Num momento em que a medicina tradicional chinesa ganha relevo na estratégia de diversificação económica de Macau, a professora Elaine Leung Lai Han, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Macau, destaca o papel que a indústria pode desempenhar no reforço do intercâmbio entre a China e os países de língua portuguesa
Texto Nelson Moura
Fotografia Cheong Kam Ka
Existem ainda algumas concepções erradas no que toca à medicina tradicional chinesa, mas essas barreiras continuam a ser rebatidas à medida que as fronteiras entre tradição e inovação confluem. As palavras são de Elaine Leung Lai Han, docente na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Macau (UM) e investigadora responsável por vários projectos já em fase de ensaios clínicos.
“Muitos pensam que a medicina tradicional chinesa é apenas uma sopa escura com um sabor desagradável. Mas a medicina tradicional chinesa está muito mais moderna”, sublinha Elaine Leung.
Segundo a investigadora, “é um equívoco” dizer-se que a medicina tradicional chinesa está menos fundamentada que a medicina ocidental, “visto que a medicina tradicional é utilizada na China há mais de 2000 anos”. A aposta na inovação, adianta, está também a ajudar a indústria a expandir os seus próprios horizontes.
“O que estamos a fazer agora é utilizar o método científico ocidental e a tecnologia moderna para aperfeiçoar o desenvolvimento da medicina tradicional chinesa”, refere a também directora do Centro de Inovação e Empreendedorismo da UM.
A docente explica que, actualmente, os investigadores realizam “análises químicas aos produtos para identificar os seus componentes, usam culturas celulares e recorrem a dados científicos e ensaios clínicos, para garantir a qualidade” dos produtos. “Todos estes métodos científicos modernos podem ajudar a explicar a base científica destes produtos da medicina tradicional chinesa”, afirma Elaine Leung.
Antes de assumir o cargo na UM, Elaine Leung esteve mais de uma década na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (UCTM), onde aplicou técnicas da medicina ocidental para desenvolver a sua investigação na área da medicina tradicional chinesa.
Especialista em investigação relacionada com o cancro do pulmão, a docente procura identificar compostos activos e também fórmulas complexas que possam ajudar no tratamento da doença. Com mais de 200 artigos especializados publicados, a investigadora tem sob a sua alçada 49 patentes e foi responsável por vários projectos desde a bancada do laboratório até à fase dos ensaios clínicos. Em Macau, registou dois produtos que se encontram na fase de ensaios clínicos para doentes com cancro do pulmão.
Investigação, produção e certificação
Segundo Elaine Leung, o então Laboratório de Referência do Estado para Investigação de Qualidade em Medicina Chinesa, actualmente Laboratório de Referência do Estado para Mecanismo e Qualidade da Medicina Chinesa, em Macau – no qual trabalhou como professora assistente –, é “muito importante”, visto que é apoiado pelo Governo Central e pelo Governo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
A docente diz que há actualmente “muita competição por financiamento”, comparável a outras regiões onde estudou, como nos Estados Unidos da América e no Canadá.
O laboratório teve “capacidade para atrair talentos de todo o mundo, graças a uma excelente plataforma de investigação com equipamento e reagentes de topo”, destaca. Foram recrutados “mais de 100 cientistas e uma força de trabalho de cerca de 1000 pessoas – incluindo estudantes, pós‑doutorados e assistentes de investigação –, criando um grupo forte para o desenvolvimento da medicina tradicional chinesa em Macau”, acrescenta.

“O que estamos a fazer é utilizar o método científico ocidental e a tecnologia moderna para aperfeiçoar o desenvolvimento da medicina tradicional chinesa“
ELAINE LEUNG
DOCENTE NA UNIVERSIDADE DE MACAU
Nesse sentido, o Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa para a Cooperação entre Guangdong-Macau, localizado em Hengqin, desempenha também um papel crucial para a expansão da indústria, realça a académica.
De acordo com Elaine Leung, Macau tem as valências necessárias para efectuar as “fases iniciais de investigação” no que toca à produção de novos produtos, mas “a produção à escala industrial terá de ser feita em Hengqin ou outro local no Interior da China”, assegurando-se posteriormente o controlo de qualidade.
