Unir a terra ao céu

A Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa de Lisboa forma centenas de médicos por ano desde 1992. Para José Faro, director da instituição, a medicina chinesa é a verdadeira escada de Jacob, que une a terra ao céu

 

 

Texto António Larguesa

Fotos Paulo Cordeiro

 

Há uma ponte de conhecimento a perfazer os 10.480 quilómetros que, em linha recta, separam as margens do Tejo lisboeta e do Yangtze que banha a oeste a cidade de Nanquim, capital da Província de Jiangsu. O “cimento” desta infra-estrutura montada em 1996 é a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), ensinada na capital portuguesa em parceria com a Universidade da antiga “capital do Sul”, na China. Num sumptuoso palacete da rua da Estefânia, 200 estudantes mergulham diariamente nas águas agitadas que misturam a teoria ancestral, a prática clínica e o desenvolvimento pessoal e cívico. E só no final do exigente percurso de cinco anos libertam então com esplendor os confessados sonhos fervilhantes de fazer acupunctura em cruzeiros nas Caraíbas, abandonar aos 60 anos uma bem-sucedida carreira na gestão estratégica de marcas ou vir a exercer a profissão em Macau, terra abandonada em 1999 ainda com um choro de criança.

O “aladino” que esfrega esta ambição é José Faro, 56 anos, que lidera uma equipa que conta hoje mais de 30 professores – apenas um não se formou na escola – e dez funcionários. A Escola Superior de Medicina Tradicional Chinesa (ESMTC) surge em 1992 com o núcleo fundador formado por pessoas que aliaram a longa experiência na área do ensino à vocação para a MTC. O director da escola, licenciado em Filosofia e filho de pequenos comerciantes da zona de Arroios, personifica esse perfil. Deu aulas até amadurecer um interesse nascido nos anos 1960 pela Medicina Chinesa. “Pensei: se há um sistema filosófico que é o taoismo que responde a todas as questões clássicas da filosofia e que sem descontinuidades teóricas está na base de um sistema médico que funciona, então encontrámos a verdadeira escada de Jacob, que une a terra ao céu”, relata José Faro. Inscreveu-se em 1983 num curso de acupunctura e três anos depois descontinuou o ensino da filosofia.

No início da década de 1990, o que havia eram “coisas jurássicas, incríveis de arrojo e visão, mas com uma estruturação muito débil”, recorda. Como o Instituto Médico Naturista, onde José Faro teve o primeiro contacto académico com a Medicina Chinesa, e que lançou a primeira massa de praticantes de medicinas não convencionais. A ESMTC arrancou com um curso de três anos e aulas aos fins-de-semana, mas demorou pouco até alargá-lo para quatro anos e aulas diárias. Os alunos precisam hoje de completar cinco anos de aulas diárias, com um dia por semana de estágio clínico logo a partir do segundo ano.

O plano curricular tem uma linha de desenvolvimento clínico que se divide em acupunctura, fitoterapia, dietética, ginástica terapêutica. E outras de desenvolvimento pessoal e cívico que também percorre todo o curso, já que a máquina do exercício clínico é a pessoa em si mesma e o seu grau de maturidade. Além do ensino da cura de doenças – na inspiração da deusa Panaceia –, José Faro graceja que não quer que a Hígia, dedicada à prevenção, se zangue. A ESMTC tem uma área aberta ao público dedicada a tudo o que são factores, até remotos, de promoção da saúde e prevenção da doença.

 

Abrir horizontes em Nanquim

Depois de quatro anos de contactos com várias academias, surgiu em Nanquim a parceria de que a escola precisava como sistema de controlo de qualidade para apresentar publicamente. Uma “amizade antiga” que se mantém até hoje com acordos para a formação de alunos, que ali têm de passar quatro meses em ambiente hospitalar. A diferença é abissal, desde logo ao nível dos equipamentos: só em Nanquim há 28 hospitais de medicina tradicional.

