Astronomia

À caça de novos cometas e planetas

A exploração espacial é uma prioridade da República Popular da China, não só através do desenvolvimento da estação Tiangong – ou “Palácio Celestial” –, mas também do lançamento de um conjunto de missões lunares. Cá em baixo, o Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária, na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, está a dar um forte contributo para promover um conhecimento mais detalhado do cosmos

Texto Vitória Man Sok Wa

Foi algo que apanhou muitos de surpresa: em Abril deste ano, Macau saltava para as parangonas da imprensa internacional à boleia do académico Hui Man To, líder de um grupo internacional de cientistas que tinha acabado de determinar a dimensão do núcleo do maior cometa jamais identificado. As notícias colocavam também em foco o Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária, na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla inglesa), ao qual Hui Man To pertence.

Aprovado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia da República Popular da China, o laboratório, também conhecido por SKLPlanets, foi estabelecido formalmente em Outubro de 2018, no seguimento de trabalho efectuado nesta área pela MUST desde pelo menos 2005. A unidade é o primeiro laboratório de referência do estado na China especializado em astronomia e ciências planetárias. É um dos quatro laboratórios de referência do estado em Macau, sendo que uma destas unidades – o Laboratório de Referência do Estado para Investigação de Qualidade em Medicina Chinesa – foi estabelecido conjuntamente pela Universidade de Macau e pela MUST.

Hui Man To é um dos elementos mais destacados do SKLPlanets. Ainda antes de coordenar o estudo sobre o maior cometa jamais descoberto, o académico tinha tido a honra, em Junho de 2021, de ver um asteróide baptizado com o seu nome – (51166) Huimanto –, por proposta do Observatório Lowell, nos Estados Unidos, em homenagem às realizações do cientista no campo da astronomia.

Menos de um ano depois, Hui foi então o autor principal de um estudo responsável por determinar a dimensão do C/2014 UN271 (Bernardinelli-Bernstein), “nome de guerra” daquele que é o maior cometa jamais identificado: possui um núcleo com uma massa de cerca de 500 biliões de toneladas e um diâmetro de até 135 quilómetros – bastante maior do que a vizinha ilha de Hong Kong, por exemplo. Em termos de comparação, o cometa Halley, um dos mais conhecidos do grande público, possui um diâmetro de apenas 11 quilómetros, sendo que um cometa típico possui cerca de 1,6 quilómetros ou menos.

Hui Man To liderou a equipa internacional que determinou a dimensão do núcleo do maior cometa jamais identificado

Publicado no jornal científico “The Astrophysical Journal Letter”, a investigação contou com a colaboração do norte-americano David Jewitt, astrónomo de renome internacional ligado à Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA, na sigla inglesa), assim como de Max Mutchler, cientista associado ao Space Telescope Science Institute, em Baltimore, nos Estados Unidos. Yu Liang Liang, outro elemento do SKLPlanets, também participou no trabalho. O resultado constitui uma proeza assinalável, para mais referindo-se a um corpo celeste a cerca de três mil milhões de quilómetros de distância do Sol, movendo-se a uma velocidade de 35 mil quilómetros por hora.

Descoberta de grande dimensão

Nascido em Guangzhou, na vizinha província de Guangdong, Hui Man To licenciou-se em física na Universidade de Wuhan, também no Interior da China, e completou um doutoramento em ciências planetárias na UCLA, onde colaborou com David Jewitt. Em declarações à Revista Macau, o académico explica que os cometas têm sido o objecto principal das suas investigações no campo da astronomia.

“Estes corpos celestes contêm material activo (como água em forma de gelo) que sobrou da formação do sistema solar; ou seja, são o material que resta mais antigo do sistema solar. Estudar os cometas permite-nos traçar a história evolutiva do sistema solar”, explica. “Como os cometas são mais susceptíveis a mudanças à medida que se aproximam do Sol, precisamos de investigar os cometas o mais antigos possível e o C/2014 UN271 é um desses.”

O corpo celeste foi identificado pelos astrónomos Pedro Bernardinelli e Gary Bernstein, e a sua existência foi oficialmente anunciada em Junho de 2021. A descoberta foi possível através da utilização de um programa informático para processar imagens do espaço, munido com um algoritmo específico para identificar objectos trans-neptunianos (isto é, que orbitam o Sol a distâncias médias superiores às do planeta Neptuno). Ao tomarem conhecimento da existência do C/2014 UN271, Hui Man To e os seus colegas rapidamente suspeitaram que este poderia ser mais do que um cometa normal.

