Mercado automóvel

O presente (já) é eléctrico

As fabricantes chinesas de automóveis eléctricos estão também a conquistar o mercado internacional
A era dos veículos eléctricos “made in China” está aí e em força. Depois de conquistarem o mercado nacional, as fabricantes chinesas de automóveis eléctricos estão apostadas em afirmarem‑se na arena global: no final de 2023, pela primeira vez, foi uma empresa da China a liderar a lista de vendas deste tipo de veículos à escala mundial

Texto Viviana Chan

Apesar da indefinição que marca a economia global por estes dias, há uma indústria que se continua a destacar internacionalmente, em grande parte fruto de contribuições de “players” chineses. No sector da produção de veículos eléctricos, as vendas têm continuado a subir, com várias fabricantes da China a ganharem terreno, conquistando a preferência (e a carteira) dos consumidores globais, através de veículos a preços competitivos e com baixos consumos.

No último trimestre do ano passado, a chinesa BYD liderou mesmo a tabela de vendas de veículos puramente eléctricos a nível mundial, comercializando mais de 526 mil unidades deste tipo e tirando o primeiro posto à norte-americana Tesla, segundo dados oficiais de ambas as empresas. De resto, a fabricante chinesa, sediada em Shenzhen, na vizinha província de Guangdong, reteve o título mundial no que toca a vendas de veículos movidos a novas formas de energia – também conhecidos pela sigla NEV, do inglês “new energy vehicles”, e que cobre veículos totalmente eléctricos bem como híbridos “plug-in”: em 2023, a BYD comercializou mais de 3,02 milhões de unidades deste tipo. O êxito chinês não é fruto do acaso, mas sim de um planeamento estratégico meticuloso, implementado ao longo das últimas duas décadas.

Os dados anuais mais recentes da Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis são reveladores: foram comercializados cerca de 9,5 milhões de NEVs no mercado chinês no ano passado, o equivalente a quase um terço de todas as transacções. As vendas relativas a este segmento registaram um crescimento homólogo de 37,9 por cento – comparando 2020 com 2023, as vendas anuais quase que septuplicaram, reflectindo um crescimento significativo no interesse e adopção deste tipo de veículos na China. Para este ano, a Associação Chinesa de Carros de Passageiros projecta um crescimento do mercado de 25 por cento.

Em linha com a sua prestação à escala mundial, a BYD tornou-se em 2023 na marca mais comercializada em termos absolutos no mercado chinês, com vendas de 2,4 milhões de unidades, representando uma quota de mercado de 11 por cento, de acordo com dados do Centro de Investigação e Tecnologia Automóvel da China. A BYD ultrapassou assim a alemã Volkswagen, que ocupava o primeiro posto em vendas na China desde pelo menos 2008, altura em que começaram a ser divulgados dados sobre vendas por marca. A liderança da BYD, de acordo com analistas do sector, apenas confirma a ascensão das marcas de carros eléctricos no mercado chinês, sendo a primeira vez que uma marca focada em NEVs se torna na mais vendida em termos absolutos no país.

Expansão global

Os veículos eléctricos produzidos na China não estão só a conquistar as estradas nacionais. Segundo a Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis, as exportações totais de carros alcançaram em 2023 a marca de 4,91 milhões de unidades, sendo que destas 1,2 milhões eram NEVs. No ano passado, as vendas ao exterior de NEVs registaram um crescimento homólogo de 77,6 por cento, contribuindo para que a China assumisse o posto de principal exportador mundial de automóveis, à frente do Japão.

Os carros eléctricos são cada vez mais populares nas estradas chinesas

As fabricantes chinesas de carros eléctricos exportam para diversos pontos do globo, incluindo países como Portugal, a Bélgica, o Reino Unido e a França, na Europa, ou o Brasil e o México, na América Latina, para além da Tailândia e das Filipinas, na Ásia. O caso tailandês é paradigmático: anteriormente, o sector automóvel era dominado por modelos a combustão de marcas japonesas, com uma quota de mercado conjunta de cerca de 90 por cento; porém, a abertura do país aos veículos eléctricos serviu de entrada para as marcas chinesas, que actualmente gozam de uma liderança confortável neste segmento.

