FÁTIMA DOS SANTOS FERREIRA, PRESIDENTE DA FU HONG

O fascínio das causas e a serena reminiscência

A solidariedade está-lhe entranhada nos genes, corre-lhe nas veias com a naturalidade de quem respira. Para Fátima dos Santos Ferreira, presidente da Associação de Reabilitação Fu Hong, a predisposição para se colocar ao serviço dos outros despontou quase no berço, numa cidade que sabe ser generosa quando se lhe pede compaixão

Texto  Marco Carvalho

ANTIGA presidente do Instituto de Acção Social, Fátima dos Santos Ferreira abraçou a predisposição do pai para se colocar ao serviço dos outros e uma das mais gratas recordações que guarda dos ternos anos da infância transpira generosidade: a casa onde cresceu enchia-se, a escassos dias do Natal, de órfãos e crianças a quem o destino, de uma ou outra forma, trocara as voltas.

A moradia, na Avenida Horta e Costa, sobreviveu à voragem do tempo e alberga hoje o Conservatório de Macau. Mas a Macau de Fátima Santos Ferreira tem tanto de tangível, como de incorpóreo. Nela se cruzam a insustentabilidade da memória e a consistência dos lugares, piqueniques domingueiros no Jardim de Camões e Verões infindáveis no areal, então longínquo e vazio, de Cheoc Van. 

Num território em metamorfose constante, que se fez ao mar e se lançou aos céus, pouco permanece inalterado. O que nunca mudou e que, na opinião da fundadora da Associação de Reabilitação Fu Hong de Macau merece realce, é a generosidade das gentes da cidade: “Os residentes de Macau são muito solidários. Estão dispostos a ajudar, qualquer que seja a situação para a qual se lhes pede apoio”. 


Berço solidário

A CIDADE era outra e os tempos mais simples, afirma Fátima dos Santos Ferreira, sem qualquer cintilação de mágoa ou de condescendência. Na Avenida Horta e Costa, onde passou os anos dourados da infância, bandos indomáveis de crianças partilhavam a via pública com autocarros e bicicletas, uma chuva de risadas entrava pelas portas entreabertas: “Naquela altura, nós podíamos estar na rua a brincar com os vizinhos, a porta aberta, sem grandes problemas. Hoje em dia, isso não é possível”, recorda. 

Fátima dos Santos Ferreira cresceu no 1.º andar do número 14 da Horta e Costa, onde actualmente funciona o Conservatório de Macau. A casa, diminuta para uma família com sete crianças, ficava ainda mais pequena na altura do Natal: “O meu pai costumava ir aos orfanatos buscar os jovens que não tinham a possibilidade de ter um Natal diferente, uma refeição de Natal. O meu pai levava-os para a nossa casa e nós é que os servíamos”, lembra. 

Para Fátima dos Santos Ferreira, servir tornou-se desde muito cedo um mantra. A 15 de Março de 1971, depois de ter estudado Serviço Social em Portugal, tornou-se a primeira assistente social do território.


Verão azul

A UMA hora, um outro mundo. Antes de Portugal se insinuar na geografia sentimental de Fátima dos Santos Ferreira, o areal de Cheoc Van proporcionava como que uma incursão a um outro plano do cosmos, uma fuga desejada à pacatez de Macau: “Fazíamos piqueniques, subíamos às montanhas e tudo o mais. Faz parte da minha memória”. 

Os pais construíram uma pequena casa – “foi a minha mãe que concebeu o desenho” – com vista desafogada para a pequena enseada de Cheoc Van e para o imenso Mar do Sul da China e nem a inexistência de benesses hoje dadas como adquiridas roubavam encanto às longas noites sob as estrelas.

“Nessa altura não havia electricidade. Recordo-me bem do Petromax. Quando chegava a noite, nós tínhamos que bombar o Petromax para ter luz, porque não havia electricidade e não havia gás. Para cozinhar, usávamos fogareiros de petróleo”, recorda.


À sombra do bardo

O QUE faz de Macau uma cidade sem par em todo o mundo? Fátima dos Santos Ferreira tem a resposta na ponta da língua: “As várias comunidades que aqui coexistem pacificamente”. 

Em poucos locais uma tal coexistência é tão evidente como no Jardim de Camões, sustenta. À sombra de canforeiras e figueiras-da-índia, sob o olhar inexorável do poeta, velhos estrategas movimentam com paciente ponderação as peças do xadrez-elefante. 

Dos ramos das árvores pendem gaiolas e, dentro delas, pintassilgos e outras aves canoras enchem as horas mortas da tarde de maviosos duelos e transformam o jardim numa sala de concertos. O retrato é contemporâneo, mas o fascínio da evocação é intemporal.

“Nos feriados, o meu pai costumava organizar piqueniques. Nós – os amigos que ele convidava – íamos fazer o piquenique para o Jardim de Camões. Depois passeávamos por lá e ele contava a história do Jardim, de Camões. Isso é algo que fica”, garante.


Curvas da Guia

“NÃO me recordo agora se são 23 ou 33 curvas”, releva desde logo Fátima dos Santos Ferreira. A colina da Guia sempre foi uma varanda sobre Macau, o mirante ideal para se tomar o pulso a uma cidade em constante expansão, mas o que a ínclita macaense recorda com maior arrebatamento são as viagens, hoje impossíveis, que fazia em família pela agora pedonal Estrada do Engenheiro Trigo.

“Seguíamos nos carros e contávamos as curvas, uma a uma. Na minha infância, os carros circulavam por ali e era um passeio agradável. Íamos de carro para lá, dávamos a volta e depois o meu pai estacionava o carro algures e fazíamos o nosso passeio higiénico”, salienta.

Macau cresceu, as práticas mudaram e novas necessidades emergiram. Quando se aposentou, em Dezembro de 1998, ao fim de quase três décadas de serviço, sentiu-se sucumbir a um incómodo vazio e foi a colmatar uma dessas necessidades – a de uma associação que desse apoio a adultos portadores de deficiência – que encontrou uma segunda vida. Assim nasceu a Associação de Reabilitação Fu Hong.