Paula Carion

Da Guia à glória, pela Macau dos afectos

Paula Carion
A conquista, em Novembro de 2005, de uma medalha de ouro na quarta edição dos Jogos da Ásia Oriental, realizados em Macau, ofereceu a Paula Carion uma notoriedade rara, que permanece intocada quase vinte anos mais tarde. Afastada dos tatamis, a antiga karateca continua, porém, a dar cartas nos mais variados palcos. Macau, afirma, é uma cidade incomparável que a ajudou a moldar o seu percurso

Texto Marco Carvalho

O sangue é mais espesso que a água e a memória mais resiliente que a marcha inexorável dos anos. Como dizia Camões, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser e a confiança e o próprio mundo é composto de mudança, mas é na “Macau di tempo antigo” que Paula Carion encontra um excepcional sentido de pertença, a percepção manifesta de que é parte de algo maior, peã infatigável numa realidade que a transcende.

A antiga atleta não se manteve, porém, indiferente à inevitável alquimia dos dias. Em pouco mais de quatro décadas de vida, Paula Carion vestiu incontáveis peles: desportista premiada, tradutora polivalente, activista cultural, actriz amadora, dirigente associativa e embaixadora informal do que de mais genuíno tem a terra que a viu nascer. É, de resto, neste tegumento, o de diligente filha de Macau, que se movimenta como peixe na água. Ou não morasse no amor às raízes o eco mais cristalino da identidade e da alma.

Útero, berço, regaço e casa. Erguida na mais estratégica das colinas da região, o velho baluarte paira com a suavidade de uma nuvem sobre a cidade e insinua-se nas lembranças de Paula Carion com uma primazia desconcertante, quase nefelibata. A praça de armas da Fortaleza do Monte, hoje embelezada e transformada em desembarcadouro turístico, foi para a antiga atleta destino frequente de romagem nos primeiros e despreocupados anos da infância, os vetustos canhões transformados em escorregas, as ameias convertidas numa corda-bamba imaginária, suspensa sobre o casario até onde a vista alcançava.

“Era um dos locais onde o meu pai me levava com bastante frequência. Na altura, há quarenta anos, não havia muito para fazer em Macau e o meu pai levava-me a mim e aos meus primos para correr, saltar e fantasiar entre as muralhas. Era um dos locais mais elevados de Macau, com uma vista privilegiada para toda a cidade”, recorda Paula Carion, que trabalha como intérprete-tradutora no Ministério Público desde 2004. “Gostava imenso de brincar nos canhões. Tanto eu como os meus primos subíamos às peças de artilharia e fingíamos que éramos soldados e que estávamos a defender Macau de uma qualquer ameaça”, complementa a antiga karateca.

Ex-militar, o pai iluminava-lhe a imaginação com relatos do que foi, durante séculos, a única vida que o bastião defensivo teve. Muitos anos antes de o Museu de Macau se ter embrenhado no seu ventre, assegurava José Carion, a Fortaleza estaria ligada ao coração da cidade por túneis lendários, há muito desaparecidos.

“Quando era pequena, o meu pai costumava contar-me histórias de quando estava na tropa, nos anos 70. Ele e os companheiros estavam incumbidos de guardar a fortaleza e ele explicava-me como era o dia-a-dia da guarnição militar, mas também me falava dos túneis secretos que ligavam a Colina do Monte ao resto da cidade e sobre outros locais sigilosos sobre os quais pouco ou nada se sabe hoje em dia. Essa é outra das razões pelas quais a Fortaleza é tão especial para mim”, atesta Paula Carion.


A uma pedrada de distância, por detrás do esqueleto granítico das Ruínas de São Paulo, floresceram algumas das mais valiosas memórias que Paula Carion guarda dos anos dourados da juventude. Outrora conhecida como Rua da Horta da Companhia e baptizada, em 1969, com a actual designação, a Rua D. Belchior Carneiro é como que o cordão umbilical que liga a também vice-presidente da Associação dos Jovens Macaenses às suas origens. Num passado não muito remoto, o clã Carion tinha no Largo da Companhia a sua morada ancestral.

“Era ali que a minha família morava quando o meu pai era pequeno e, quando falo em família, refiro-me a todo o clã: os tios e primos do meu pai, mais próximos ou mais afastados; era ali que viviam todos. A família ainda lá tem uma casa”, confessa a antiga atleta.

Mesmo quando a família se espalhou por outras paragens, dentro e fora dos limites de Macau, o Largo da Companhia continuou a ser, pelo menos duas vezes por ano, um espaço de convergência para os descendentes de João Gregório Carion, que nas primeiras décadas do século XIX aportou em Macau, oriundo de Manila. A área foi até ao final da década de 2000 o incontornável palco das celebrações natalícias dos Carion macaenses.

“Tenho recordações muito gratas das festas familiares de Natal que ali aconteciam. As pessoas eram tantas que invadiam a rua. Boa parte delas mantinha-se dentro de casa, mas dezenas de outras vinham para a rua, conversar, fumar e beber”, lembra.

