Culto dos antepassados

Como noutras sociedades agrárias, dependentes da sobrevivência, da vontade desconhecida da natureza e da inconstância dos elementos, também no território onde se fundou a China, a “religião” centrava-se no culto dos antepassados, nos rituais da fecundidade, na adoração dos espíritos, que acreditavam controlar as forças da natureza.

 

Festividades Chinesas 1

 

Fernando Sales Lopes

Historiador, Mestre em Relações Interculturais

 

 

Também na China, como na maior parte das culturas e civilizações, o culto dos antepassados remonta aos primitivos tempos da humanidade, com um papel de destaque nas práticas animistas, divinatórias e xamanísticas.

Como noutras sociedades agrárias, dependentes da sobrevivência, da vontade desconhecida da natureza e da inconstância dos elementos, também no território onde se fundou a China, a “religião” centrava-se no culto dos antepassados, nos rituais da fecundidade, na adoração dos espíritos, que acreditavam controlar as forças da natureza.

As inscrições – numa primitiva escrita chinesa em ossos oraculares da era Shang – em escápulas de animais e carapaças de tartaruga com fins divinatórios indicam-nos a existência de práticas relacionadas com rituais fúnebres e de culto dos antepassados[1].

A prática do culto dos antepassados na China começa a estruturar-se a partir do segundo milénio antes de Cristo (aceita-se como marco de entrada da China na era da história a Dinastia Shang, ca. 1766 – 1122 a.C.) até finais da Dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), a par com o desenvolvimento de conceitos filosóficos e religiosos como o confucionismo e o taoísmo.

Atribui-se ao Duque de Zhou (1122 a.C.) a criação dos ritos com vista a estruturar comportamentos quer na administração do Estado, quer no campo da ética e da moral, do comportamento individual dos cidadãos, quer nas práticas e sacrifícios relacionados com cultos da vida e dos antepassados. Será, contudo, Confúcio (551- 479 a.C.) e os seus seguidores a fixarem em texto uma releitura dos ritos de Zhou[2], no Livro dos Ritos um dos Cinco Cânones de Confúcio. Ritualizar, enfim, a piedade filial (ver caixa).

O culto dos antepassados entre os clãs foi (é) a base onde assentam hereditariedades que fundamentam poderes e dinastias, linhagens guerreiras, administrativas ou terra tenentes, interesses a todos os níveis da sociedade, e até a estatutos que concedem lugares no panteão das divindades.

Tem-se como certo que em nenhum outro lugar, senão na China, o culto dos antepassados se tivesse transformado numa religião, podendo dizer-se ser este culto a verdadeira “religião chinesa”. Sendo, também, verdade que não existe qualquer outro ritual que como o culto dos antepassados, reforce a solidariedade entre as famílias chinesas.

 

A comunidade dos vivos e dos mortos

Para as comunidades primitivas, vivos e mortos partilhavam o mesmo espaço, cabendo aos antepassados o papel de zelar pelo bem-estar dos descendentes que passava, obviamente, pela reprodução e seu sustento, provendo as necessidades da alimentação pela fecundidade dos campos e animais, as boas caçadas, e as vitórias sobre grupos inimigos.

Durante a Dinastia Shang (Idade do Bronze) desenvolve-se uma civilização na bacia do Rio Amarelo cujas descobertas arqueológicas demonstram parecer ter estabelecido relações com outros povos de regiões bem distantes na China, e até com culturas ocidentais que terão contribuído com técnicas de olaria e fundição do bronze. Com a criação de riqueza germina uma classe nobre e urbana em paralelo com a camponesa que trabalha campos e cria animais.

No seio daquela nobreza em ascensão desenvolveu-se uma “religião”, em que o culto dos antepassados terá sido a principal prática. A caça e a guerra criavam relações de amizade e de solidariedade, cimentadas em momentos de glória e de prazer. Em vida e na morte.

Quem acompanhava o rei em vida seguia-o para o além (a outra vida), onde as mesmas glórias e prazeres teriam lugar, como atesta a descoberta, por baixo das câmaras fúnebres dos monarcas, de ossadas de nobres, esposas, concubinas, criados, jovens servidores, e de animais, normalmente cavalos e cães de companhia e de caça.

