Leonel Alves

Pela marginal da memória, uma romagem pessoal

Leonel Alves, advogado, membro do Conselho Executivo e antigo deputado à Assembleia Legislativa
No planisfério sentimental de Leonel Alves, um lugar há que se alça acima de todos os outros. O advogado, membro do Conselho Executivo e antigo deputado à Assembleia Legislativa, cresceu, no final da década de 1950 e início da década de 1960, na Meia‑Laranja, e as memórias que guarda do trecho final da Avenida da República são douradas e cordiais como o incêndio celeste que iluminava o horizonte nos poentes da sua infância

Texto Marco Carvalho
Fotografia Leong Sio Po

Leonel Alves regressa com frequência onde foi feliz. Da Avenida da República guarda memórias aquilinas “de uma infância muito bem vivida”. Tão bem vivida que a Meia-Laranja se tornou ponto de romagem habitual para o advogado, se mais não for pelo inconfundível perfume das banyans e pelas janelas que abre para o passado.

“É necessário proteger esta semicircunferência que é a Meia-Laranja e salvaguardar esta ambiência que vai do Bela-Vista até à Barra ou, pelo menos, até à Fortaleza de São Tiago. Esta zona é privilegiada. Faz parte de Macau, faz parte da história de Macau e das vivências que Macau teve ao longo dos séculos. Não podemos esquecer que Macau começou exactamente nesta zona da Praia Grande e da Avenida da República. Esta ambiência deve ser preservada porque é a génese e a essência de Macau”, salienta.

Não foi imediata, a epifania. Quando regressou a Macau em 1982, depois de concluída a licenciatura em Direito na Universidade de Lisboa, Leonel Alves deu por si acometido por uma inesperada nostalgia. Não é que se sentisse estrangeiro na sua própria cidade, mas uma inquietude crescente apequenava-lhe a calma. Um certo clamor de ausência insinuava-se com insondável perseverança sempre que lançava os olhos ao horizonte, amplo como sempre, mas depurado e vazio.

“Sentia falta de alguma coisa e não sabia explicar a mim próprio o que era. Passados uns tempos, cheguei à conclusão que faltava o quê? Faltava exactamente a vista dos juncos chineses que voltavam da faina, ao final da tarde, com o pôr-do-sol. Era isso que me faltava. Eram as velas dos juncos e os barcos a regressarem. Mas só me apercebi disso anos depois”, reconhece Leonel Alves.

Em nenhum outro lado a visão do cortejo fluvial – o velame beijado pelo sol imorredouro e fecundo do final da tarde – era tão inebriante e magnânimo como no extremo da península, onde as águas pardas do Porto Interior se lançavam na vertigem do Delta, aos pés de São Tiago da Barra. A vetusta fortaleza que nos primeiros anos da década de 1980 ganhou novo fôlego e novo nome foi vezes sem conta, nos anos privilegiados da meninice, recreio e refúgio de Leonel Alves.

“O meu pai tinha muitos conhecidos entre os militares, que viviam na fortaleza, e eu passei um tempo considerável da minha juventude a jogar à bola nos terrenos do quartel, muitos anos antes de a pousada existir. Havia os aquartelamentos e havia a capela, onde se realizava, a determinada altura do ano, uma novena. Frequentávamos essa novena, até porque para lá ir, só tínhamos de caminhar umas dezenas de metros”, recorda.


“Na Avenida da República o cheiro é inconfundível. Sempre que passo por cá e me demoro um pouco à sombra destas figueiras-da-índia, os tempos antigos vêm-me de imediato à memória”, confidencia Leonel Alves, na candura do miradouro da Meia-Laranja, de onde costumava acenar, nos longínquos dias da infância, aos ferries que rumavam a Hong Kong. Nascido a 5 de Abril de 1957, foi ali, na marginal da Avenida da República – as águas turvas do Rio das Pérolas a arrulhar de mansinho onde Macau findava – que viveu os dez primeiros anos “de uma meninice bem vivida”.

“Era um local muito distante do centro da cidade. Sentíamo-nos um tanto ou quanto fora do contexto urbano de Macau e tínhamos muito poucos vizinhos, o que não é propriamente habitual numa cidade. Entre eles estava Oseo Acconci e a família, que ocupavam o rés-do-chão e o primeiro andar do edifício onde eu cresci. A minha infância foi passada num contexto muito fechado, muito pacato, mas muito feliz”, assegura. 

