Lai Chi Vun, onde Macau tem outro tempo

Lai Chi Vun vai ter nova vida. O Governo decidiu que parte dos lotes qualificados na zona dos estaleiros de construção naval em Coloane vai ser preservada pelo “valor cultural” daquela que foi uma das maiores indústrias de Macau

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

É uma das indústrias mais antigas de Macau e foi das mais pujantes do território. A construção naval está intimamente ligada ao desenvolvimento da cidade, ainda que tenha sido por causa desse desenvolvimento que acabou por se extinguir. “A indústria naval deixou um legado rico de muitas tradições, história, tecnologia, cultura, religião e património que engloba valores culturais únicos”, refere o Instituto Cultural à MACAU.

“Este sítio tem uma relação directa com a globalização e a rede de navegação mundial, e é também por isso que é tão relevante”, salienta David Marques, presidente da Associação de Moradores da Povoação de Lai Chi Vun. “Muitos dos barcos de pesca que andavam no mar tinham de ser reparados e vinham aqui. Traziam novos produtos, tecnologia e materiais. Lai Chi Vun acabava por ser parte de uma rede de comércio mundial”, explica Marques, que faz parte da minoria que ainda habita a vila.

Foi em Lai Chi Vun que cresceu e onde quis permanecer, seguindo as pisadas da família. Recorda o avô, que tinha uma espécie de mercearia ambulante num junco que abastecia os pescadores que raramente vinham a terra. As histórias que ouviu e as que protagonizou tornaram-no uma das vozes mais activas da preservação de Lai Chi Vun e da essência que a caracteriza. David Marques insiste que esta aldeia é uma peça fundamental para se entender a história de Macau. “Temos o Museu Marítimo que explica como o mar foi determinante para Macau, mas não de que forma foi relevante para cada parte do território. A construção naval era uma parte fundamental da cidade porque era por mar que quase tudo chegava a Macau. Sem mar, não havia Macau.”

Há outras singularidades que tornam a vila única, reforça. Por norma, zonas como Lai Chi Vun são denominadas de baías, mas como a localização da aldeia tem o formato de uma tigela, com a montanha de um lado e o oceano do outro, começou a ser chamada pelos moradores de Vun 碗 (tigela) em vez de Van 灣 (baía), cuja pronúncia em cantonês é muito similar, e deixou de ser Lai Chi Van para passar a ser chamada de Lai Chi Vun. 

O futuro

Recentemente, o Governo anunciou que o lugar antes ocupado pela indústria naval vai albergar um projecto que tem por base outra indústria, tão determinante para a economia de hoje como foi a naval noutros tempos. A pensar na dinamização do turismo e da cultura, e depois de estudos e consultas públicas, ficou decidido que parte dos Estaleiros Navais de Lai Chi Vun vai ser revitalizada. A cumprirem-se os planos divulgados pelo Instituto Cultural – ainda sem prazo de conclusão – vão ser criados espaços para eventos relacionados com as indústrias criativas e culturais, como feiras e salas de exposições, nos lotes X11 a X15 e no X19.

Revitalizar e preservar foram a tónica das sugestões apresentadas pelo arquitecto italiano Marco Imperadori e de alunos de mestrado do Instituto Politécnico de Milão, que estudaram e projectaram a zona há alguns anos. “A história não é só a dos vencedores, que é a história das igrejas, dos castelos e palácios. A história também é a história das pessoas. Lai Chi Vun é muito interessante por causa dos habitantes e pelo modo de vida, que são outras formas de património”, salienta o arquitecto italiano em entrevista à MACAU.

O tempo que passou em Lai Chi Vun e o que investiu a estudar o local deixaram claro que Coloane, e especificamente a pequena vila, são os únicos espaços que destoam do resto. “Espero que Coloane não se torne um segundo Cotai. É a única coisa que não faz falta a Macau porque já há muita oferta. Lai Chi Vun pode ser o sítio para onde se vai descansar, comer e ter contacto com outros contextos. Mesmo nas cidades dinâmicas tem de haver espaço para o ritmo lento que identifica Lai Chi Vun.”

