Oriente divino

Foi em Macau, num fim de tarde radioso, com os olhos postos no horizonte, mirando o sol poente reflectido no skyline da Taipa, que Carlos Morais José conversou sobre Anastasis. Nesta que é a sua obra mais recente, o jornalista, poeta e escritor convida os leitores a embarcarem numa vertigem poética pelo Oriente milenário

 

Carlos Morais José

 

Texto Cláudia Aranda | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

“Quanto pode uma viagem ainda incomodar?”, questiona o jornalista, poeta e escritor Carlos Morais José na abertura de Anastasis (COD, 2013), numa antecipação à sua jornada lírica pelo Oriente. A obra resulta de várias viagens realizadas ao longo dos últimos três anos pelo também tradutor e editor Carlos Morais José e reúne um conjunto de textos que descrevem um roteiro, tudo menos convencional, que se inicia na ilha grega de Patmos, segue para Istambul, na Turquia; desloca-se à Síria, ainda antes da eclosão em 2011 do conflito entre grupos rebeldes e forças leais ao presidente Bashar al-Assad; segue em direcção à antiga Pérsia (actual Irão), Índia ,passando por Goa; Sião (hoje Tailândia) e Terra Khmer ou Camboja. Esta rota poética termina com um tributo ao poder das águas do rio Mekong, que nasce na China e atravessa diversos países da Ásia, desaguando no Vietname.

“É um imenso tinir, tremor, rumorejar, a reunião que faz de ti ‘capitão das águas’ (…)”, escreve Carlos Morais José sobre o rio Mekong numa evocação a outro poeta, Luís de Camões. O poeta quinhentista já havia designado o Mekong por “capitão das águas”, rio no qual o navio em que viajava terá naufragado por volta de 1560, tendo o poeta salvo, heroicamente, o manuscrito de Os Lusíadas.

Anastasis é, no entanto, e, sobretudo, uma reflexão. É a viagem de um português no século XXI através das perplexidades que o mundo hoje ainda lhe propõe. Essas perplexidades estão relacionadas com “uma reflexão sobre a existência de algo transcendente ou uma reflexão contemporânea sobre o que é divino”, explicou o autor. Para essa reflexão importa ter em consideração que, “a ideia de Deus perpassa pelas civilizações que contactamos todos os dias, sobretudo no Ocidente e no Médio Oriente, ou seja, donde vem a base civilizacional judaico-arábico-cristã, é isso que são os portugueses”.

 

Inventar estilos

O sentido da palavra Anastasis é “ressurreição”. O escritor, no entanto, utiliza a palavra de origem grega para definir “o movimento das trevas para a luz”, trata-se do “movimento de uma situação de escuridão, de ignorância” para uma certa forma de conhecimento. Esse movimento na religião cristã é representado por Cristo, que faz a ressurreição das almas em dia de juízo final. A imagem da capa do livro representa precisamente “A conversão de São Mateus”, do pintor italiano Caravaggio, sendo uma escolha do autor. Na definição de Carlos Morais José, São Mateus é um cobrador de impostos que foi recuperado, “saiu dessa escuridão, que é a ligação ao vil metal, por Jesus que o trouxe para o mundo do espírito e da moral e, também, da estética”.

Carlos Morais José descreve as suas viagens recorrendo a um conjunto de pequenos textos em verso, intercalados com prosa poética ou textos em não-rima, um estilo que assim se distingue pelo ritmo harmonioso e musical na forma como se ligam frases e parágrafos. O poeta e escritor ambiciona escrever usando uma transversalidade entre vários estilos literários e também entre diferentes disciplinas, incluindo a literatura, a filosofia, a antropologia ou o jornalismo. Trata-se de um estilo, de certa forma, herdado dos autores surrealistas e de outros que lhes antecederam, como Arthur Rimbaud ou Charles Baudelaire, que romperam com os cânones da escrita. Mas, mais importante do que quebrar as regras estabelecidas, é ter um estilo inconfundível, “ter voz própria, é o que todo o escritor procura”, afirmou o autor.

 

Criar mundos

É, entretanto, a música da poesia que prevalece na leitura de Anastasis. Ao longo de mais de 200 páginas, Carlos Morais José concentra-se naquilo que é essencial, ou seja, nos lugares e nas pessoas. Recorre, sobretudo, à poesia, porque é uma “criadora de mundos” – poïesis, outra palavra grega, ancestral da “poesia”, significa fazer, criar.

Os textos transparecem o que cada lugar faz o autor pensar e sentir e o que cada destino e seus habitantes o inspiraram a escrever: histórias, pensamentos, memórias, diálogos inesperados com os fugazes protagonistas de cada etapa da viagem.

O poeta e escritor explicou que foi assim, acidentalmente, que brotou aquela conversa com um empregado de café no Bairro de Gálata, em Istambul, em que o turco lhe diz, afirmativo, que “Um país que tem Fernando Pessoa nunca será pobre”. Ou aquele convite inesperado do iraniano Ayat, surgido enquanto Carlos Morais José percorria as ruas de uma cidade algures na antiga Pérsia buscando um miradouro donde observar o pôr-do-sol: “Quero ver este poente…”, disse-lhe eu docemente. “Sobe aqui ao meu terraço”, responde Ayat sorrindo desta loucura estrangeira. Subi por aquela feira, de cobres e tapetes, ao lugar tão almejado. E vi um sol que morria, vagamente se despia, dos véus de céu anilado. (…)”

Anastasis é a sétima obra de Carlos Morais José, jornalista, poeta, escritor, tradutor e editor, a residir em Macau desde Setembro de 1990. Segue-se a Macau – O Livro dos Nomes, publicado em 2010, também pela COD. Entre as sete obras já publicadas incluem-se três livros de crónicas, um de ficção e uma banda desenhada, realizada em conjunto com o ilustrador Fonseca e Morais (Caze: Um Caso de Ópio).

