FESTIVAL FRINGE

A cidade feita palco

Um dos objectivos do Fringe é promover novas formas de arte performativa
Singular, alternativo e original. São as características que artistas e outros representantes da área das indústrias criativas e culturais destacam sobre o Fringe, cuja edição de 2022 decorre entre 12 e 23 de Janeiro. O festival, com mais de 20 anos de existência, é considerado uma aposta ganha por desafiar os conceitos de palco, público e artistas. O espaço público é o lugar de cena e é consensual que o detalhe faz diferença

Texto  Catarina Brites Soares

É CONHECIDO por ser o festival alternativo de Macau. A maior proximidade entre público e artistas é uma das características que o distinguem de outros eventos locais. Nas cerca de duas semanas em que anualmente invade o território, o Festival Fringe da Cidade de Macau faz da rua palco e assim chama às artes performativas até aqueles que tradicionalmente não as procuram.

Disperso e variado, foi assim concebido para chegar a todos e a todo o lado. Jardins, praças, mercados e largos acolhem teatro, dança, exposições interactivas e outras manifestações artísticas de um cartaz que abarca os mais diversos grupos da sociedade.

Este ano, o Fringe decorre entre os dias 12 e 23 de Janeiro, subordinado ao tema “Quebra da Margem” (ver caixa). O festival, sob organização do Instituto Cultural, está na sua 21.ª edição e apresenta 20 espectáculos.

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A Associação de Arte e Cultura Comuna de Pedra, criada em 1996, é um dos vários grupos locais que cresceu com o Fringe. Jenny Mok Sin Ting, que lidera a associação teatral, não consegue precisar quantas vezes a Comuna de Pedra já participou no festival, mas garante que foram bastantes.

“A Comuna de Pedra tem participado no Festival Fringe quase desde a primeira edição”, diz. “Foi importante para nós, tendo em conta que, inicialmente, éramos um grupo de teatro muito focado no que é local. O Fringe abriu realmente o espaço público à arte e fez dele um palco”, elogia a dirigente cultural. Segundo acrescenta, o perfil do certame foi evoluindo ao longo dos anos, com um maior grau de institucionalização, incluindo ao nível dos locais de espectáculo.

O encenador Jose Ku Ieng Un, também ele participante repetente no Fringe, valoriza o evento sobretudo por ser um estímulo aos que estão a dar os primeiros passos no mundo das artes. “O financiamento é sempre uma preocupação para artistas e associações. Os subsídios públicos usualmente exigem um mínimo de três anos de experiência”, explica. Porém, os critérios são mais flexíveis para integrar o programa do Fringe. “O festival é importante na medida em que abre as portas a quem está a começar e permite que tenham visibilidade”, afirma.

Igual sentimento tem Mao Wei, do grupo MW Dance Theatre, com base em Macau e Hong Kong. O coreógrafo da região vizinha, que faz dupla com a artista local Tracy Wong Choi Si, considera que o Fringe se distingue por procurar que arte e cultura entrem na vida quotidiana da população. “Foi isso que nos fez participar. A arte deve chegar a todos, incluindo aos que acham que não sabem o que é e que não mostram grande interesse”, defende. “É um festival com muitos anos e tem sido uma ajuda para levarmos o nosso trabalho a mais gente”, garante.

Salto para outros voos

Jose Ku não tem dúvidas do impacto da participação no Fringe no que toca à sua carreira artística. O Estúdio de Arte de PO, com quem participou no Fringe no ano passado, estreou-se no festival com a peça “F’art for U”. O espectáculo de teatro, que tinha lugar em casa dos espectadores, procurava redefinir as artes performativas e explorar os prós e os contras da comercialização e do imediatismo das produções artísticas. 

“Após a participação no festival, fomos convidados para o Festival de Artes de Hong Kong e tivemos outro convite do Instituto Cultural”, diz Jose Ku. “Conseguimos uma visibilidade que dificilmente teríamos de outra forma e foi assim que surgiram mais oportunidades”, exemplifica.

A maior proximidade entre público e artistas e as performances alternativas são características que distinguem o Fringe

Jenny Mok, da Comuna de Pedra, salienta a possibilidade de colaborações inesperadas que o festival proporciona. “Agora é mais complicado devido à pandemia, mas em edições anteriores trabalhámos com artistas de Hong Kong, Taiwan, Japão e até do México”, recorda.