O arquitecto defende a preservação dos estaleiros, mas também do contexto que lhes estava associado. “O valor da história também depende de como a população acredita nela. Em Itália acreditamos muito. É por isso que mantemos os monumentos e o que está para além deles. A memória é um resultado de várias texturas de uma vila e cidade. Se mantivermos a actividade de um sítio, mantemos a tradição”, realça.

Não foi ao acaso que propôs que os estaleiros em bom estado se convertessem num género de museu da história da indústria naval, onde haveria um artesão a construir o mesmo barco sucessivamente, mostrando aos visitantes o ofício que moldou a economia local e Lai Chi Vun.

O passado

Lee Kam Fai lembra-se bem desses tempos. Na década em que se dedicou à construção naval, dividia-se entre os estaleiros de Macau e os de Lai Chi Vun, onde começou quando tinha 20 anos em 1980. Abandonou a indústria em 1989, quando o sector começou a declinar, para ingressar na função pública, ainda que nas férias voltasse ao ofício tradicional.

Chegou a haver zonas de construção nas três áreas da região, onde o sector se desenvolveu praticamente em simultâneo. Em Macau, os estaleiros navais concentravam-se entre a Avenida do Almirante Lacerda e o Patane, através da Doca do Lamau; na Taipa, ficavam entre o Templo do Pak Tai, a Ponte Negra e o Jardim do Cais, e em Coloane foi em Lai Chi Vun que se ergueram os estaleiros, construídos pelos próprios construtores navais e onde foram realojados os de Macau e da Taipa, na década de 1990. 

“Arranjávamos sobretudo barcos da China. Havia meses sem muito trabalho, mas depois não parávamos durante dois anos. Havia marcações para a temporada toda com esta antecedência”, recorda à MACAU.

O antigo construtor conta que pouco falava com os pescadores. Das raras vezes que vinham a terra era para limpar os barcos e acordar com os patrões dos estaleiros os prazos para virem buscar as embarcações, que normalmente demoravam cerca de um mês a serem reparadas. “Não ficavam em Macau à espera. Iam embora noutros barcos e depois voltavam.”

O estaleiro onde trabalhava em Lai Chi Vun tinha cerca de 18 empregados. A maioria vivia na vila, ao contrário de Lee Kam Fai, uma excepção no conjunto de funcionários dos estaleiros, quase todos eles habitantes da zona ou de Coloane. “Havia muita gente, mas era uma tranquilidade. Era muito agradável. Tinha uma forma de estar completamente diferente. Toda gente se conhecia.”

Desde que abandonou o ofício, poucas foram as vezes que voltou. Diz que já não conhece ninguém e o ambiente também não o atrai. “Há poucas famílias e os estaleiros estão todos destruídos.” E logo desabafa: “Foi uma pena o declínio. Nunca mais ninguém aprendeu, não há indústria, nem onde se aprenda”. Confessa que gostava que os estaleiros fossem preservados. “Era uma forma de dar a conhecer aos turistas uma das indústrias mais importantes de Macau.”  

Os Estaleiros Navais de Lai Chi Vun – construídos a partir da década de 1950 – são hoje o maior grupo de estaleiros navais em Macau e um dos maiores legados de património industrial da construção naval da região do sul da China. “Do ponto de vista da análise dos valores culturais, apresentam técnicas e métodos relacionados com a construção naval no final do século XX, revelando igualmente a organização e o modo de vida da comunidade da vila de Lai Chi Vun e as influências que tiveram do sector da indústria naval”, explica o Instituto Cultural. “Os valores culturais também estão relacionados com a envolvente paisagística, que foi preservada ao longo da história, nomeadamente no que se refere à ligação entre os estaleiros e a água, bem como no que se refere à ligação entre os estaleiros e a colina”, acrescenta a mesma nota.

Foi em 1984 que foi fundada a Corporação de Construtores Navais (Gong Sim Hong Vui Kun), que assinala o início do associativismo na construção naval na cidade. Em chinês, o nome significa que era um lugar de reunião entre patrões e empregados.