 

 

 

Breviário de peregrino*

Quando os construtores de catedrais deixaram de escrever nas pedras alto erguidas, o Livro proliferava. Objecto de culto e repositório de imagens, os livros são até hoje, para os que entendem a memória do homem como um todo, catedrais, templos transportáveis, edifícios onde as portas, as janelas, os pináculos e as catacumbas se desmultiplicam em labirintos. E tudo varia, ou tresvaria, para que o leitor encontre nas páginas que tem entre mãos o seu Aleph. Para que siga Orfeu buscando Eurídice, não no céu nem no submundo, mas nas intricadas rotas sobre a pele da Terra.

Quem ama a leitura acumula livros, não prescinde das incontáveis visões, vozes, peregrinações, recolhas que o saber humano, ou as suas alucinadas ficções incessantemente produzem. E há milénios que muitos escrevem livros sobre livros e sobre livros que estudaram livros.

Livros há porém que não são feitos para escrutinar, teorizar, catalogar.

São livros onde podemos enfiar as mãos como num bornal de caminhante e retirar maravilhas: cantilenas de infância, ostraca e palimpsestos, pombas arrulhando nas açoteias do Andaluz, rodopiar de sufis, enigmas, provérbios e premonições. A lista não teria fim, cada um sabe a sua de cor, e não há duas iguais.

 Um desses livros é o que tenho agora no colo. Li-o da frente para trás e agora reli-o de trás para a frente e depois hei-de reler aleatoriamente.

Porque alguns versos e pedaços de prosa escapam ao primeiro olhar, ao segundo e ao terceiro, e só se deixam revelar pelo olhar enviesado de quem se entrega ao solitário jogo de revirar as palavras uma a uma.

Porque até uma ementa de pequena tasca ao pôr-do-sol em frente a um mar que só ele, o poeta, viu, desenrola uma fita onde são convocados todos os sentidos. E não é para isso que a leitura serve?

Ás vezes do fundo deste bornal de peregrino sai também um escuro bolbo, denso como um punho, ou ínfimo, como uma semente de tristeza, que põe um travo de madalenas com chá na boca do leitor, ou melhor dizendo, uma amarga recordação dos paraísos perdidos.

E logo o poeta faz desabrochar do escuro bolbo um glorioso lírio-das-areias, porque todo o deserto é habitado.

E este livro está geminado com o mistério do germinar: é este o resumo da leitura que faço dele.

Quem não entende poesia que não se abstenha de o ler: nunca é tarde para aprender uma língua. Para os que não viajam senão no bojo dos aviões: abram este livro e vejam como descobrir o mundo pode ser um sucedâneo da felicidade.

Também nele se acham mnemónicas para as cantigas de roda e para os sonhos dos verões quentes da adolescência. Podemos recolher-nos nele como num recanto nosso, ou nele passear como num jardim, no tempo em que a serpente não tinha ainda semeado a discórdia entre Deus e o Homem por causa de um fruto e a bem-aventurança não residia numa ilha luxuriosa, nem num oásis misterioso, nem num vale fértil, mas num Jardim. Um jardim, onde homem ensaiou a palavra nomeando os bichos, e onde já fermentavam as ambições de Babel.

Assim acho à margem deste livro miríades de rubricas tão breves e eternas que meia palavra me basta. Meias palavras e poemas inteiros, aninhados como gatos no seio quente da nossa acariciante língua materna, a nossa, a das cartilhas, dos contos e das ladainhas. Das antigas fórmulas mágicas, esconjuros, medicinas e feitiços.

Leio, sigo a mansa torrente do regato de palavras sem prosápia, viva toada poética, registo de uma busca – em demanda daquilo que o poeta já leva consigo: “esta lembrança de rio a passar-me pela carne”.

“Quero ver este poente”, diz o viajante. “Sobe ao meu terraço,” diz o crente, abrindo os braços, mostrando o caminho.

A ficção acontece no silêncio, entre o alvorecer das castas rolas e o voo dos corvos crepusculares. No momento em que a estreita porta se abre, “uma visão os assombrará”

Por isso o poeta é também pintor, dramaturgo, e medidor do tempo.

 E alguns dirão que é um místico:

“Não orei ao pastor – só os rebanhos me encantam”. Contrição ou fraternidade jurada, resíduos da saga dos desertos, memória dos antigos cânticos nómadas, do tempo em que a palavra escrita, o límpido poema, bastavam para o êxtase.

 

Anastasis – ressurreição dos trajectos só de ida, em círculos que seguem as rotações da terra, as eternas rotas dos migrantes. Um livro que busca as raízes no húmus junto das noras – ai de quem não tem memória, ai de quem não fala à mãe mirando as suas feições no reflexo da cisterna.

Termino dizendo que creio firmemente na sagrada contiguidade da poesia dos povos. E não é pequena a ousadia.

 

* Fernanda Dias, lendo C.M.J.