À Revista Macau, Alfred Wong Seng Fat, académico ligado ao Departamento de Engenharia Electromecânica da Universidade de Macau, aponta duas razões para justificar o sucesso das marcas chinesas de veículos eléctricos: bons desempenhos e acessibilidade de preços. “As marcas chinesas de carros eléctricos não apenas cativam os consumidores pela aparência dos seus veículos, desempenho e autonomia da bateria, mas também pelo preço muito atractivo”, afirma.

O académico explica que há três componentes primordiais num veículo eléctrico: bateria, motor eléctrico e sistema de gestão energética. O especialista enfatiza a questão das baterias, que desempenham um papel crucial neste tipo de veículos. A este respeito, Alfred Wong nota que o sector chinês de produção de baterias registou um forte desenvolvimento ao longo dos últimos anos, aliando capacidade de produção a avanços tecnológicos, o que tem servido para suportar e fortalecer o progresso da indústria de carros eléctricos no país.

Futuro move-se a bateria

Várias das principais empresas produtoras de baterias para automóveis eléctricos estão baseadas na China. Entre elas, está a líder mundial Contemporary Amperex Technology Co. Ltd., também conhecida pelo acrónimo CATL, surgindo em segundo posto a BYD, que, além de produzir baterias para os seus próprios veículos, também as comercializa junto de outras marcas. Afinal, na origem do grupo, fundado em 1995, esteve exactamente a produção de baterias, na altura para telemóveis.

A CATL, fundada em 2011, domina cerca de um terço do mercado global de baterias para a indústria de veículos eléctricos. A empresa, com sede na província de Fujian, anunciou em Agosto passado a construção de uma fábrica na Hungria, a sua segunda unidade de produção na Europa, de forma a reforçar o seu papel na cadeia de fornecimento para o fabrico de veículos eléctricos em solo europeu. O investimento é já a olhar para o futuro, visto que a União Europeia pretende banir, a partir de 2035, a venda de carros novos a gasolina e diesel nos seus Estados-membros, com o objectivo de acelerar a transição para veículos eléctricos e combater as mudanças climáticas.

Do lado da BYD, também estão em curso diversos projectos de expansão internacional. A empresa está a investir cerca de 620 milhões de dólares americanos num novo complexo industrial em Camaçari, no nordeste brasileiro, que vai incluir três unidades fabris: uma dedicada ao fabrico de NEVs, com uma capacidade inicial de produção de 150 mil unidades por ano; outra para produzir chassis para autocarros e camiões eléctricos; e uma terceira destinada ao processamento de lítio e fosfato de ferro, para aplicação em baterias. O complexo deve começar a operar este ano, gerando cerca de cinco mil postos de trabalho. O objectivo da empresa é aumentar a capacidade de produção local, de forma a poder oferecer preços mais competitivos.

A BYD está igualmente a ampliar as suas operações na Ásia. A marca está a construir uma fábrica na Tailândia, programada para iniciar actividade ainda este ano, concentrando-se no fabrico de modelos destinados ao mercado local. Trata-se de um investimento de mais de 490 milhões de dólares americanos, para a produção anual de 150 mil veículos eléctricos de passageiros por ano.

Alfred Wong manifesta optimismo em relação ao desenvolvimento internacional das marcas chinesas, embora várias fabricantes chinesas de veículos eléctricos estejam ainda em fase de amadurecimento, incluindo a nível financeiro. O académico menciona o exemplo da expansão internacional das marcas sul-coreanas de automóveis a combustão: apesar de inicialmente, entre a segunda metade da década de 1970 e inícios da década de 1980, enfrentarem dúvidas quanto ao desempenho dos respectivos veículos, foram capazes de conquistar uma posição significativa na indústria automóvel global, com inovações tecnológicas contínuas. Na sua opinião, à medida que as marcas chinesas de veículos eléctricos continuarem a sua expansão internacional, a sua influência global será fortalecida.

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Tal parece já estar a acontecer: grandes marcas estrangeiras, que inicialmente tinham apostado na produção de veículos híbridos, estão agora a procurar parcerias com empresas chinesas de carros eléctricos. O objectivo passa por utilizarem o “know-how” chinês de forma a acelerarem a sua própria transição para o segmento dos automóveis totalmente eléctricos.