O IC refere que a maioria dos proprietários dos estaleiros tinha sido aprendiz e funcionário, e que, por isso, as relações entre o patronato e a mão-de-obra eram boas. Como prova, o documento do IC mostra um contrato de trabalho de 1968 que reflecte o acordo entre empregadores e empregados na concertação sobre os horários de trabalho, remuneração, regras, termos de aumento de salário e questões sobre o direito de negociação colectiva que beneficiasse os trabalhadores. “Isto constituiu uma orientação e referência posteriores para o sistema de protecção dos trabalhadores de Macau.”

Comunidade

A natureza do próprio ofício acabava por contribuir para a proximidade entre patrões e empregados, que aprendiam com a prática e através dos ensinamentos dos mais experientes. Para lhe ser concedido o estatuto de “construtor naval qualificado”, por norma, o candidato tinha de estar num estaleiro durante três anos e receber uma recomendação do proprietário. Era ainda critério para exercer a profissão estar inscrito na Associação dos Construtores Navais de Macau. Só os membros da associação tinham permissão para exercer.

Além de garantirem os salários, os empregadores eram obrigados a contribuir para um fundo de protecção dos trabalhadores. As contribuições eram recolhidas por membros da associação que visitavam os estaleiros com regularidade. Os montantes serviam para assistência médica e para as despesas da associação.

Paralelamente à actividade, e por causa dela, cresceu uma comunidade que foi aliando à indústria outras instituições com o intuito de apoiar e garantir recursos aos trabalhadores e familiares. Na década de 1950, por exemplo, a Associação dos Operários dos Estaleiros de Macau abriu a Escola dos Filhos dos Operários dos Estaleiros, cujos alunos eram maioritariamente filhos dos construtores e crianças que viviam perto. Começou por ser apenas de ensino primário, acabando por se estender ao primeiro ciclo. Acabaria por fechar em 1975, quando mais escolas abriram em Macau.

Hoje a vila já não é o que era. Apenas uma dezena de famílias persiste na zona pacata junto à água, onde resistem paredes meias com negócios que florescem em resposta ao turismo crescente em Coloane.

David Marques é a última geração que conheceu a Lai Chi Vun de brincar na rua, sem carros, onde as ruas viravam campos de badmínton e ainda se sentia o cheiro a madeira. Hoje o cenário é diferente, mas o presidente da Associação de Moradores continua a sentir que é singular.

“Lai Chi Vun é uma forma de estar em Macau, completamente diferente do resto da cidade. Há um sentido de comunidade. As pessoas conhecem-se, falam, dizem bom dia!“, descreve.

Com o intuito de dinamizar a vila, também ele criou um projecto comunitário, depois de se aperceber dos poucos hábitos de leitura. A “pequena biblioteca gratuita” – sob forma de uma pequena casa com menos de um metro de altura –, foi feita com materiais que caracterizam as habitações e estaleiros e serve o propósito de troca de livros.

A utilização de máquinas e o desenvolvimento dos barcos, que passaram por exemplo a ter motor, levaram a mudanças inevitáveis no modo e técnicas de construção. “A construção naval de Macau sofreu um período de transição para a era moderna e que atingiu o cume no decorrer de duas década”, sublinha o IC.

O organismo público acrescenta que grande parte dos barcos construídos e reparados nos estaleiros de Lai Chi Vun era de pesca, ainda que houvesse alguns de habitação, que desapareceram na década de 1980. “Não eram grandes e eram usados especialmente para secar peixe e para viver”, detalha o IC.

O pico da indústria haveria de ser sucedido pela queda face ao desenvolvimento de Macau. A construção naval acabou por decair como sucedeu com outras áreas, à medida que a economia da cidade se foi reestruturando. “A construção naval é um capítulo essencial e glorioso na história da indústria. Para tentar recriar os gloriosos dias da indústria naval de Macau, criou-se um roteiro para revisitar a construção naval na esperança de conservar a memória desta importante indústria local”, vinca o Instituto Cultural.

O arquitecto Marco Imperadori enfatiza que Lai Chi Vun é um símbolo de uma tradição asiática, muito chinesa, que não pode ser ignorado. “Macau resulta de uma enorme fusão. Perder Lai Chi Vun é o pior que pode acontecer a Macau.”