Este ritual sacrificial violento só se altera na dinastia seguinte (Zhou[3], ou Chou, de c.1050 a 256 a.C. a mais longa dinastia da China), atribuindo-se ao célebre Duque de Zhou a constatação de que se os corpos viravam terra, qual o problema de o morto se fazer acompanhar por estátuas, de barro ou de bronze, de pessoas, animais, objectos essenciais para a vida. No outro mundo, tal como nos sonhos, a uma ordem do falecido tudo se transformará em seres, ou coisas, viventes ao seu serviço.

Embora alguns poderosos tivessem continuado com as práticas antigas, Shi Huangdi, rei do Estado de Chi (259-210 a.C.) primeiro imperador da Dinastia Qin, e unificador da China, construiu o fantástico mausoléu hoje conhecido como o dos guerreiros de terracota, em Xian. Contudo se não fora sacrificado todo aquele exército, o mesmo não aconteceu em relação aos seus construtores, a todos os níveis da hierarquia, que foram executados, embora por outros motivos, pois o que estava em causa não era o serviço na corte do além, mas impedir que alguém no lado de cá soubesse dos segredos da sua construção, e se atrevesse a profaná-lo. O segredo ficou tão bem guardado que só em 1974 o gigantesco complexo funerário, por acaso, foi descoberto quando agricultores vizinhos faziam escavações para construir um poço.

A prática continuou pelas dinastias seguintes variando as tumbas dos grandes em tamanho e estilo, mas mantendo-se a tradição de viajarem para o além acompanhados dos seus objectos pessoais e servidores figurados em cerâmicas, bronzes ou outros materiais. Este ritual fúnebre desenvolveu especiais artes, e técnicas, de trabalhar o bronze e a cerâmica (ver caixa).

Entre o povo se manteve também desde sempre a prática de se fazer acompanhar para o além com os artefactos necessários à nova vida, embora os objectos pelo poder económico de cada um fossem mais pobres em arte e materiais, já que para além do barro o papel foi sempre o mais usado. E como quem nesta vida nada ou pouco tem por falta de condições para ter, pode sempre naquela do outro lado, mas em tudo semelhante à deste (pois os dois mundos se pensam como se um espelho os separasse), ter uma vida melhor se os objectos que o acompanham, ou que lhe são enviados pelo fumo, forem os que nunca teve, mas que sempre ambicionou.

 

 

A Piedade Filial

“Através dos sacrifícios, cada um continua a cuidar dos seus pais, agindo com piedade filial. A piedade filial significa ‘cuidar’, mas cuidar de acordo com os modos e o Caminho e não transgredir as convenções próprias do comportamento. Os filhos devem servir os seus pais de três maneiras: em vida, cuidando deles, na morte fazendo o luto, quando este terminar, sacrificando em sua honra. Cuidar dos pais expressa acordo; o luto expressa tristeza; o sacrifício expressa reverência e atenção oportuna. O comportamento filial reside no cumprimento destas três normas.” (in Livro dos Ritos, “Os Princípios do Sacrifício”)

 

O culto e o desenvolvimento da cerâmica

Desde os seus primórdios a cerâmica chinesa está intimamente ligada ao culto dos antepassados. Historicamente o período neolítico marca o grande desenvolvimento, atestado pelos artefactos encontrados, e que demonstram a multiplicação de objectos, de fornos, e de técnicas de aperfeiçoamento, mostrando a existência de duas culturas distintas, a Yangshao (仰韶文化) (3000-1500 a.C.) e a Longshan (龙山文化) (3000-1700 a.C.). Os objectos encontrados, pelo que representam, e o modo como se mostram as suas decorações, são também eles uma fonte inesgotável de conhecimentos sobre a vida da época a que remontam, nomeadamente quanto às classes socias, profissões, hierarquias, fauna e flora. A título de curiosidade é de referir que o uso constante do chumbo nos vidrados cerâmicos, e o seu exagero nos objectos funerários, levou à morte muitos daqueles que se dedicavam a violar os túmulos para deles extraírem algo de valor.

