Os dois templos em Macau associados a Na Tcha estão a registar um “boom” de afluência, fruto da popularidade do filme de animação “Ne Zha 2”, onde a divindade é protagonista. Esperam-se agora enchentes na Festa de Na Tcha, que tem lugar em torno do dia 13 de Junho (18.º dia do quinto mês do calendário lunar tradicional chinês)
Texto Viviana Chan
O filme de animação chinês “Ne Zha 2”, lançado há um punhado de meses, tem feito mais do que entreter: o seu enorme sucesso está a impactar positivamente o turismo em Macau. São muitos os visitantes do Interior da China, mas não só, que agora incluem nos seus roteiros os dois templos locais dedicados a Na Tcha – a formulação em cantonense do mandarim “Ne Zha”. A “febre” gerada pela longa-metragem, onde a divindade está em destaque, tem vindo a dar nova visibilidade a este património.
Ip Tat, presidente da comissão administrativa de um dos templos, o que fica junto às Ruínas de S. Paulo, numa das áreas mais emblemáticas de Macau, expressa espanto com o impacto do filme: “Estamos extremamente gratos pelo efeito que ‘Ne Zha 2’ teve. O número de visitantes aumentou várias vezes e até a afluência à Sala de Exposições do Templo de Na Tcha [inaugurada em 2012] cresceu consideravelmente.”
O interesse pela cultura de Na Tcha intensificou-se com a popularidade da animação, destaca Ip Tat, uma das principais figuras locais no que toca à promoção dos costumes ligados à divindade. “Após o lançamento do filme, tanto os turistas do Interior da China quanto os residentes de Macau mostraram um entusiasmo sem precedentes por Na Tcha. A obra também recebeu enorme atenção internacional, atraindo visitantes estrangeiros, especialmente da Malásia e da Tailândia”, afirma.
Cheang Kun Kuong, responsável pelo Templo de Na Tcha na Calçada das Verdades, igualmente nas redondezas da Fortaleza do Monte, confirma o impacto significativo de “Ne Zha 2” na afluência ao local de culto. “Cada vez mais turistas que passam pelo templo entram para conhecer os nossos produtos culturais. Os amuletos, porta-chaves e outros pequenos objectos tornaram-se extremamente populares, com as vendas a crescerem notavelmente”, relata. Questionado sobre uma relação entre o aumento das vendas e o sucesso do filme, é categórico: “Sem qualquer dúvida.”
O perfil dos visitantes sofreu também uma transformação devido a “Ne Zha 2”, nota. Enquanto anteriormente o templo recebia principalmente devotos do Sudeste Asiático e da província de Fujian, hoje, o panorama é outro. “Embora continuemos a receber fiéis, a mudança mais evidente é o extraordinário aumento de turistas que visitam por curiosidade”, explica Cheang Kun Kuong. “Muitos entram espontaneamente enquanto passeiam pela zona. A diferença na afluência é impressionante.” A “Pedra da Aparição”, onde Na Tcha terá sido avistado, “transformou-se num ponto fotográfico muito procurado pelos turistas”, conta.

Os grupos ligados às crenças e costumes de Na Tcha esperam agora um pico de participação na Festa de Na Tcha, que se comemora anualmente no 18.º dia do quinto mês do calendário lunar tradicional chinês. Este ano, as festividades têm lugar em torno do dia 13 de Junho. Durante as celebrações, realizam-se cerimónias religiosas, desfiles festivos e performances tradicionais, como dança do leão.
O grupo de Ip Tat planeia ampliar a duração das suas festividades de cinco dias no ano passado para uma semana inteira, entre 7 e 13 de Junho. A expansão surge como resposta directa ao enorme sucesso de “Ne Zha 2”.
“Queremos capitalizar o entusiasmo gerado pelo filme para promover a cultura de Na Tcha mais amplamente”, revela o responsável. “Preparámos uma programação de sete dias, repleta de actividades para todas as idades: um concurso de trajes de Na Tcha para crianças, demonstrações de Tai Chi, sessões de teatro tradicional de sombras, etc.”
Sucesso sem paralelo
“Ne Zha 2” é já a longa-metragem de animação mais bem-sucedida da história do cinema a nível mundial, sendo também o filme chinês de maior sucesso de sempre. Até ao início de Abril, as receitas globais de bilheteira de “Ne Zha 2”, lançado oficialmente a 29 de Janeiro, ascendiam a mais de 15,5 mil milhões de renminbi (aproximadamente 17 mil milhões de patacas), maioritariamente obtidas no Interior da China, de acordo com dados da plataforma especializada Maoyan. Estava já no top-5 mundial das produções cinematográficas com melhores resultados de bilheteira de sempre, sendo o único filme fora do circuito de Hollywood a figurar na lista.
A animação é uma sequela de “Ne Zha”, lançado em 2019 e que já tinha obtido sucesso significativo no mercado chinês. O enredo, inspirado em elementos da mitologia chinesa, foca-se em torno da divindade Ne Zha / Na Tcha, retratada como um pequeno rapaz com enormes poderes destrutivos.
A reboque do sucesso de “Ne Zha 2”, a crença e costumes de Na Tcha em Macau passaram a despertar um interesse inédito entre quem visita a cidade. A divindade “saltou” do credo tradicional para se tornar num ícone da cultura popular moderna e esses locais de culto beneficiaram com isso.
“Os visitantes não apenas exploram o templo, mas também fazem preces pela saúde”, diz Ip Tat em relação ao templo junto das Ruínas de S. Paulo, falando num fervilhar de actividade e excursões turísticas em fluxo contínuo. “Além disso, os produtos culturais inspirados em ‘Ne Zha’, disponíveis na loja cultural de Na Tcha, na Rua de D. Belchior Carneiro, são muito populares, permitindo que os visitantes levem um pedaço da cultura de Macau para casa”, acrescenta.
Sobre o espaço cultural, Ip Tat diz: “Para além das lembranças temáticas, a nossa loja cultural oferece comidas e bebidas num ambiente que convida à descoberta. Dispomos de exposições interactivas e actividades culturais regulares. O espaço enche-se de grupos turísticos, especialmente às sextas-feiras, segundas-feiras e fins-de-semana. É gratificante ver como os visitantes não só tiram fotografias, mas também se interessam genuinamente pela tradição de Na Tcha – muitos dedicam mais de uma hora a explorar a rica história desta crença tão importante para Macau.”
Protector das gentes locais
A crença e os costumes de Na Tcha constituem uma tradição religiosa com mais de 300 anos de história na cidade. Em 2014, foram inscritos na Lista Nacional do Património Cultural Intangível, integrando também a Lista do Património Cultural Intangível de Macau.
Uma personagem presente em mitos e lendas chineses, Na Tcha é frequentemente representado em Macau como uma criança com poderes capazes de afastar os demónios e evitar desastres. No imaginário tradicional, é uma divindade a quem se recorre em busca de ajuda em casos de pragas, crianças doentes ou necessidade de repelir maus espíritos da cidade. Muitas vezes, é apresentado como patrono das crianças.
Conta a lenda que, na segunda metade do século XIX, Macau foi alvo de epidemias que ameaçavam severamente a população. Foi então que Na Tcha terá aparecido em sonhos aos residentes e os terá instruído a beberem da água que jorrava do cume da Colina do Monte, juntamente com medicamentos à base de plantas. A população assim fez, tendo recuperado a saúde.
Em agradecimento à divindade e para, no futuro, lhe poder continuar a pedir protecção e bênçãos, a comunidade local construiu, em 1888, o Templo de Na Tcha por trás das Ruínas de S. Paulo. Em 2005, o espaço e a área circundante foram incluídos na Lista do Património Mundial da UNESCO como parte do Centro Histórico de Macau.

