A associação naTerra foi criada por jovens de Macau para, através da promoção de técnicas de agricultura sustentável, estimular o desenvolvimento em Timor-Leste. A formação é a aposta principal do grupo que, nos últimos anos, se reinventou. Hoje, é uma organização não-governamental timorense. As actividades da naTerra já terão beneficiado, directa ou indirectamente, mais de oito mil pessoas
Texto Marta Melo
Há mais de uma década que a associação naTerra, criada em Macau em 2008 por um grupo de cinco jovens, trabalha com a comunidade timorense. A ideia de um projecto comunitário foi sendo alimentada por Fernando Madeira “desde os tempos de escola, em Macau”, onde cresceu. Timor-Leste acabou por ser o destino escolhido depois da declaração de independência do país, em 2002. “Em vez de irmos fazer o que quer que fosse na Tailândia, faria muito mais sentido Timor, por causa das raízes que temos, da ligação, da proximidade e também pela necessidade”, recorda.
Patrícia Pereira, André Madeira, Hugo Oliveira e Vera Piteira eram os restantes membros da associação, que teve Macau como “o ponto de encontro”. “Dos cinco, três tinham crescido em Macau”, assinala Fernando Madeira, actual vice-presidente da naTerra.
Foi em Baucau que a associação começou por se instalar com a missão de criar um centro demonstrativo de educação para o desenvolvimento sustentável. Na missão da naTerra, recorda André Madeira, está a criação de modelos de agricultura sustentável, adaptados à realidade e à capacidade de Timor-Leste. Um dos exemplos que dá desses modelos é “a criação de jardins” com plantas úteis e comestíveis integrados em espaços públicos, como escolas ou centros de organizações locais. Outra referência é “a maximização da produção alimentar em zonas rurais”, com recurso a técnicas “relativamente acessíveis”, de modo a que possam ser “replicadas pela população local sem necessidade de apoio externo”.
A saída de Timor-Leste por parte de quatro dos membros iniciais da naTerra deixou Fernando Madeira sozinho aos comandos da associação e tornou inevitável a sua reformulação. “Já estava enterrado em trabalho e não conseguia fazer tudo”, recorda. Em 2015, nascia a naTerra-Timor-Leste, agora como organização não-governamental (ONG) timorense.
De Ataúro a Aileu
Com uma nova equipa, mas a mesma missão, a naTerra focou-se na criação de um centro de formação na ilha de Ataúro. Um projecto, descreve Fernando Madeira, “maior e mais ambicioso” do que o primeiro, também “fruto de toda a aprendizagem” adquirida ao longo dos anos.
Para este centro, a associação contou com parceiros de peso: a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla inglesa), agência especializada das Nações Unidas, e a ONG global Conservação Internacional. O financiamento chegou através de verbas disponibilizadas pelo Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul, ao qual as três organizações se candidataram em conjunto. “A naTerra, sendo uma organização minúscula comparada com estes gigantes, tinha metade do valor para criar o centro. Eles dedicavam-se mais à formação, a criar manuais, por exemplo”, assinala Fernando Madeira.
As actividades da naTerra têm-se centrado em diversas áreas, da agricultura à aquacultura, da conservação dos solos e da água à produção de produtos naturais. O agro-turismo é também uma aposta. Nesta área, destaca-se o projecto agro-ecológico de turismo comunitário de Taliforleu, no município de Aileu, a cerca de 40 quilómetros de Díli, capital de Timor-Leste.
Segundo Fernando Madeira, uma preocupação é que as acções de formação tenham uma componente prática forte. “Quando vamos dar formação em aquacultura, criamos lagos, com peixes”, exemplifica.
O presidente da associação, Leovogildo Belarmino, estima em mais de 600 os participantes nas formações em permacultura – de promoção de práticas agrícolas sustentáveis – e nas acções nas escolas levadas a cabo pela naTerra. Outras 1220 pessoas terão beneficiado directamente dos projectos envolvendo o grupo e sete mil de forma indirecta. “O resultado não é contabilizado em dinheiro, mas em acções, usando recursos locais e conhecimento locais, valorizando o lado humano e a vida sustentável do povo”, salienta.