“Passávamos aqui o tempo. Jogávamos à bola, aprendemos aqui a andar de bicicleta, tínhamos o rio aqui à porta e pescávamos. Na época do Ano Novo Chinês queimávamos panchões. Era uma zona privilegiada para esse efeito. Na altura do Grande Prémio, os carros circulavam pela cidade, inclusive os de Fórmula, e estacionavam aqui, na Meia-Laranja. Do outro lado da rua havia um hotel maravilhoso, chamado hotel Caravela, onde ficavam alojados sobretudo turistas japoneses. Vínhamos ao Caravela beber uma Coca-Cola e era assim que rematávamos as nossas sessões de brincadeira”, complementa Leonel Alves.


Os anos passados no trecho final da Avenida da República – os olhos postos com mais frequência na fronteira ilha da Lapa e no fio do horizonte do que propriamente no Senado ou na Guia – foram tão impactantes que ainda hoje Leonel Alves regressa sempre que lhe é possível à serenidade da Meia-Laranja. 

Arredada da orla, a vetusta marginal preservou os curvilíneos contornos que a transformaram numa das mais pitorescas artérias da cidade e o charme intemporal do empedrado e a frescura das banyans são como que janelas abertas para os anos d’ouro da infância.

“Pode parecer mentira, mas faço o possível por passar por aqui todos os dias de manhã, sempre que venho da Taipa, onde resido, para Macau. É uma espécie de romagem de saudade que faço na medida do possível. Vivi cá tempos muito intensos”, admite.

A um recanto idílico quase na órbita da península, segue-se a vertigem de uma cidade em expansão acelerada. Aos dez anos, Leonel Alves muda-se com a família para o já desaparecido Bairro Albano de Oliveira, a meio termo entre o templo de Kun Iam Tong e o Colégio D. Bosco. A mudança para a zona da Avenida Coronel Mesquita – menos bucólica, mas igualmente típica – escancara as portas a um novo ciclo e acelera o adeus à infância.

“A minha família mudou-se para o bairro Albano de Oliveira, perto do Colégio D. Bosco. Era um conjunto de oito moradias de arquitectura ocidental, um bairro muito típico onde moravam várias famílias macaenses, portuguesas e cabo-verdianas. Passei lá uns bons cinco, seis anos, que coincidiram com o período em que frequentei o ensino secundário, primeiro na Escola Comercial e depois no Liceu”, recorda o causídico.


Leonel Alves assume-se como saudosista. A nova Macau, a dos hotéis colossais e do pastiche arquitectónico, não tem lugar na sua geografia sentimental, não tanto por razões de foro estético, mas porque aquilo de que sente falta na Macau de antigamente não é tanto dos lugares e do património edificado, mas das circunstâncias e das pessoas que as urdiram. 

Veja-se o caso da Escola Comercial Pedro Nolasco, que se transmutou em Escola Portuguesa de Macau. As duas entidades sobrevivem no imaginário colectivo de diferentes gerações como realidades estanques e inconfundíveis. A realidade que conheceu na extinta Escola Comercial, pela mão de mestres como Henrique de Senna Fernandes ou José Silveira Machado, teve uma influência profunda no seu percurso pessoal.

“Outra zona de que guardo-boas memórias é, exactamente, a zona onde se situa agora a Escola Portuguesa de Macau. Na altura era a Escola Comercial Pedro Nolasco. Estudei lá cinco anos. Depois transitei para o Liceu e, para além destes dois estabelecimentos, também estudei no Colégio de Santa Rosa de Lima. Fiz o triângulo dos três estabelecimentos”, revela Leonel Alves.

Dos três, o mais marcante, assume, é a Escola Comercial. O estabelecimento de ensino ofereceu ao antigo deputado a possibilidade de privar de perto com personalidades maiores-que-a-vida.

“Gostei muito de Henrique de Senna Fernandes. Foi meu professor de história. Influenciou-me não propriamente na escolha do Direito, mas na arte de falar e de comunicar. Também fui aluno do professor Silveira Machado, que me ensinou as primeiras noções do comércio e do professor Amorim, com quem aprendi contabilidade”, recorda. “Essas noções de contabilidade ainda hoje me são úteis na vida profissional. Quando tenho algum litígio que envolve conhecimentos contabilísticos, obviamente que me recordo daquilo que aprendi na altura”, remata Leonel Alves.

Escola Portuguesa de Macau