“Para confirmar a nossa suposição, escrevemos sem demora uma proposta de utilização e solicitámos o uso do telescópio espacial Hubble, para observar o cometa”, recorda o académico. O telescópio é fruto de uma parceria entre os programas espaciais norte-americano e europeu.

Imagem do C/2014 UN271 (Bernardinelli-Bernstein), aquele que é o maior cometa jamais identificado, obtida pelo telescópio espacial Hubble

O pedido foi inicialmente rejeitado pelo Comité de Alocação de Tempo do telescópio, sob a alçada do Space Telescope Science Institute. O grupo liderado por Hui Man To não baixou os braços e uma nova proposta submetida pelo académico foi eventualmente aprovada. A 8 de Janeiro, o Hubble ajudava a obter a confirmação necessária, através de cinco fotografias: após os necessários cálculos ficou claro que era, sem dúvida, o maior cometa jamais identificado.

Yu Liang Liang, cientista do SKLPlanets que também participou no projecto, foi responsável por verificar, através de um modelo radiométrico, que o núcleo do C/2014 UN271 era de facto o maior de entre todos os cometas já conhecidos. Licenciado em física dos materiais pela Universidade de Nanjing e com um doutoramento em astronomia obtido na MUST, o académico explica à Revista Macau que a sua função foi ajudar Hui Man To nos cálculos e verificações que contribuíram para confirmar então a descoberta histórica.

“O feito principal desta investigação foi poder calcular o brilho absoluto do núcleo do cometa através de fotometria de alta precisão (imagem óptica) do cometa C/2014 UN271, utilizando o telescópio Hubble”, refere. De acordo com Yu Liang Liang, “como se verificou que o brilho absoluto deste cometa era superior ao dos descobertos anteriormente, foi possível inferir que o tamanho do núcleo do cometa era maior do que o dos restantes”.

O investigador expressa a sua satisfação com a descoberta. “Este sucesso foi possível graças ao esforço do Professor Hui para assegurar tempo de observação no telescópio Hubble, o que permitiu obter dados de alta qualidade”, indica. “O resultado final foi fruto da boa observação e cooperação da nossa equipa.”

Uma estrela brilhante na RAEM

Em anos recentes, a investigação espacial tem sido uma prioridade para a China, com a realização de várias missões de exploração lunar e de uma missão a Marte. Inserido nesse desígnio, as autoridades centrais escolheram Macau como destino para acolher o Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária, graças às “vantagens geográficas e políticas” do território, explica à Revista Macau o director do SKLPlanets, Zhang Keke. O académico salienta, em particular, o segundo aspecto: Macau segue o princípio “Um País, Dois Sistemas”, o que “facilita a união entre equipas de investigação científica chinesas e estrangeiras”.

O Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária foi criado pela Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau em 2018

Zhang Keke sublinha o apoio que o laboratório tem recebido do Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). “Desde o estabelecimento do SKLPlanets, em 2018, o Fundo para o Desenvolvimento das Ciências e da Tecnologia de Macau tem apoiado activamente os trabalhos do laboratório”, refere. As autoridades da RAEM têm colaborado na gestão da unidade, “especialmente no que toca à introdução de talentos, às condições de investigação científica e à logística administrativa”, diz o académico. “A Administração Espacial Nacional da China também nos tem apoiado muito.”

Em menos de cinco anos de existência, o laboratório já obteve resultados significativos no campo da exploração espacial e das ciências planetárias. A unidade tem vindo a desenvolver investigações ligadas à origem e evolução da Lua, atmosfera e estrutura interna de planetas gigantes, evolução dos asteróides, e geologia, atmosfera e campo magnético de Marte, entre outros tópicos. Além disso, os cientistas do SKLPlanets têm colaborado com várias instituições nacionais e estrangeiras, com o objectivo de desenvolver e lançar o primeiro satélite científico de Macau, projecto que arrancou oficialmente em 2019.

