, nos cafés, etc. Mas também é verdade que as bibliotecas de Macau estão quase sempre cheias. Há, depois, a leitura nos telemóveis, mas trata-se de qualquer coisa muito mais fragmentada, que duvido que tenha ou possa vir a ter muito que ver com livros e literatura. Os livros e a literatura quase nunca foram fenómenos de massas, com excepções. Hoje, muito menos. Seja como for não é por isso que deixam de ter o seu espaço e importância. O livro, a meu ver, continuará a ser relevante”, afirma Hélder Beja. 

Hélder Beja

Ricardo Pinto é também o detentor da PraiaGrande Edições, editora que há quase 30 anos leva à estampa o jornal Ponto Final. Desde o início da sua actividade, a editora publicou livros esporadicamente. Foi o caso, por exemplo, de romances de Henrique Senna Fernandes, Rodrigo Leal de Carvalho, João Aguiar e João Paulo Meneses, publicados em fascículos no Ponto Final por ocasião do 5.º aniversário da RAEM e posteriormente editados em formato de livro.  

No caso da PraiaGrande Edições, a publicação de livros tornou-se regular através do envolvimento na organização do Festival Literário de Macau. Desde a primeira edição do festival, em 2011, livros de contos ou romances sobre Macau têm tido a chancela da editora, que se mantém activa fora do âmbito do festival. “Editámos, por exemplo, um livro trilingue sobre os restaurantes portugueses de Macau, uma obra também trilingue com os cartoons de Rodrigo publicados no Ponto Final, e a última aventura de Michel Vaillant em Macau, esta pela primeira vez em inglês e chinês”, conta Ricardo Pinto. “Estamos a desenvolver esforços para garantir que [estas obras] estejam disponíveis noutros mercados, embora não seja fácil consegui-lo sem apoios de outras instituições”.  

Segundo o IC, existem 115 mil livros em língua portuguesa no catálogo das bibliotecas públicas, 76 mil destes editados em Macau. Apesar de haver um certo recrudescimento da actividade editorial, o desafio de publicar em português na RAEM mantém-se. Ricardo Pinto fala em dificuldades na fase de distribuição dos livros e num número potencial de leitores reduzido.  

Carlos Morais José

Opinião comungada pelo escritor e jornalista Carlos Morais José, outro dos editores que há mais tempo lança livros no mercado local. A sua editora COD procura publicar o melhor que se escreve em português sobre Macau e também traduzir para a língua portuguesa obras emblemáticas da literatura e da poesia chinesa. Foi através da COD que foram republicadas as obras completas de Wenceslau de Moraes, com os seus retratos inesquecíveis de Macau e do Japão pelo fim do século XIX. Foi também a COD que publicou, em 2009, a edição bilingue dos poemas intemporais de Han Shan, traduzidos para português pelo sinólogo António Graça de Abreu.  

Mas Carlos Morais José, ele próprio um poeta e romancista com vários livros publicados, admite que é “basicamente impossível” manter uma actividade editorial contínua em língua portuguesa Macau. “Implica sempre um grande esforço pessoal e não há uma estrutura que permita manter as coisas a funcionar, dar emprego a pessoas, tornar isto uma indústria.”  

Há, no entanto, luz ao fundo do túnel. Morais José identifica outros campos – para além do económico – em que Macau pode ter um papel de plataforma. “Macau tem muitas possibilidades. Uma delas é ser lugar de tradução da cultura chinesa para língua portuguesa. O segundo é divulgar escritores de Macau, em língua inglesa e portuguesa. Eventualmente divulgá-los também fora de Macau. E em terceiro lugar ter um centro de debate e construção literária, quer em língua portuguesa, quer noutras línguas”, defende. Para o autor d’O Arquivo das Confissões: Bernardo Vasques e a Inveja, é essencial que seja delineada uma estratégia para divulgar a cultura chinesa em língua portuguesa.  

Medidas de apoio à leitura 

Em declarações à MACAU, o IC afirma que “tem vindo a promover desde sempre uma cultura de leitura em Macau e de apoio ao desenvolvimento do sector editorial local”. O organismo cita como parte da sua estratégia de promoção do livro iniciativas como a “Semana da Biblioteca de Macau”, que inclui palestras temáticas, visitas guiadas pela cidade e workshops. As actividades mais populares deste evento decorrem no edifício do Antigo Tribunal, no centro da cidade, e consistem na venda, a preços módicos, de revistas que foram adquiridas ao longo do ano anterior pela rede de bibliotecas públicas e na troca livre de livros entre participantes.   

Para os mais novos, o IC organiza todos os todos os sábados e domingos sessões de leitura para crianças e famílias, que pretendem cultivar o hábito de ler desde tenra idade através da narração de estórias, de jogos e de trabalhos manuais. 

A nível do apoio ao sector editorial local, a Agência do ISBN de Macau foi criada no ano 2000, sendo responsável pela promoção do ISBN na RAEM, por forma a ajudar os editores locais a integrar-se no sistema de uniformização internacional. 

Com o objectivo de incrementar o número de canais de distribuição de publicações culturais locais, o IC lançou, em Junho de 2018, o “Plano de Distribuição das Publicações Culturais de Macau no Exterior”, que permite que publicações locais cheguem a mercados como o de Hong Kong, entre outros.  

Em colaboração com a Fundação Macau, o IC tem participado em feiras do livro de diferentes regiões, expondo e comercializando várias publicações locais no Pavilhão de Macau. O IC tem igualmente apoiado a organização de feiras do livro locais, participando anualmente na Feira do Livro da Primavera, na Feira do Livro de Macau e no Festival Cultural de Livros do Outono – Feira do Livro de Macau.  

O instituto destaca também o protagonismo que tem vindo a ganhar o Festival Literário de Macau, que descreve como “o primeiro grande evento de intercâmbio literário e artístico de sempre entre a China e os países de língua portuguesa, contando anualmente com a participação de escritores, cineastas, músicos e artistas de todo o mundo”. 

Ricardo Pinto, defende também que o evento que dirige “tem tido um impacto bastante significativo no reavivar do interesse pela literatura em Macau e, designadamente, pela literatura de Macau”. Segundo Pinto, o festival incentiva também a que se escreva mais sobre Macau, através de concursos de contos e de convites aos participantes para que o façam a seguir a cada edição. Ao proporcionarem contacto directo entre o público e algumas das mais importantes personalidades do mundo das letras, tanto das nações lusófonas como da China e de muitos outros países, os organizadores do festival pretendem gerar um maior interesse pelas obras em foco e pela literatura em geral.  

Ricardo Pinto destaca ainda o impacto das visitas dos autores participantes a escolas de todos os níveis de ensino. E acredita que este esforço será “particularmente importante na formação de novos leitores e talvez mesmo de futuros escritores”.