Canções do exílio pelas ondas da Rádio Pequim

Há 60 anos, um improvável grupo de brasileiros iniciava o ensino universitário de Português na China 

Texto Caio César Christiano* 

No filme “Breakfast at Tiffany’s” lançado em 1961 – intitulado “Bonequinha de Luxo” e “Boneca de Luxo”, respectivamente, no Brasil e em Portugal – a personagem Holly Golightly, vivida pela icônica atriz Audrey Hepburn, tem o plano de deixar para trás uma vida de privações através de um relacionamento de interesse com o político brasileiro José da Silva Pereira. Em seus esforços de preparação para uma nova vida no continente sul-americano, Holly recorre ao que de melhor oferecia a tecnologia da época, na forma de um curso de língua portuguesa por meio de discos (que o mundo moderno, em sua obsessão em recriar o antigo, batiza pelo metonímico termo “vinil”). De notar que o sotaque nas gravações dos discos é claramente o do português europeu, o que poderia potencialmente causar a Holly certa quantidade de embaraços, caso tivesse vindo a efetivamente realizar o seu plano de emigração. 

O que o filme de Blake Edwards, lançado há quase 60 anos – baseado, por sua vez, em conto de Truman Capote publicado em 1958 – ajuda a contextualizar é uma situação geral do mundo no início dos anos 1960. Um mundo em que o Brasil, vindo de uma estonteante fase de crescimento com o governo do estadista Juscelino Kubitschek, atrai as atenções e sonhos dos cidadãos do “primeiro mundo”, ainda sem suspeitar do longo e duradouro pesar que traria a ditadura militar que abateria o país a partir de 1964. Um mundo em que ricos políticos brasileiros mantêm relações obscuras com o governo dos Estados Unidos, onde passam boa parte de seu tempo entre festas, romances e coquetéis. Um mundo em que o estrangeiro interessado em aprender a língua de Drummond e de Clarice Lispector – à época, ainda ativos e em plena explosão criativa – tem à sua disposição pouquíssimas opções.  

É neste contexto que, no extremo oposto do planeta, na China de Mao Zedong, a língua portuguesa começa a dar os seus primeiros passos no ambiente universitário.  

O português além das Portas do Cerco 

Um pequeno volume de autoria do tenente da cavalaria portuguesa Bento da França Pinto d’Oliveira Salema publicado pela Companhia Nacional, em 1890, dá conta da pobre situação das instituições educacionais de Macau que, segundo o autor, “está muito abaixo das necessidades” do território. Mais adiante, relata, em grafia da época, a existência em Macau de “um curso de língua portugueza para os Chinezes”. Pode-se enxergar neste fato a prova cabal da histórica timidez dos esforços que envidava a metrópole na difusão da língua portuguesa em sua antiga colônia asiática, já que um único curso seria indubitavelmente insuficiente para ensinar os rudimentos do idioma de Camões a uma população de cerca de 25 mil chineses. Ao mesmo tempo, o relato pode também atestar um dos prováveis pioneiros cursos de Português como Língua Estrangeira de que se tem notícia em todo mundo (é bem verdade que os jesuítas se dedicavam ao ensino de línguas já há alguns séculos, mas a língua servia essencialmente como meio para a catequização, sem ser, em si mesma, o objetivo principal).  

Até o momento da fundação da RAEM, ocorrida em 1999, mesmo passado mais de um século do relato de Bento da França, a situação quanto à difusão da língua portuguesa em Macau não tinha sofrido grandes alterações. O censo de 2001 indica um número de 2810 falantes de português para 373 mil falantes do cantonês. Estes números referem-se obviamente aos falantes de língua materna, mas as oportunidades para se aprender o português em Macau estavam longe de ser abundantes, o que torna possível e correto afirmar que, nos últimos 20 anos, estuda-se mais português em Macau do que jamais antes na história.  

O ano de 1960, momento em que o Governo Central decide iniciar o ensino universitário de língua portuguesa na China, coincide com um período em que as relações diplomáticas entre Portugal e a República Popular da China, liderada por Mao Zedong, praticamente inexistem. Explica-se, desta forma, o fato de os portugueses, apesar da presença secular em Macau, terem tido pouca ou nenhuma influência na criação do primeiro curso de língua portuguesa no Interior da China, mais precisamente em Pequim, há exatos 60 anos. Coube assim a um grupo de brasileiros o pioneirismo no ensino de português no interior da China, ainda que suas trajetórias de vida dificilmente levassem a imaginar que seriam os iniciadores de uma vertente universitária que nos dias atuais se encontra em ampla expansão. 

Português através do rádio 

Na verdade, o primeiro curso universitário de português na China nasce como consequência direta da criação de um Serviço de Português na Rádio Pequim. A emissora já possuía programas em espanhol desde 1957, mas decidiu ampliar sua penetração na América Latina, com o intuito de atingir também o Brasil. Na terminologia atualmente utilizada na área da pedagogia de línguas, este tipo de curso seria classificado como “Ensino de Língua Para Fins Específicos”. Incumbiu-se da realização do primeiro curso de português, iniciado em 1960, o Instituto da Radiodifusão de Pequim – atual Universidade de Comunicação da China. Em abril do mesmo ano, deu-se a primeira emissão em português da rádio. Os locutores chineses relatam que praticamente aprendiam a pronunciar as palavras portuguesas presentes nos textos nos momentos que antecediam as gravações.  

