O coração dos livros

ROTA DAS LETRAS 2014

Helder Beja

 

Hélder Beja

Subdirector do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

 

 

O que fica da vida são momentos, esses curtos lapsos de tempo em que, nem sempre sabemos explicar como nem porquê, qualquer coisa acontece que aquece, ou fere, ou purifica, ou azeda, ou faz felizes os nossos corações. O Festival Literário de Macau – Rota das Letras é, no coração daqueles que o criámos e que o fazemos, um desses momentos. Esperamos que seja e venha a ser assim também para o público que nos acompanha a cada ano.

É o acaso o grande combustível deste edifício complexo a que chamamos humanidade, para o bem e para o mal. O festival também nasceu assim, há três anos, da feliz coincidência de algumas pessoas e outras tantas vontades terem tropeçado umas nas outras em Macau.

‘Encontraste-me um dia no caminho/ Em procura de quê, nem eu o sei./ Bom dia, companheiro, te saudei,/ Que a jornada é maior indo sozinho’, escreveu Camilo Pessanha num dos célebres sonetos que Macau viu nascer. ‘É longe, é muito longe, há muito espinho!’, avisava o poeta. E tinha razão.

Não será nunca fácil, neste mundo apressado e na cidade em que vivemos, o caminho da literatura e da Rota das Letras. Mas como diz o título do mais recente livro de Rui Cardoso Martins, grande convidado da segunda edição do festival, em 2013, Se Fosse Fácil Era Para os Outros.

O terceiro acto do Festival Literário de Macau, em Março passado, foi a confirmação de que ele aí está para ficar, que faz sentido, que envolve as diferentes comunidades, que atrai público, contagia miúdos e espevita a curiosidade às vezes adormecida dos graúdos. Dois momentos ilustrativos: dezenas de estudantes a rodearem os autores Bei Dao e Yan Geling depois da sessão na Universidade de Macau, cheios de perguntas, carregados de livros para serem assinados, ansiedades a precisarem de calmante, almas inquietas em busca de respostas; ou as interrogações dos alunos da Escola Portuguesa de Macau para Andrea del Fuego e João Paulo Borges Coelho, sobre como escrever, sobre a voz do escritor e as vozes das personagens, sobre inquietações que hoje, com o facilitismo do costume, se acredita que as novas gerações não têm de todo. Pois têm, têm sim senhor.

“Onde é que estão as novas gerações? Estão a curtir uma de qual?”, perguntava Zeca Afonso, num célebre concerto que encheu e fez chorar o Coliseu dos Recreios em Lisboa, corria o ano de 1983. As novas gerações estavam a ‘curtir uma’ de liberdade e é essa liberdade que ainda hoje podem encontrar nos livros e na literatura, se assim entenderem. Há quem a procure, acreditamos nisso.

Acreditar em tal coisa é, também, crer no poder regenerador e redentor das palavras. Somos aquilo que fazemos mas o que fazemos é indissociável do que dizemos e escrevemos. A história das mulheres e dos homens, a história do pensamento, só existe e permanece porque criámos e convencionámos estes códigos linguísticos em que nos entendemos, mesmo que sejam tão distantes como os caracteres chineses e a língua portuguesa.

É, pois, improvável que os livros possam salvar o mundo, mas é indiscutível que nos podem tornar pessoas melhores.

Hu Xudong, poeta da China Continental e falante de Português, trouxe a Macau os seus versos atrevidos e doses de humor que dificilmente serão esquecidas. Foi ele mesmo que admitiu que a poesia o salvou. Hu, nas palavras do próprio, era um adolescente rufia, um jovem adulto malandro, e foi na literatura que encontrou essa suave redenção que é podermos adormecer melhor com a nossa sombra quando a noite cai.

Clara Ferreira Alves, céptica por natureza, usa as palavras para dissecar aquilo que a rodeia e que, muitas vezes, tem pouco de belo e prazenteiro. Mas foram essas mesmas palavras e o domínio delas que lhe permitiram mergulhar na literatura do mundo e do último século em particular, beber tudo e hoje partilhar o tanto que sabe com os que a lêem e ouvem – como fez em Macau.

Yan Geling foi uma criança soldado, foi jornalista e acabou por encontrar na ficção o lugar para contar as histórias que queria contar – também histórias sobre Macau, como no seu mais recente livro.

Andrea del Fuego diz-se escritora acidental. Aconteceu, as pessoas começaram a lê-la online, o primeiro livro apareceu, um prémio também, e estava feito. A sua vida nunca mais seria a mesma.

Sheng Keyi questiona a China em mudança e questiona-se a si mesma através dos livros e das crónicas que escreve; Karla Suaréz olha para Cuba através das frases que vai alinhavando a partir de Portugal, onde decidiu viver e onde é também, imagine-se, engenheira informática; Afonso Cruz caiu no caldeirão dos livros e das artes e transformou-se num homem multifacetado e de pés bem assentes na terra alentejana que tomou por casa, hiper-produtivo na aparente calma que passa a quem com ele se cruza.

Jiang Fangzhou foi uma menina prodígio para se tornar numa jovem jornalista e escritora agora conhecida em toda a China, aliando um espírito sagaz a uma ingenuidade tocante. João Paulo Borges Coelho é Moçambique a acontecer, carregado de histórias passadas e inquietações que são de agora.

Foram todos convidados desta mais recente edição do festival – e houve muitos mais e com tanto para dar, como Li Guangding, Agnes Lam, António Graça de Abreu, Fernanda Dias ou Manuel Afonso Costa – e todos eles, assim queiram, escreverão também sobre Macau nos próximos meses. Nós editaremos, traduziremos e voltaremos a publicar, como fizemos este ano, nova colecção de Contos e Outros Escritos do Festival Literário de Macau, em chinês, português e inglês, por cremos ser é assim que faz sentido.

Com mais exposições, mais sessões de cinema, mais concertos, mais recitais de poesia e idas a escolas e universidades, e jantares convívio e workshops e lançamentos de livros, cá continuaremos, a fazer por tornar um pouco mais real esse propalado lugar de encontro entre a lusofonia e a China, esse lugar de encontro chamado Macau. Será sempre esta a marca distintiva deste festival.

“Embebido em saudades do presente…” – para citar o mesmo soneto de Pessanha – por cá continuaremos, com a cabeça e o coração na Rota das Letras. Até breve.