 

Ceramicas

 

 

 

Espírito e corpo

Começou por se acreditar que depois da morte o espírito continuava ao lado do corpo, já que era essa a sua residência habitual durante a vida, só quando o corpo se degradava o espírito era obrigado a deixá-lo. Assim, preservar o cadáver o mais tempo possível era uma obrigação, não só para que o espírito continuasse a viver junto ao seu corpo conservando a sua identidade, mas também porque só assim os espíritos dos antepassados podiam zelar por todos quantos de si descendiam.

É neste entendimento que se baseia a crença que mais tarde defende a existência de duas (na verdade três) almas no ser humano, a hun que na morte se tornava shen e partilhava a natureza do céu, e a po que se transformava em kuei e era terrena por natureza.

Na crença da existência das três almas, associam-se as duas almas aos elementos yin (a po) e yang (a hun), e à sua localização e características. Assim a po considera-se estar ligada à própria sepultura e a hun à placa ancestral, transformando-as em três às quais são dedicados rituais diferentes, já que uma das almas vai para a sepultura (1), a outra ir-se-á apresentar a julgamento nos Dez Tribunais do Inferno[4]  e, segundo o veredicto poderá vir a reencarnar (2), ficando a outra junto da placa ancestral no altar da família (3).

Para a nobreza, porém, a visão do espírito passou a ser diferente do da crendice popular para quem ele acaba por ser absorvido pela terra. Para a nobreza os espíritos dos antepassados habitavam as alturas, como seres poderosos e divinos. Ou seja, os reis e os membros importantes da corte, depois de mortos, ao mesmo tempo que habitavam nos seus túmulos, também habitavam no céu.

E é aqui, também, que se começa a desenhar toda a hierarquia da religião popular chinesa na atribuição de características divinas a reis, imperadores, generais, cujo espírito lhes dá o estatuto e, por outro lado a continuidade de uma religião organizada à imagem e semelhança do Estado, na hierarquização palaciana e administrativa, de crescentes graus na hierarquia, transpostos para o Estado do céu, governado pelo Imperador de Jade.

 

Veneração e ritos

Os rituais de veneração aos antepassados podem dividir-se em dois grandes grupos, os ritos mortuários (sangli) e os sacrificiais (jili). Interessa-nos agora fazer referência a estes últimos que têm lugar diariamente ou em ocasiões especiais de veneração relacionados com o aniversário do passamento (com ofertas de comida), ou ocasiões de festa familiar como casamentos e nascimentos, ou em festividades do calendário chinês como as dedicadas aos antepassados, ou outras. Numa família tradicional no altar ancestral da casa estão expostas hierarquicamente placas ancestrais, junto das quais diariamente são queimados pivetes de incenso, e onde uma lamparina sempre a luzir, dia e noite, indica que naquele lar estão permanentemente presentes os espíritos dos seus antepassados.



[1] Resta saber se as inscrições numa língua ainda não decifrada (cuja descoberta foi anunciada por paleógrafos e linguistas chineses em Julho último) encontradas em restos de mais de duas centenas de objectos desenterrados (entre 2003 e 2006) de uma sepultura neolítica de Liangzhu na província de Zhejiang, nos fazem recuar cerca de 4000 anos em relação às revelações dos ossos oraculares de Henan.

[2] Durante séculos as virtudes fixadas nos Ritos de Zhou: benevolência, justiça, correcção, sabedoria e fidelidade, foram as linhas mestras no comportamento moral dos cidadãos chineses.

[3] A dinastia de Zhou, que durou cerca de 900 anos, divide-se em dois períodos embora os limites temporários variem com os historiadores que se debruçam sobre este período: ( Zhou de Oeste, até 771 a.C., e Zhou de Este de 770 – 221 a.C.)

[4]   Nem todas as almas irão obrigatoriamente a julgamento, tudo depende de como foram os seus comportamentos em vida. As que tiveram vidas exemplares podem escolher entre duas pontes a de ouro e a de prata, que as conduzirão a diferentes destinos. A de ouro poderá levar a alma ao paraíso, ao encontro de Buda, atingir o nirvana e finalizar o ciclo da reencarnação. A de prata leva a alma rumo aos céus onde encontrará as divindades que ali vivem, podendo, também, reencarnar como uma divindade.