No âmbito do Fringe, a associação também criou em 2021 o seu próprio “mini-festival”. Segundo Mok, trata-se do primeiro certame em Macau ligado às artes performativas de carácter inclusivo. A edição desde ano do “Todos Fest!” – no qual participam pessoas com deficiência mental e física – volta a ter lugar integrada no Fringe. “Lançar o ‘Todos Fest!’ através de uma plataforma como o Fringe deu muito mais força ao evento”, constata Jenny Mok. “Em 2023, já poderemos estar por nossa conta e risco”, orgulha-se.

Foi também com a ajuda do Fringe que o MW Dance Theatre investiu na curadoria e conseguiu que o projecto “On-Site” passasse de ideia a realidade, integrado no festival por três anos consecutivos, desde 2019. O conceito baseava-se em tirar dançarinos de Macau e do Interior da China dos palcos convencionais e colocá-los a actuar no seio da malha urbana da cidade, em locais como o Largo do Pagode do Bazar, o Jardim da Fortaleza do Monte ou o terraço da Ponte 9. 

“O Fringe ajudou-nos muito a progredir”, nota Mao Wei. O encenador realça o processo de aprendizagem ligado à organização da série de espectáculos de dança contemporânea que compunham “On-Site” e como isso mudou a forma como encara o que faz. “Em vez de me focar no que a arte me pode trazer, passei a estar centrado no que posso dar à sociedade através da arte.”

– LER MAIS | Espaço privilegiado de criatividade

Jose Ku resume: “O Fringe funciona como um trampolim”. Entre outros motivos, pelo facto de garantir uma estrutura e apoio que, consequentemente, tiram peso das costas dos artistas. “Não temos preocupações com financiamento e divulgação, por exemplo, e temos muito mais tempo para a parte criativa. Isso para mim significa liberdade”, realça.

O encenador acrescenta que “o Fringe é um espaço privilegiado onde conhecemos o que outros artistas estão a fazer”. Na sua opinião, “é uma boa oportunidade para se experimentar novas ideias e testar”.

Prova disso é o projecto que Jose Ku apresenta para a edição deste ano do Fringe. A convite da curadora Connie Ao Ieong Pui San, Ku lidera o espectáculo “Inquilino”, a decorrer no Bairro do Iao Hon. A proposta é simples: o público fará de “inquilino” – com mapas na mão, à procura de apartamentos para “arrendar” no Iao Hon –, tentando bisbilhotar a vida e as memórias dos residentes do bairro. O objectivo é levar os participantes a testemunhar o crescimento e transformações daquela comunidade.

Para lá do óbvio

O vice-reitor da Universidade de São José, Álvaro Barbosa, especialista em indústrias criativas, defende que o Festival Fringe tem “um papel extremamente importante” no panorama local. “Macau tem uma programação cultural substancial, mas muito focada na arte e cultura ‘mainstream’. Festivais como o Fringe trazem a oportunidade de exposição a dinâmicas mais alternativas que de forma nenhuma são menos importantes do que as tendências preferidas pelos grandes públicos”, afirma.

O académico – que também já participou no Fringe enquanto criativo – realça que, “sem a oportunidade de incubar ideias empreendedoras nas formas de expressão mais experimentais e menos populares, nunca poderão surgir as grandes ideias inovadoras que movem as grandes economias”. Isto é especialmente verdade para as indústrias culturais e criativas, sublinha. “Um festival como o Fringe, que promove precisamente este tipo de formas de expressão, tem um papel catalisador que é essencial num local de grande crescimento como Macau.”

O festival inclui diversas actividades paralelas, desde palestras a workshops

A presidente da associação Art for All, Alice Kok Tim Hei, reitera a relevância do evento e recorre à experiência pessoal para o demonstrar: depois de completar os seus estudos artísticos em França em 2004 e voltar ao território, foi pela mão do Fringe que começou a demonstrar o seu talento. “Participei no Fringe com outros colegas da Europa. Foi uma oportunidade determinante para me integrar na esfera artística de Macau”, recorda a também dirigente cultural.

Alice Kok destaca o carácter experimental como o ex-líbris do festival. “O incentivo a que se explorem novas formas de arte, fora das convencionais, é uma característica essencial do Fringe, assim como a interdisciplinaridade que o marca”, acrescenta. 

Álvaro Barbosa sublinha o valor do festival no âmbito das indústrias criativas e culturais e como o sector, por sua vez, é crucial para ajudar a concretizar a diversificação económica de Macau. O académico nota o potencial de interligação entre as indústrias criativas e culturais e os sectores do entretenimento, turismo e hospitalidade, bem como o seu relevo para a internacionalização do ensino superior do território.