Aposta nacional

O sucesso da indústria chinesa de veículos eléctricos deve-se também a uma estratégia governamental de apoiar o desenvolvimento do sector. Em 2009, o país começou oficialmente a implementar políticas de subsídios à aquisição de veículos eléctricos. Três anos depois, foi delineado um plano de desenvolvimento para esta área, com objectivos claros em diversos parâmetros. Os subsídios directos à aquisição de veículos eléctricos foram cancelados no final de 2022, mas existem ainda benefícios fiscais associados à sua compra.

O Governo chinês apoiou igualmente o lançamento de uma fábrica da Tesla em Xangai, a primeira unidade de produção da empresa fora dos Estados Unidos. A fase inicial do projecto entrou em operação em 2019, contribuindo também para o avanço da indústria de veículos eléctricos na China, nomeadamente através da introdução de concorrência externa. Devido à considerável capacidade de produção da unidade da Tesla – cerca de 1,1 milhões de automóveis por ano –, o complexo serviu para fomentar o desenvolvimento de várias empresas chinesas de fornecimento de peças para veículos eléctricos.

Alfred Wong destaca o apoio contínuo do Governo Central como um “factor crucial” para o desenvolvimento da indústria de carros eléctricos na China. O académico salienta que, em Setembro de 2020, o Presidente Xi Jinping anunciou o compromisso de a China atingir o pico de emissões de dióxido de carbono antes de 2030 e alcançar a neutralidade carbónica antes de 2060, objectivo esse que acelerou a popularização dos veículos eléctricos no mercado chinês.

Embora as empresas chinesas tenham já feito “investimentos significativos” em pesquisa e desenvolvimento no âmbito dos veículos eléctricos, é preciso intensificar os esforços neste campo, diz Alfred Wong. Para atingir sucesso em diferentes países, é necessário compreender as necessidades específicas de cada mercado, sublinha o especialista. E dá um exemplo: “Algumas marcas automóveis estrangeiras que ingressaram no mercado de Macau no passado enfrentaram desafios relacionados não com a qualidade intrínseca dos seus carros, mas sim devido ao clima extremamente húmido do território, que danificava muitas peças dos veículos”. Marcas chinesas que almejem entrar em mercados estrangeiros “precisam de ter um profundo entendimento dos hábitos locais e das condições das estradas”, considera Alfred Wong.

O académico vê na diversidade de marcas chinesas de veículos eléctricos algo positivo. Além de marcas mais acessíveis, como a Wuling e BYD, há outras opções de gama média e alta, como a NIO, Xiaopeng e Li Auto, proporcionando uma ampla variedade de escolha aos consumidores.

Numa visita à fábrica da NIO em Hefei, no ano passado, Alfred Wong confessa ter ficado admirado pelo nível de inovação demonstrado pela empresa, nomeadamente no que toca às suas estações de troca de baterias. Esta tecnologia permite que os veículos eléctricos da marca realizem uma substituição automática da respectiva bateria em minutos, eliminando preocupações relacionadas com o carregamento e autonomia dos veículos.

Stand em Estocolmo, na Suécia, da fabricante chinesa de automóveis eléctricos Xiaopeng

Novos ‘players’ a caminho

Nos últimos anos, a produção de veículos eléctricos tornou-se num dos sectores mais dinâmicos na China, visando responder a uma nova onda de mudanças tecnológicas e transformações industriais, procurando elevar a estrutura industrial do país a um novo patamar de modernidade.

Neste contexto, muitas empresas tecnológicas chinesas têm vindo a diversificar os seus negócios para a indústria dos veículos eléctricos. Um dos casos é a fabricante de dispositivos de comunicação Huawei, que lançou a sua própria marca de veículos eléctricos, a Aito, em parceria com a construtora chinesa de automóveis Seres. A fabricante de smartphones Xiaomi também tem planos para uma gama própria de carros eléctricos, esperando lançá-la oficialmente no mercado ainda este ano.

Nas declarações à Revista Macau, Alfred Wong admite não estar surpreendido com a entrada na indústria automóvel destes gigantes chineses da tecnologia, até pelas oportunidades de negócio que o sector pode representar. O académico acredita que estas empresas já detêm parte significativa dos conhecimentos técnicos necessários, particularmente no campo das tecnologias inteligentes.

Apesar das perspectivas de crescimento contínuo para o sector dos veículos eléctricos na China, para 2024 está previsto um aumento da competição, a que se podem associar pressões por parte dos consumidores para descidas de preços. No entanto, o futuro, esse, continuará a acelerar em modo eléctrico.