Jerónimo Reinaldo Calangi

Sabores de Macau para além do cânone

Chef Jerónimo Reinaldo Calangi
Há uma cozinha autóctone de Macau que subsiste para além do cânone da gastronomia macaense? Jerónimo Reinaldo Calangi não só defende que sim, como é um dos seus mais notáveis intérpretes. Para o jovem chef, a confluência de paladares é um dos aspectos que melhor definem a identidade gastronómica de Macau. A cozinha, define, é um local de afectos, onde memória e experiência são ingredientes fundamentais

Texto Marco Carvalho
Fotografia Leong Sio Po

“Fusão, na minha perspectiva, é confusão.” A frase, lapidar e cirúrgica, é atirada para o meio da conversa sem prepotência, mas com a intensidade de um icebergue à deriva num mar de equívocos identitários e de ambiguidade cultural. Nascido em Macau na recta final do período de administração portuguesa, Jerónimo Reinaldo Calangi refere-se, em concreto, ao conceito aplicado ao universo da criação culinária, mas o veredicto assenta que nem uma luva no seu próprio percurso de vida.

Filho de pai filipino e de mãe nascida em Xangai, o jovem chef, de 35 anos, cresceu numa cidade que fez da miscigenação um traço de identidade, numa cidade definida, em grande medida, pelo intercâmbio cultural entre Portugal e a China. “Essa é, provavelmente, a razão pela qual eu prefiro não identificar os pratos que preparo como cozinha macaense. Actualmente, a gastronomia macaense é definida como sendo uma mistura entre a cozinha portuguesa e a cozinha chinesa e aquilo que eu faço é cozinha de Macau”, clarifica Jerónimo Calangi.

“Mesmo nos tempos do [restaurante] Soda Port, nunca procurámos promover o que fazíamos como sendo cozinha macaense. Dizíamos, isso sim, que oferecíamos comida de Macau. Representávamos bem mais do que apenas a combinação dos sabores portugueses e chineses. Servíamos pratos cantoneses, do Sudeste Asiático, de várias proveniências”, acrescenta o actual responsável pela cozinha do “The Apron Oyster Bar & Grill”, situado no empreendimento Galaxy Macau.

Cosmopolita e híbrido, caracterizado pela coexistência secular de culturas, Macau fundamenta a sua identidade numa matriz em que as culturas chinesa e portuguesa são apresentadas como preponderantes. Sancionado e amplificado pela academia, o processo de generalização atira para a penumbra as manifestações e subculturas que não encaixam no cânone identitário e foi à margem do cânone que Jerónimo Calangi encontrou a sua própria voz no universo da criação culinária.

“A minha mãe é de Xangai e cozinhava sobretudo os pratos que se habituou a comer durante a infância e a juventude em Xangai. Tendo crescido em Macau, comíamos com alguma regularidade ‘dim sum’ ou pratos cantoneses, mas diria que cresci sobretudo a comer pratos das Filipinas e de Xangai, o que encaixa na perfeição com aquilo que é a identidade de Macau. Habituei-me, desde muito cedo, a uma mistura de diferentes culturas gastronómicas, mas só relativamente tarde me apercebi dessa influência na minha forma de estar na cozinha”, assume o chef.

Reconhecer o extraordinário é, em qualquer gesta de afirmação pessoal, por vezes o passo mais difícil. A cozinha sempre foi para Jerónimo Calangi um lugar de afectos, de histórias e de partilhas, mas mais do que o produto de uma paixão antiga ou o súbito fruto de uma revelação, a carreira – hoje consolidada – como chef é o resultado de um longo processo de autodescoberta, movido pela curiosidade e por uma busca incessante pela perfeição.

“Quando terminei o ensino secundário, a minha primeira opção era a de enveredar pela indústria da hospitalidade. Não era propriamente a de acabar na cozinha, como acabei. O que procurava era, sobretudo, servir e ajudar a criar momentos especiais. O curso de hotelaria contemplava vários estágios e o estágio que fiz na cozinha foi o que me despertou mais interesse”, admite Jerónimo Calangi.

