U lan Chit – Quando os diabos andam à solta

A crença nos diabos à solta remete para os primórdios da religião popular, muito antes do aparecimento do Taoismo e do Budismo, religiões que reivindicam as suas origens. Talvez porque o dia também seja comemorado no Budismo embora com outro significado

 

Culto Antepassados 2

 

Fernando Sales Lopes

Historiador, Mestre em Relações Interculturais

 

A Festa dos Espíritos Esfomeados, ou U Lan Chit (盂蘭節, 盂兰节), tem lugar na 14.ª noite da 7.ª Lua, que neste ano de 2013 foi a de 20 para 21 de Agosto, e que assinala, também, a Lua Cheia, embora as festividades decorram durante todo o sétimo mês, quer antes, quer depois daquela data (21 dias). Por isso o 7.º mês lunar (que cai normalmente em Agosto, ou Agosto/Setembro) se denomina o Mês dos Espíritos Esfomeados, ou dos Diabos, à Solta.

A crença nos diabos à solta remete para os primórdios da religião popular, muito antes do aparecimento do Taoismo e do Budismo, religiões que reivindicam as suas origens. Talvez porque o dia também seja comemorado no Budismo embora com outro significado.

Para o Budismo este é o mês da Alegria, pois terá sido no 15.º dia do 7.º mês que os discípulos de Siddhartha regressaram da floresta depois de três meses de meditação. A maioria terá atingido o estado de iluminação o que terá deixado Buda a transbordar de alegria e felicidade. Há também uma história relacionada com espíritos e essa é contada no sutra Ullambana, onde se descrevem as instruções dadas por Buda para a libertação da mãe de um seu discípulo, que tinha reincarnado num nível inferior.

Recordo, aqui, em parte, o que anteriormente ficou escrito sobre o “Culto dos Antepassados”, relativamente à religião popular chinesa, nomeadamente nos dois últimos parágrafos: Os espíritos demoníacos que vagueiam pela terra e pelo mundo subterrâneo, como os fantasmas de humanos perdidos (kuais), ou que desapareceram por acidente ou de forma violenta, antes da data marcada nos Registos Celestiais. São estes o principal objecto da Festa dos Espíritos Esfomeados.

Mas, afinal, o que se passa durante esta 7.ª Lua para que os vivos andem num rodopio de oferendas e de orações na tentativa de acalmarem, as almas dos antepassados a quem os vivos se esqueceram de pagar tributo após a sua morte, ou que tal se tornou impossível pela maneira como desapareceram, e os espíritos daqueles que deixaram o reino dos vivos por acto violento, sem terem completado o tempo que o registo dos Céus lhes destinara?

Na verdade durante todo o 7.º mês lunar, mês dos fantasmas (鬼月), quer os espíritos demoníacos errantes, quer os dos antepassados regressam ao mundo habitado pelos vivos, num movimento contrário aos do Ching Ming e do Chong Yeong quando os vivos prestam homenagem aos seus antepassados. Agora são os mortos a visitarem os vivos. Neste festival os vivos tratam dos espíritos, não apenas dos seus ancestrais, mas também de todos os errantes sem descanso.

Durante todo este mês as portas do inferno abrem-se e os demónios (kuais) libertam-se regressando à Terra e, errantes, procuram alimento e divertimento. Os vivos têm que tratar deles para os sossegarem e não serem por eles importunados, dando-lhes de comer, de beber, e presenteando-os com dinheiro e objectos cujo valor ou utilidade lhes agrade.

 

Os esfomeados espíritos em Macau: Comida e fogo pelas ruas

É um mês de fogueiras por todo o lado, onde se queimam objectos de papel de seda e bambu representando aquilo que seria do agrado do espírito, ou dinheiro (falso, claro, do Banco do Inferno) queimado à porta das casas e nos templos, levado pelo fumo, para que, no outro mundo, se divirtam sem que venham perturbar a vida dos do lado de cá.

É um mês de tabuleiros de comida espalhados pelas ruas, à beira dos passeios e esquinas. São tabuleiros rectangulares com acepipes e guloseimas variadas. As famílias colocam na rua para os espíritos perdidos, fruta, rebentos de soja, amendoins, tofu (queijo de soja) e arroz. Por vezes são escolhidos locais onde houve calamidades, como incêndios ou outros acidentes que fizeram vítimas, para colocar comida, acender pivetes, queimar dinheiro.

Pivetes ardem à beira dos passeios, protegendo quem passa, e um prato com patas de pato pode, muitas vezes, fazer-lhes companhia. O pato, voador anfíbio, será uma boa montada para um kuai poder voltar ao sítio de onde partiu através da terra, do ar ou do mar. Também as gentes do mar lançam para as águas oferendas para saciarem e acalmarem os espíritos dos que no mar tiveram morte violenta, ou acidental. Aos antepassados se oferecem, neste festival, frutas porco assado, pato assado, chá e vinho.