“As pessoas que moravam naquela zona sabiam que durante dois dias, a 25 de Dezembro e a 30 de Abril, a rua ficava inacessível porque os Carion estavam todos lá. No Natal e no dia de anos do meu tio-avô, já falecido, a família reunia-se no Largo da Companhia para celebrar a força do sangue”, afirma Paula Carion, a voz embargada por detrás de um indisfarçável véu de saudade.


Uma montanha que se escalava de um fôlego, mas também um belveder com vista para a cidade e para a bonomia da infância. Engolida e amuralhada por uma urbe que se jogou vorazmente aos céus, a Colina da Guia foi, pelos séculos dos séculos, o ponto mais alto de uma península de horizontes limitados. Paula Carion cresceu a invejar os pássaros, a querer abraçar com um vislumbre as ruas e as casas e as almas que lá moram. Do alto da Guia, à sombra da primeira luz do Oriente, a improvável liberdade de sobrevoar a cidade tornava-se quase palpável e a aptidão para maravilhar era, aos olhos da ex-atleta, uma das grandes qualidades que a colina oferecia nos mágicos dias da infância.

“O meu avô costumava fazer pequenos trabalhos no Farol da Guia. Não sei exactamente quais, mas o meu pai, quando era pequeno, subia com regularidade ao cimo do farol. Nunca estive onde a luz e os espelhos giram e o fascínio que a experiência suscita continua inalterado”, confessa Paula Carion. “A Guia é outro dos locais onde o meu pai me levava com alguma frequência aos fins-de-semana e uma das razões pelas quais a Guia me diz tanto, tal como a Fortaleza do Monte, é o facto de pairar sobre a cidade, de permitir olhar para Macau com outra envolvência”, assume.

Aos oito anos, Paula Carion trocou Macau pelo Canadá e foi lá que fez do tatami um improvável campo de batalha. Quando regressou a Macau, nos primeiros anos da adolescência, a urgência de transformar a cidade num recreio aberto a incomensuráveis possibilidades esvaíra-se. O deslumbramento que a Guia projectava para além de si mesma, esse, permanece ainda intacto: “É um local especial a vários níveis, nem que seja apenas pelo facto de ali serem içados os sinais de tufão. Há um símbolo diferente consoante a intensidade dos tufões e, durante décadas a fio, para terem uma ideia do risco a que estavam sujeitas, as pessoas voltavam os olhos para a Guia”, argumenta Paula Carion.

“Por outro lado, há o próprio farol. Gosto de pensar que, quando os meus antepassados chegaram a Macau, o farol os ajudou a encontrar o caminho para uma nova vida. Quando era pequena, quando fazíamos a viagem de barco a partir de Hong Kong, o farol era o primeiro sinal de que estávamos perto de Macau. Quando víamos aquela luz dançar na noite escura, sabíamos que estávamos a chegar a casa”, sublinha.

Colina da Guia

Se do alto da Guia e das ameias da Fortaleza do Monte a vista se projecta para o presente e oferece um vislumbre do que poderá ser o futuro, é ao Cemitério de São Miguel Arcanjo que Paula Carion ruma com frequência para desvendar e desbravar o passado: o de uma cidade plural e tantas vezes reinventada, mas também das pessoas que lhe deram corpo e lhe talharam a alma.

Criado em 1854, o campo santo é a última morada do poeta Camilo Pessanha, de Pedro Nolasco da Silva ou de Vicente Nicolau de Mesquita, mas também de muitos dos descendentes de João Gregório Carion. “Pode parecer estranho, mas, para mim, o Cemitério de São Miguel é um dos locais mais tranquilos da zona centro da cidade. Essa é uma das razões pelas quais o visito com alguma frequência, mas não é, no entanto, a única. É um dos meus locais de eleição em Macau porque muitos dos meus antepassados estão ali sepultados. O primeiro Carion que veio para Macau está ali sepultado, numa campa com quase dois séculos. Tenho, portanto, uma ligação muito pessoal com o Cemitério de São Miguel”, sublinha Paula Carion, rosto bem conhecido da trupe de teatro Dóci Papiaçám di Macau.

“Muitas vezes, quando lá vou, gosto de imaginar as histórias de quem lá está sepultado”, reconhece a tradutora. “Macau é uma cidade muito pequena. As famílias, sobretudo as macaenses, conhecem-se todas umas às outras. Por vezes, quando paro em frente de um jazigo, leio a data em que nasceram, a data em que faleceram e procuro imaginar o tipo de vida que tiveram, no final do século XIX ou no início do século XX”, admite.

Paula Carion é parte da oitava geração do clã Carion em Macau e a continuidade da gesta iniciada há quase dois séculos está assegurada. Depois de abandonar o tatami e a competição, a antiga atleta foi mãe, e o filho, agora com cinco anos, aprende aos poucos aquilo que Macau tem de ímpar. “Acho que ele tem noção de que é macaense, que o patuá é uma língua especial. Tento transmitir-lhe a percepção de que estamos numa posição especial. E estamos numa posição especial não por sermos melhores ou piores do que os outros, mas por fazermos parte de uma comunidade com uma cultura única e características muito próprias”, remata.