“O aspecto mais interessante é eles perceberem que uma coisa que parece um buraco escondido aqui no Ocidente, lá é metade do sistema nacional de saúde chinês”, valoriza José Faro. Os alunos ficam ainda integrados numa valiosa rede profissional com acesso privilegiado aos avanços científicos. Em sentido inverso, há docentes chineses que passam temporadas em Lisboa, mas José Faro aponta que “o resultado não é entusiasmante” devido à diferença de mentalidades.

O protocolo com a categorizada Universidade de Nanquim – primeira universidade chinesa de medicina tradicional, de onde saíram gerações que depois criaram faculdades em Xangai, Tianjin ou Pequim – empresta um selo de qualidade à escola de Lisboa. No final do curso, os alunos fazem exames elaborados em Nanquim e é-lhes atribuído um diploma com a chancela da academia chinesa. A escola continua a não ser reconhecida em Portugal pela falta de regulamentação da profissão.

Paula Madeira, 47 anos, saída da “primeira fornada” de alunos em 2001, desde que o curso funciona nos moldes actuais, já passou por Jiangsu. Actualmente dá aulas na escola, que tem nas traseiras um jardim tranquilo com árvores de espécies diversas e cinco bancos de madeira em redor de um pequeno lago com repuxo ao centro, além de um pavilhão para aulas práticas. Esta angolana que vive há três décadas em Portugal conta que os alunos “regressam maravilhados da China”.

 

Perfil estudantil em mutação

Estima-se que 3,5 milhões de portugueses recorrem a medicinas não convencionais, entre as quais a chinesa. Em meados da última década o perfil dos estudantes nesta escola alterou-se radicalmente. Se antes eram adultos que queriam mudar de profissão, agora são jovens de 18 anos que se candidatam como primeira opção, o que obrigou à reformulação do quadro pedagógico. Constante permaneceu a exigência e o sucesso ao nível da empregabilidade. José Faro garante que o feedback que recebe dos perto de 300 ex-alunos é “espantoso” e arrisca dizer que “não há desemprego nesta área”.

A confiança é menor entre os actuais alunos da escola, nos corredores de paredes brancas e vermelhas da clínica que funciona no rés-do-chão, onde são atendidas 15 pessoas por dia. A azáfama não transparece para os quatro consultórios e três salas de tratamento, onde a música é relaxante e o cheiro intenso a moxabustão. É numa curta pausa do dia de estágio que a açoriana Joana Mendes, que “sempre quis medicina” mas não teve média para entrar, lamenta que “o mercado de trabalho já esteja muito cheio”. Sem soçobrar, porém, aos 25 anos tem já entrevista marcada numa empresa de cruzeiros com serviço de acupunctura a bordo, que passa por Miami, Caraíbas e Bahamas. Enquanto não parte, os amigos aproveitam-lhe a formação para “pedir muitas massagens” e experimentar os chás e plantas que guarda na despensa.

Com ar mais envergonhado até entrar na conversa, Lúcia Lourenço, brasileira que há 35 anos vive em Portugal, é a excepção à regra dos anos mais recentes. Aos 63 anos está a terminar o quarto ano do curso e ambiciona abrir uma clínica ainda em 2011. Trabalhou em gestão estratégica de marcas até há quatro anos, altura em que resolveu arriscar o velho sonho de abraçar uma carreira na saúde. “Vivi o Maio de 1968 em São Paulo e fui estudar Gestão, mas sempre ficou esse bichinho da parte médica”, pormenoriza. A família acompanha o entusiasmo. “Porque sabe que sou assim, quando quero realizar qualquer coisa corro atrás e ninguém me demove”.

Quem há vários anos tenta demover Joana Rosa, 22 anos, a optar por cursar a medicina ocidental são o pai chinês e a mãe portuguesa, residentes em Macau até à transição. Ainda entrou no curso de Biologia Molecular e Celular até que descobriu a Escola Superior de MTC. Nunca se arrependeu da troca. “Mesmo”, sublinha a jovem de metro e meio de corpo franzino e olhar de vivacidade a tender para o infinito. Quanto ao futuro é igualmente determinada: “Penso imensas vezes ir para Macau”, onde vivem os avós.