Casa de Lou Kau (1891)

Do seu próprio (re)desenho

 

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Margarida Saraiva e Tiago Quadros

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

A casa enquanto prolongamento do espaço pode ser vista à luz da ideia de “dobra” de Deleuze. Ela é uma dobra no espaço. Fazer uma dobra implica o trabalho de uma linha que atravessa o espaço que nós construímos sobre a terra, que costura nesse espaço a própria natureza. Trata-se de uma linha quebrada, incompreensível, labiríntica, em que trabalham os arquitectos e os artistas e todos nós. O problema está em saber se é possível planear essa linha, se é possível controlá-la ou programá-la.

Construída em 1889, durante a dinastia Qing, a Casa de Lou Kau, situada na Travessa da Sé, nas imediações do Largo do Leal Senado, foi a antiga residência da família Lou Kau até 1910. Refira-se que a localização desta casa, grande e antiga, reflecte a abrangência social que era evidente no centro da antiga cidade cristã. De facto, a Casa de Lou Kau ocupa a Travessa da Sé “como prova da nossa actividade passada”, existe em território contemporâneo, evocando um “contexto misto, problemático e interrogativo”.

Lou Kau, um empresário que fez fortuna através do negócio da troca de dinheiro, esteve fortemente envolvido na filantropia, na criação de escolas e recuperação de templos ancestrais. A edificação em tijolo cinzento constitui-se como um dos poucos exemplares do estilo ainda existentes em Macau, trata-se de uma obra que reúne linguagens arquitectónicas díspares. Se as janelas em concha, os ornamentos em gesso e as esculturas em tijolo são comummente encontrados na região central da Província de Guangdong, os tectos falsos, os vitrais e as grades de ferro fundido são marcas ocidentais.

A casa tem uma implantação e organização espacial simétrica, desenvolvida sobre uma fórmula modular de três por três espaços. Os dois pátios no eixo central separam as três salas principais. A esse propósito, refira-se que a organização espacial da habitação traduz a estrutura hierárquica das famílias chinesas, onde os espaços mais interiores e reservados eram ocupados pelos membros mais destacados do agregado familiar. Em 1970, a casa, que apresentava sinais de degradação evidentes, albergava 20 famílias. Em Julho de 2002, o Instituto Cultural da RAEM realiza o processo de restauro da Casa de Lou Kau. Hoje, o edifício está aberto ao público com exposições regulares de arte chinesa.

Dentro da Casa de Lou Kau, uma caixa menor marca a fronteira entre o limite do recinto e a habitação, com algumas janelas a selarem vãos abertos, protegendo a casa das condições climatéricas. O último piso emoldura o espaço mais íntimo. As fronteiras de todas as caixas são corrompidas com grandes vãos rectangulares, formando, camada a camada, filtros e enquadramentos que nos vão revelando, progressivamente, a luz e as vistas, criando um campo tridimensional de opacidade e transparência. Com efeito, a questão da fronteira ideal, entre interior e exterior, está longe de ser encontrada. Poder-se-á dizer que uma arquitectura se cumpre quando um espaço ao ar livre, se sente como fazendo parte da casa, e quando um espaço interior se sente como exterior. A Casa de Lou Kau não é sobre o espaço ou sobre a forma, mas antes sobre a riqueza do que é ser “entre” – os espaços, a sombra e a luz.

Mas a casa é também muito os materiais de que é feita, que têm uma linguagem própria e um brilho, que é preciso potenciar. É preciso ser capaz de transformar uma simples pedra em qualquer coisa que seja mais do que isso. Os materiais são fundamentais. E a carga que cada um deles tem, o seu calor e temperatura. Na Casa de Lou Kau conseguimos senti-los até à última instância, nomeadamente tacteando-os, afagando-os, em cada uma das suas paredes. As marcas são inerentes a tudo o que existe, porque tudo é perecível. E a Casa de Lou Kau é isso. Um objecto que não acabou. Que não acaba nunca e que lentamente se vai construindo.

A Casa de Lou Kau convida à reflexão no valor simbólico das estruturas. O seu interior é feito de mutações evocadas, onde se descortinam densidades variáveis. E a sua linguagem é estritamente arquitectónica, sem adjectivos ou citações. As diferentes espessuras que as peles de tijolo conformam, ajudam a acentuar a leitura dos seus próprio limites – o edifício existe para além dele próprio. Por isso o desenho da Casa de Lou Kau resulta do seu próprio (re)desenho, do modo como se estabelecem os tempos de respiração que, medindo as distâncias, ajudam a fixar a escala do conjunto. Esta obra revela uma ideia de abrigo que a contraposição do tijolo sublinha. Para o visitante é quase natural que a espessura das paredes se transforme em fértil território. E é sobretudo nessa espessura que a Casa se desenha.

A Casa de Lou Kau parece sugerir como a arquitectura deve recuperar a sensibilidade da vida humana. Poder-se-ia dizer que as suas experiências são dirigidas para a recuperação das interacções humanas e das relações primitivas entre as pessoas e o tempo. Nem dentro, nem fora, nem da cidade, nem da casa. A espacialidade da Casa de Lou Kau demonstra a ambiguidade intrínseca que hoje se crê como essencial a uma nova concepção do espaço arquitectónico. Com efeito, esta casa não tem exterior real, nem interior real. Toda a área revela-se apenas “entre”. Poder-se-á dizer que aqui não há cidade, não há nenhuma casa, apenas níveis de intermediação. Estamos perante um objecto seminal, no qual tudo, desde as origens do mundo até uma casa específica, são revelados por um único método.

A Casa de Lou Kau assume-se como um projecto feito de formas atemporais que poderiam ter na origem exemplos de arquitectura produzida nos anos vinte, as pinturas de Mondrian ou Klee, ou ainda as esculturas de Brancusi ou Arp. Agora é o momento para se dedicar nova atenção à Casa de Lou Kau. Esta é uma obra de enorme relevância que merece a atenção de estudos livres e aprofundados. Àqueles que revelaram a Casa de Lou Kau, no entanto, não só os arquitectos devem gratidão: o terem “descoberto” para nós o que nós não conseguíamos ver, o sentimento que nos invade ao observarmos o seu ventre, no centro da Casa.

 

 

História

 

1891

É construído o edifício

1910

A família Lou Kau deixa a residência

1970

O Instituto Cultural da RAEM realiza o processo de restauro da Casa de Lou Kau