Shang Jintang (ou Alexandre), que mais tarde viria a integrar a equipe da rádio, fez parte da primeira turma de português do Instituto de Radiodifusão e relatou, certa vez, acerca das dificuldades de aprender uma língua tão distante, e para a qual não havia nenhum material didático disponível. Lembrou também com saudade dos esforços da professora brasileira Mara Mazzoncini, engenheira de formação e que foi a primeira professora de português numa universidade do Interior da China. Mesmo sem falar chinês e sem qualquer material à disposição, o curso de Mara certamente gerou frutos para seus 14 alunos. Entre eles estava Fan Weixin, que mais tarde se tornaria o premiado tradutor para o chinês de obras de Jorge Amado e José Saramago.   

Mara não foi a única brasileira a se reinventar como professora de português no Império do Meio. Numa época em que a especialização no ensino de línguas estrangeiras praticamente inexistia, era normal que os professores fossem oriundos das mais diversas profissões. Quando, durante seu programa de entrevistas, o entrevistador Antônio Abujamra perguntou ao jornalista brasileiro Jayme Martins, outro dos pioneiros no ensino de português no Interior da China, como ele tinha ido parar no país em 1962, recebeu como resposta “fui lecionar português como professor improvisado”.  

“Improvisados” como professores, tradutores ou radialistas tinham sido também os outros cidadãos brasileiros que já se encontravam no território chinês aquando da chegada de Jayme. O casal formado pelo aeronauta Benedito de Carvalho e pela professora Lídia de Carvalho já se encontrava em solo chinês desde 1958. Tinham vindo preparar o terreno para o início das transmissões em português. Como não dominavam o mandarim, traduziriam as notícias da seção espanhola para o português. Em não havendo locutores na rádio que dominassem o português, destacou-se duas jornalistas chinesas do departamento de espanhol Yao Yuexiu e Ma Enlu que receberam a árdua tarefa de aprender o português antes do início das transmissões. Benedito e Lídia de Carvalho, mesmo sem formalmente trabalhar no Instituto de Radiodifusão, fizeram as vezes de professores de língua portuguesa para as duas locutoras. O trabalho surtiu efeito, como comprova o fato de as duas terem continuado por anos a fio a trabalhar nas emissões em português. Mais tarde, chegaria à rádio mais um casal brasileiro, vindo desta vez da área da cultura. O poeta Carlos Frydman, de origem polonesa, e a violinista pernambucana Nair Rotman. A necessidade de mais chineses que falassem português levou o Governo Central a olhar para Macau, de onde foi recrutado mais um casal para integrar o elenco da Rádio de Pequim: Li Jinchun e sua esposa Chen Huijin. Li Jinchun já tinha certo conhecimento de português e era, à época, intérprete do governo português em Macau, enquanto Chen Huijin era professora. Ela tinha acabado de iniciar um curso de português ministrado por Luís Gonzaga Gomes, mas acabou por abandonar o curso para ir trabalhar em Pequim junto ao marido. Para facilitar a intercompreensão entre alunos e a professora Mara Mazzoncini, o Instituto de Radiodifusão convidou Li Jinchun para auxiliá-la nas aulas, razão pela qual os alunos da primeira turma o consideravam como professor do curso, apesar de não ter formalmente exercido a função. 

Os motivos que haviam levado tantos casais brasileiros a se instalarem na China estavam longe de ser puramente pedagógicos ou radiofônicos. A perseguição política aos membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tinha atingido o seu ápice durante o Estado Novo brasileiro, voltava paulatinamente a crescer e tinha levado uma série de ativistas ao exílio nos países do eixo soviético. Benedito de Carvalho, por exemplo, era amigo pessoal de Luís Carlos Prestes, o fundador do PCB.  

Em 1962, quando Nair Rotman e Carlos Frydman puderam finalmente voltar ao Brasil, Jayme Martins, à época jornalista do jornal Última Hora, foi convidado para substituí-los. Ao chegar à China, sentiu-se só e obteve autorização para que sua noiva, Angelina Picchi, também viesse à China (ambos se casaram previamente por procuração, pois não convinha que uma moça solteira de família fosse para tão longe antes de se casar). Jayme e Angelina permaneceriam na China pelas próximas duas décadas antes de regressarem ao Brasil. Ainda no início dos anos 1960, mais um casal brasileiro chegaria para completar a equipe. A professora Rosália Guimarães Galianno veio a ser a segunda professora de português do Instituto de Radiodifusão, enquanto seu marido, o publicitário Alfredo Guilherme Galianno, passou a trabalhar na rádio. 

O legado inesperado 

O português continua até hoje a ser ensinado na Universidade de Comunicação da China, mas não mais de forma solitária. Nestes últimos 60 anos, desde a criação do primeiro curso de português, já são quase 60 as instituições de ensino superior em que se pode estudar a língua portuguesa no território chinês. Os professores de português de origem chinesa já ultrapassam as duas centenas e marcam também presença os leitores portugueses e brasileiros que vêm à China testemunharem sobre as suas culturas e demonstrarem a cor local do seus sotaques, ao mesmo tempo que adquirem uma rica experiência intercultural que muitas vezes altera o curso de suas vidas. 

E, no entanto, tudo começou com um pequeno grupo de brasileiros que, impedidos de permanecerem em sua pátria, foram obrigados a se reinventar como professores e tradutores sem nunca imaginar que, ao mesmo tempo, acabariam por criar uma conexão indelével entre a China e a lusofonia, plantando as sementes para o início dos estudos da língua portuguesa na China.  

*Caio César Christiano, franco-brasileiro, é professor adjunto do Centro Pedagógico Científico da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau. O autor escreve em Português do Brasil.