O 7.º mês, como se compreenderá, não é tempo para casamentos, pelo que são raros os que se realizam.

 

Tratar dos ancestrais nos templos

Todos os espíritos que andam à solta, têm direito a serem confortados pelos vivos, com comida e bebida que os satisfaça e enfarte, mas os ofícios religiosos e as ofertas queimadas nos templos são reservadas aos espíritos dos antepassados (pois também eles poderão ser almas errantes, por qualquer razão desconhecida dos vivos). Uma visita aos templos de Macau, nomeadamente a Kun Iam, onde se evidenciam as práticas budistas da religião popular, poderá ser o local ideal para uma observação atenta dos rituais prestados.

Numa enorme tenda, acumulam-se em estantes, várias dezenas de grandes jarrões de papel em armações de bambu, identificados com o nome do antepassado, encerrando diversas ofertas. Aqui os familiares apresentam os seus respeitos, antes de, juntamente com os bonzos, os transportarem para a grande pira onde serão queimados, transportando nos fumos para o além todas as dádivas dos familiares.

Ao mesmo tempo, noutra zona coberta, ao fogo são atiradas réplicas dos mais variados objectos, nomeadamente, casas, automóveis, televisores, computadores, criados, entre um sem número de muitas outras réplicas para conforto do antepassado no lado de lá. Igual sorte terão as pontes, também de papel, tal como os criados que as ladeiam e que ajudarão o espírito do antepassado a passá-las em segurança sem que qualquer percalço aconteça, e assim se proporcione o seu regresso ao outro mundo com menos sofrimento. Os criados, vestidos de forma tradicional, acompanham o patrão para o além (como em tempos imemoriais acontecia com os criados humanos), onde, claro, os seus préstimos serão tão importantes como o seriam na terra, no tratamento da nova casa e demais objectos oferecidos.

O dinheiro branco, embora também usado em sacrifícios todo o ano, tem no festival dos Espíritos Esfomeados, presença em quase todos os rituais de queima. Vendido em embalagem vem, entre o Primeiro Tesouro e o papel de ouro e de prata. O coração do tesouro como é considerado.

 

A queima do Kuai na Horta da Mitra

Durante os dias do festival em alguns locais os espíritos errantes são entretidos com espectáculos de ópera, ficando, normalmente a primeira ou as primeiras filas com cadeiras vazias, supostamente para serem ocupadas por eles. Diversas ofertas, pagas pelos populares, são queimadas, concluindo-se o festival com a queima do Rei do Inferno.

As celebrações com mais tradição, nomeadamente na queima do kuai, Rei do Inferno, têm lugar no templo de Fok Tak Chi, dedicado a Tou Tei, na Horta da Mitra. No estrado adjacente ao pequeno templo onde nas comemorações em honra do aniversário do patrono se repetem os espectáculos de ópera, tem lugar agora outra representação misturando-se os rituais religiosos, num cenário bem elucidativo da religião popular. Os bonzos levam a efeito uma longa cerimónia entoando orações e sutras em melodias repetitivas, invocando a protecção dos vivos, esperando a satisfação dos espíritos, para que em paz regressem ao local de onde vieram. Do lado esquerdo do palco, a efigie do juiz carrancudo de farta bigodeira, avaliará o comportamento dos que hoje habitam um mundo para muitos paralelo. Os seus cavalos velozes, ali à mão, transportarão as boas e as más decisões. Do lado direito, o Rei do Inferno, dos diabos, o grande kuai, gigantesca figura que durante o festival dos Espíritos Esfomeados, preside às almas perdidas, será finalmente queimado com a sua enorme pança atafulhada de lingotes de ouro.

 

Kuai

 

Os artesãos do irreal

A importância do papel é reconhecida em todas as celebrações do calendário religioso chinês, com ele se reproduzem facilmente objectos, nele se escrevem missivas de intenções, pedidos de auxílio, se esconjuram os maus espíritos e se confortam os bons. O papel é leve, arde bem, e o seu fumo tudo transporta para o desconhecido. E a queima da “palavra”, diz-se na China, prova que ela antes de ser a comunicação entre os homens foi a comunicação entre estes e os deuses.

Há pouco mais de uma década ainda eram muitos os artesãos que em Macau se dedicavam à construção de artefactos votivos, e comemorativos, em papel de seda sobre cana de bambu. Hoje as oficinas artesanais contam-se pelos dedos da mão, contudo trabalho não lhes falta, pois se os materiais de fábrica que o comércio oferece satisfazem muitos dos consumidores, para outros mais exigentes só o artesão pode dar resposta.