O templo da Calçada das Verdades é ainda mais antigo. Terá sido construído no início da dinastia Qing (1644-1912). Rezam as crónicas sobre as suas origens que um menino, com grandes parecenças com Na Tcha, foi avistado a brincar com outras crianças no sopé da Colina do Monte, correndo pelas rochas sem se ferir. Os locais consideraram tratar-se de uma manifestação divina e aí, nessas mesmas rochas, construíram um altar dedicado ao deus-menino.
Potencial turístico de Na Tcha
Tendo já visto o filme “Ne Zha 2” por três vezes, Ip Tat elogia a forma como a produção respeitou aquilo que diz ser a essência da divindade. “A animação consegue honrar os valores fundamentais associados a Na Tcha – lealdade, piedade filial e sentido de justiça”, afirma. “O filme não é apenas entretenimento, é também uma poderosa ferramenta educativa que contribui para uma renovada apreciação da cultura chinesa em todo o mundo.”
Cheang Kun Kuong observa diferenças entre a representação cinematográfica e a imagem tradicional de Na Tcha. “As crianças frequentemente comentam que a estátua no nosso templo não se parece com a personagem do filme. Isto é natural, pois a produção teve a sua própria interpretação criativa”, comenta, com um sorriso.
Para os residentes de Macau, Na Tcha tem um significado muito particular, refere o responsável. “A maioria dos devotos são mães de família que pedem a protecção de Na Tcha para que os seus filhos cresçam saudáveis e resistentes a doenças. Por isso, é tão comum vermos mães a trazerem os filhos ao templo para rezar.”
Quanto ao contributo de “Ne Zha 2” para a preservação desta tradição centenária, Cheang Kun Kuong não tem dúvidas: “O filme tem sido fundamental na promoção do espírito de Na Tcha. Assistimos agora a famílias inteiras a visitarem o templo para prestarem homenagem, o que é extremamente benéfico para a continuidade deste património cultural.”

Manuel Wu, vogal do Conselho para o Desenvolvimento Turístico, acredita que o filme “Ne Zha 2” trouxe uma atenção sem paralelo à crença e costumes de Na Tcha em Macau. O responsável sugere que a cidade aproveite a ocasião da Festa de Na Tcha para promover activamente o turismo cultural, transformando as festividades numa nova grande atracção turística. Para atingir o objectivo, recomenda diversificar as celebrações, envolvendo grupos artísticos locais e organizando eventos que remetam para o imaginário associado a “Ne Zha 2”. Também propõe uma parceria com pequenas e médias empresas para o lançamento de produtos temáticos, como menus gastronómicos, inspirados em Na Tcha.
Outra sugestão é o estabelecimento de uma colaboração entre as autoridades de Macau e os produtores do filme, para criar uma área de entretenimento temática próxima ao Templo de Na Tcha junto das Ruínas de S. Paulo. Essa área poderia unir cultura cinematográfica com as tradições de Na Tcha, proporcionando uma experiência imersiva aos visitantes, diz Manuel Wu.
Matias Lao, vice-presidente da Associação para a Reinvenção de Estudos do Património Cultural de Macau, oferece recomendações similares. O sucesso de “Ne Zha 2” pode ampliar o reconhecimento da crença e costumes de Na Tcha em Macau e atrair ainda mais turistas, afirma, sugerindo o desenvolvimento de roteiros culturais temáticos. Além disso, no futuro, explorar outras produções cinematográficas icónicas poderia ser uma estratégia eficaz para fortalecer o turismo cultural na cidade, argumenta.