As comunidades desfavorecidas são o principal destinatário das actividades da naTerra, razão pela qual a associação se tem instalado em locais mais remotos em Timor-Leste. Como foi o caso na ilha de Ataúro: “O sítio que arrendámos era um terreno de dois hectares que não tinha nada. Não tinha água. Não tinha electricidade”, recorda Fernando Madeira. Mesmo o acesso só era possível por um trilho, numa caminhada de até quatro horas, ou de barco.
Além das mulheres, a ONG tem centrado o trabalho nos jovens, por serem mais abertos à mudança. “Os jovens e as crianças estão cheios de vontade e cada vez mais, com o acesso à internet, vêem muitas coisas que acontecem lá fora e têm muito mais motivação. E passa por eles, obviamente, o destino do país”, sustenta o vice-presidente.
A pandemia da COVID-19 foi, no entanto, um travão às actividades. Em especial em Ataúro: “Estávamos a dar formação em hospitalidade, para ensinar como receber turistas, quando se dá a COVID-19. Ficou tudo em ‘águas de bacalhau’”, lamenta Fernando Madeira.
Resultados positivos
Neste percurso da naTerra em Timor-Leste, é unânime que os resultados são positivos e visíveis. Para Fernando Madeira, uma prova que as pessoas absorvem o que lhes é ensinado são as fotografias que muitos enviam depois à associação do que estão a fazer nas suas casas e lugares. “É muito inspirador e o objectivo foi sempre o de servir de modelo”, conta.
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Já Leovogildo Belarmino, que está com a naTerra desde 2009, inicialmente como voluntário, diz também ver “muitas mudanças na mentalidade da comunidade”, como a “menor dependência em relação a algumas técnicas” mais arcaicas. Outro resultado, diz, é as comunidades conseguirem ser auto-suficientes em termos alimentares.
Actualmente a viver na Austrália, ao olhar para o caminho feito pela naTerra, André Madeira considera “bastante positivos” os resultados alcançados em Timor-Leste. Além de sublinhar que se tratou de um projecto pioneiro, argumenta que a naTerra “teve também um impacto social nas comunidades locais ao fortalecer as pontes de ligação com organizações internacionais”, tendo servido para “quebrar preconceitos” quanto às intenções e gestão destas ONG. E acrescenta: “Organizações como a naTerra são uma excelente influência para Timor, pela forma como se integram na cultura timorense e fortalecem as comunidades locais”.
O papel da associação com as comunidades é também destacado por Jonathan Kempeneer que, em 2011, se juntou ao grupo como voluntário. “Aprendemos as necessidades essenciais, por meio do próprio estilo de vida e da experiência, enquanto vivemos nessas comunidades.” Para Kempeneer, “é aqui que outros falham: fornecer tempo e vontade para não apenas implementar, mas também monitorizar e ajustar quando necessário”.
Papel “fundamental” de Macau
Olhando para o que foi construído pela naTerra em Timor-Leste, André Madeira considera que “Macau teve um papel fundamental”. Foi no território que o grupo se conseguiu financiar inicialmente: tal incluiu um apoio do Governo local. “O fundo com que viemos para Timor era quase metade proveniente do Governo de Macau”, assinala Fernando Madeira.
Com as mudanças dos últimos anos na naTerra, o actual vice-presidente reconhece que o projecto ganhou autonomia face às raízes em Macau. “Fazia mais sentido focarmo-nos aqui e tentarmos delinearmo-nos mais aqui”, explica.
Ainda assim, as relações entre Macau e Timor-Leste, no entender de André Madeira, facilitaram a integração do grupo na comunidade timorense. “Visto que Macau é carinhosamente associado a Timor por factores históricos e culturais, isso beneficiou a forma como fomos recebidos e deu à naTerra maior abertura”, explica. E não é o único a sentir a importância desta ligação histórica: “É sempre um orgulho quando digo que sou de Macau, do Colégio D. Bosco. Sou logo recebido com um irmão”, atira Fernando Madeira.