“E gratificante porquê? Eu diria que um aspecto essencial da carreira como chef é ser curioso, é não deixar de colocar questões e não ter receio de experimentar. Experimentar, testar novas soluções é a única forma de nos conhecermos a nós próprios”, assume o jovem chef.

Singularidade e identidade

No caso de Jerónimo Calangi, a história de autodescoberta culminou numa abordagem muito própria ao universo gastronómico, onde se insinuam com subtileza memórias e sabores do passado, mas também a necessidade de afirmar uma narrativa pessoal com tanto de diverso, como de singular. Mais do que a amálgama de técnicas e culturas gastronómicas, o chef favorece a confluência de sabores, num registo onde todas as experiências contam.

“Consigo identificar algumas influências que me foram legadas pelas experiências que tive na infância e na juventude, mas, ainda mais importante, é a perspectiva de que os pratos devem contar uma história pessoal. Os meus pratos são todos o resultado de uma experiência pela qual passei, de uma memória. Têm origem numa vivência pessoal que me interessa partilhar”, explica.

“Que tipo de rótulo poderá definir a minha forma de estar na cozinha? Diria que a cozinha que faço é cozinha euroasiática. Não se trata de cozinha de fusão porque todos os meus pratos têm origem num prato específico. Aquilo que faço é, pura e simplesmente, acrescentar um toque pessoal, que vá ao encontro da minha própria narrativa”, conta.

Como forma de arte, a gastronomia enfatiza o prazer de comer e de beber através de pratos de excepção e momentos gratificantes, mas, para Jerónimo Calangi, a construção de uma narrativa é parte fundamental da experiência culinária. No breve, mas intenso período em que esteve à frente do restaurante “Soda Port”, que operou na Doca dos Pescadores, o projecto notabilizou-se por afirmar Macau como uma cidade gastronomicamente polissémica, uma terra de confluência de culturas e de paladares.

A experiência foi para Jerónimo Calangi reveladora em mais do que um sentido. “O projecto do Soda Port foi uma plataforma essencial para que eu me compreendesse melhor a mim mesmo, como chef e como residente de Macau. Foi essa experiência que me permitiu perceber o que quero cozinhar e como quero cozinhar”, assume. “Foi lá que me apercebi da relevância e do significado das minhas experiências de infância e de juventude, até porque tive de procurar compreender verdadeiramente a que nos referimos quando falamos de cozinha de Macau. Percebi, desde logo, que a comida macaense, por exemplo, é muito mais do que o resultado de uma mistura entre os sabores da China e do Ocidente. É, acima de tudo, um produto da passagem do tempo, de um número incontável de gerações que a foram moldando e lhe atribuíram as características que hoje a definem”, acrescenta.

“Quem quiser conhecer a cozinha de Macau tem de compreender a cozinha macaense e para compreender a cozinha macaense há que respeitar a tradição, mas também ter a tradição como ponto de partida para seguir em frente. As técnicas de cozinha modernas são muito diferentes do que eram há um ou dois séculos. A cozinha está, por natureza, em constante redefinição. A cozinha macaense está condenada a evoluir e estou certo de que a nova geração de chefes locais vai trazer algo novo a este saber secular”, salienta Jerónimo Calangi.

“De qualquer forma, a gastronomia macaense não é mais do que um expoente de um fenómeno mais vasto. Sempre que alguém prova a comida de Macau, o que se destaca é a familiaridade dos sabores, mas também uma certa estranheza. Só em Macau é possível encontrar pratos com um perfil vincadamente europeu, mas com paladar asiático. Ninguém se lembraria de misturar estes dois aspectos, mas, surpreendentemente, é isso que faz da cozinha de Macau algo incomparável”, remata.