Entre os exemplos de colaboração do SKLPlanets com o programa espacial chinês contam-se o envolvimento na primeira missão de exploração não tripulada da China a Marte, através do envio da sonda Tianwen-1 ao “planeta vermelho”, a qual pousou no seu objectivo em Maio de 2021. O laboratório foi também a única instituição de fora do Interior da China a ser seleccionada para receber, por empréstimo, parte das amostras lunares recolhidas em 2020 pela sonda chinesa Chang’e-5, para estudo e análise.

Grupo multidisciplinar e internacional

O director do SKLPlanets sublinha que a instituição funciona como um laboratório internacional típico, contando com especialistas provenientes da Europa e Estados Unidos, além do Interior da China. “A existência de uma equipa com talentos de topo, recursos humanos suficientes e uma estrutura operacional são essenciais para o desenvolvimento do laboratório”, defende Zhang Keke.

O SKLPlanets conta actualmente com 29 docentes, além de 28 investigadores de pós-doutoramento. “Catorze membros da equipa são mulheres”, enfatiza o director.

O Laboratório de Referência do Estado para a Ciência Lunar e Planetária conta com uma equipa internacional de investigadores

Antes da pandemia da COVID-19, o SKLPlanets tinha em curso um programa de intercâmbio com a UCLA, o que permitia que dois especialistas do laboratório visitassem a universidade californiana a cada semestre. Coincidentemente, foi através deste programa de intercâmbio que Hui Man To – quando ainda estava associado à UCLA – conheceu Yu Liang Liang. A ligação entre o laboratório e a UCLA acabou também por ser o motivo que trouxe Hui Man To para Macau.

“Inesperadamente, não pude continuar o meu trabalho original nos Estados Unidos devido à pandemia, mas conhecia o SKLPlanets graças ao seu programa de intercâmbio com a UCLA. Macau tem uma localização privilegiada, sendo um ponto de intercâmbio entre a China e o Ocidente, permitindo-me não só continuar a colaboração com colegas estrangeiros, mas também desenvolver a minha relação com a China. Foi por isso que escolhi Macau”, recorda Hui Man To.

Por razões semelhantes, o português André Antunes, que lidera o grupo de investigação em astrobiologia do SKLPlanets, também escolheu a RAEM como a base para as suas investigações.

“A escolha da China em instalar o seu primeiro laboratório de referência estatal para as ciências lunares e planetárias em Macau foi uma feliz coincidência que abriu a porta para que me mudasse para a ‘nossa’ RAEM”, afirma. “A oportunidade de trabalhar com uma ligação directa ao programa espacial chinês, e o convite para lançar aqui a área de astrobiologia, pareceu-me uma proposta irrecusável”, conta à Revista Macau. 

Uma janela para a ciência do mundo

Com experiência profissional no Reino Unido, Alemanha, África e Médio Oriente, André Antunes acredita que a exploração espacial é um desígnio nacional de enorme importância para a China e uma área em expansão, com projecção internacional cada vez maior. “Assistimos actualmente a uma ‘corrida a Marte’, com a intensificação da procura de sinais de vida passada ou presente, sendo que o próximo grande alvo será o estudo dos oceanos das luas geladas de Júpiter e Saturno”, diz o cientista. “A China está claramente na linha da frente da investigação e exploração espacial.”

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O investigador realça também que Macau tem uma oportunidade única de se afirmar como um ponto central a nível nacional no campo da astrobiologia. Segundo acrescenta, o território pode fazer valer a sua vocação de ponte entre o Oriente e o Ocidente, facilitando a formação de equipas internacionais e promovendo o diálogo e colaboração entre investigadores de ambos os lados.

Hui Man To concorda. O académico acrescenta que esta é uma vantagem que a cidade pode aproveitar, para servir como um centro para intercâmbios internacionais na área da astronomia.

O director do SKLPlanets diz esperar que, “com o forte apoio contínuo da sociedade e do Governo de Macau”, o laboratório se possa tornar um importante cartão de visita da RAEM a nível científico, ajudando o território a cooperar de forma aprofundada com outras instituições de investigação científica da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e do exterior, aproveitando ao máximo as vantagens e os recursos da cidade.

“Esperamos que a presença do SKLPlanets ajude a criar condições mais favoráveis ao desenvolvimento local de talentos científicos e tecnológicos, estimulando o poder de liderança de Macau no campo da ciência espacial e na exploração do espaço profundo”, conclui Zhang Keke.