Neste âmbito, já começou a ser comercializado o primeiro composto de medicina tradicional chinesa fabricado na Zona de Cooperação Aprofundada entre Guangdong e Macau em Hengqin, pré-autorizado a ostentar a certificação “Produzido sob Supervisão de Macau”. Trata-se do Granulado Shao Yao Gan Cao, usado para aliviar espasmos musculares e dores abdominais.
O desenvolvimento da medicina tradicional chinesa faz parte da estratégia de diversificação económica de Macau, a qual adopta uma estratégia de “1+4”, com o turismo e lazer como sector basilar, apoiando o desenvolvimento de quatro áreas industriais consideradas prioritárias, entre as quais está o sector da “big health” de medicina tradicional chinesa.
A docente da UM defende que a RAEM só terá a ganhar com esta aposta. “Macau é uma cidade turística global, com serviços de excelência. O turismo médico – por exemplo, terapias com ervas, spas, diagnóstico – pode ajudar a reforçar a economia local, tornando a saúde numa componente importante do sector do turismo”, diz Elaine Leung.
Expandir horizontes
Mais do que apenas ajudar à diversificação económica de Macau e integrar a cidade no desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, a região tem a possibilidade de ser um ponto fulcral para a disseminação da medicina tradicional chinesa além-fronteiras, nomeadamente, junto dos países de língua portuguesa, argumenta a investigadora.
Neste contexto, na 6.ª Conferência Ministerial do Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, realizada em Abril de 2024, em Macau, as autoridades chinesas manifestaram a sua disponibilidade para reforçar a formação de quadros qualificados nos países de expressão portuguesa, estabelecendo, naqueles que reúnam condições, centros de medicina tradicional chinesa.
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Elaine Leung recorda que foram efectuadas visitas, em Abril do corrente ano, à Universidade de São Paulo e ao Instituto Butantan, no Brasil. “Há grande potencial para colaborações, inclusive via Macau. Ainda não há laboratórios conjuntos oficiais, mas esperamos que os governos apoiem essa iniciativa”, adianta a docente, que diz querer conhecer mais sobre o que está a ser feito noutros países de língua portuguesa.
Em relação ao Brasil, a investigadora considera que há uma “excelente oportunidade” para exportar produtos da medicina tradicional chinesa. “Em São Paulo, a medicina tradicional chinesa já é bastante usada, especialmente para dores articulares, e vemos que o povo brasileiro aprecia acupunctura e óleos essenciais”, salienta a docente. “Há enorme potencial para colaborações, incluindo a recolha de plantas brasileiras para combinar com ervas chinesas.”
No que diz respeito à investigação sobre o cancro do pulmão, a sua área de especialização, Elaine Leung foi responsável por desenvolver um produto à base de ginseng, num projecto que envolveu a UCTM e o Hospital Kiang Wu.
“O ginseng chamou-me a atenção pelas suas propriedades imunoestimulantes, algo vital para doentes com cancro, cuja imunidade está comprometida”, explica a investigadora. “Pesquisei polissacáridos (fibras insolúveis) no ginseng: embora não sejam absorvidos directamente, o microbioma intestinal pode absorvê-los e liberta componentes activos que reforçam o sistema imunitário”, acrescenta.
Após ter registado o Ginsengcare, foi lançado um ensaio clínico no Hospital Kiang Wu que, segundo a docente, demonstrou que o “produto quase duplicou a taxa de sobrevivência dos doentes”. “Foi extraordinário.”
Elaine Leung sublinha que o cancro do pulmão “tem elevada incidência e mortalidade em todo o mundo, incluindo nos países de língua portuguesa”, razão pela qual pretende expandir os ensaios clínicos do Ginsengcare.
“As soluções da medicina ocidental enfrentam resistência a fármacos e baixa taxa global de sobrevivência, inferior a 15 por cento. Os nossos produtos de ginseng dobram essa taxa, pelo menos em pacientes chineses; queremos agora expandir os ensaios clínicos para países de língua portuguesa”, afirma.



