Angola, Documentário e reconstrução

A Associação Angola-Macau, recém criada no território, estabeleceu com a Teledifusão de Macau um protocolo para a realização de um documentário de televisão em português, inglês, mandarim e cantonense, com o intuito de mostrar este país africano à China e de revelar os chineses que já o descobriram. Um jornalista angolano em Macau conta na primeira pessoa essa aventura enquadrada nas comemorações dos 30 anos da independência de Angola

 

Dois dias depois da festa de apresentação da Associação Angola, que durante algumas horas me “pôs” já em Luanda, embora fisicamente estivésse ainda em Macau, arranquei a 11 de julho de Hong Kong para a capital angolana, via Joanesburgo. Foi o que se arranjou, quando os vôos para Luanda andam todos cheios (mais de 80 por cento de acréscimo de visitantes, este ano em relação ao passado, dizem as estatísticas).

Sigo à frente para ainda tratar de questões que se prendem com a produção do documentário. A diferença de fuso horário e a distância não permitiram resolver a partir de Macau muito do que era necessário. O Luís Nestor Ribeiro, com as câmaras, ia chegar uma semana depois.

Tinha estado em Luanda em Abril deste ano e voltado a Macau com a sensação de que as coisas estão a melhorar a cada mês que passa. A impressão foi confirmada por mais algumas melhorias no terminal internacional do Aeroporto 4 de Fevereiro. Interrogo-me se o terminal doméstico também acompanhou a evolução, mas não demoro muito a perceber que não. Continua uma péssima experiência para quem quer atingir as províncias, muito má mesmo para quem viaja em classe económica.

No caminho para casa vejo que, logo a meio da manhã, o trânsito já é impossível, mas consolo-me pensando em Banguecoque. Facto é que existem hoje em dia na capital angolana mais carros registados – sublinho, registados – do que o número oficial de habitantes em 1975. Como estes anos não foram gastos propriamente a melhorar a estrutura rodoviária, conformo-me com a sorte que vou ter durante os dias que se seguem.

E assim é: as deslocações a fazer, aos ministérios, órgãos de comunicação social, hotéis e o que mais havia para tratar é tudo entremeado de longos períodos engarrafado no trânsito. Vá lá… em Luanda os telefones celulares funcionam, nem tudo é tempo perdido.

A primeira verdadeira surpresa que tenho é na Televisão Pública de Angola. Na TPA, além de reencontrar amigos, marcam a reunião prontamente, recebem na altura indicada e cumprem o prometido, não só no dia como na hora combinada. Fico com a sensação de que também as mentalidades estão a mudar, mas não quero ser demasiado optimista. “Se os angolanos, já assim, são convencidos, se aquilo vira um país a sério então vamos ter problemas” – recordo as palavras do mais velho.

Dias mais tarde, já regressado das províncias, outra experiência viria a demonstrar que, de facto, a forma de funcionar está a alterar-se. A eficiência não é a que estamos habituados, mas o ponto de partida é também muito distante. Há coisas que até têm mesmo que ser feitas daquele modo, porque se não forem não estamos em África.

O Nestor chega entretanto, fica num hotel próximo, aos preços proibitivos que vingam em todo o lado. Uma noite em Luanda, num hotel de quatro estrelas, não se arranjava por menos de 15.000 kwanzas, o equivalente a quase 1400 patacas (USD 175). Com os potenciais investidores a desembarcarem ao ritmo a que o fazem actualmente em Angola, os preços da estadia já devem ter subido entretanto.

Em Luanda o programa de filmagens cumpriu-se de acordo com as expectativas, na perspectiva local: as alterações ao estabelecido estão previstas, só não se sabe para quando. Nem se pode chamar problemas a algumas dificuldades levantadas por agentes da autoridade mais diligentes, rapidamente ultrapassadas por explicações dadas pelo nosso agente, simultaneamente motorista, contratado para o efeito. Depende da linguagem que se utiliza, agora menos que da “gasosa” que refresca a sede ou aquece o bolso, consoante a ocasião.

Os contactos com os chineses, esses correram milimetricamente conforme o previsto. Recebidos pelo embaixador Zhang Beisan (o título de “Extraordinário e Plenipotenciário” é elucidativo da importância que têm as relações bilaterais), tivémos a fotografia completa da situação e o apoio inexcedível, a partir daí, do segundo secretário da Embaixada, Xie Huidong. Foi como sentir-me em casa duas vezes…

Nas empresas chinesas que trabalham em obras públicas, electrificação, caminhos de ferro e maquinaria agrícola as filmagens correram tão bem em Luanda quanto as realizadas depois a sul, sobre telecomunicações, instalação de fibra óptica e novas centrais telefónicas. Luanda põe os nervos em franja ao mais avisado. Por isso, a ida para sul chegou no momento exacto, quando o trabalho já não corria oleado como no início.

Havia que escolher. Em duas semanas de filmagens, uma tinha que ser gasta na capital. Como em muitos outros casos, o resto, se não é paisagem, pouco passa daí. Além de estar em Luanda a maioria dos objectivos a filmar. Em quinze dias não se conhece um sétimo da China. Logo, não se dá a volta a Angola. A opção foi assim avançar para a segunda cidade angolana: Lubango, antes Sá da Bandeira.

A escolha parte também do ponto de vista que decidi dar ao documentário. Da fome, da guerra, da destruição, dos meninos de barriga inchada e mosca no olho, passam as televisões mais do que o que realmente existe. Se mesmo em Portugal, da vida do povo, da situação das cidades, da cultura actual pouco se conhece, na China, com quem os contactos ainda não tiveram tempo de secar, nada se sabe. Há relações históricas entre partidos, agora comerciais entre Estados, mas as culturas nunca realmente contactaram. À escala das possibilidades da Associação Angola- -Macau, é esse o processo a que se pretende dar início, sabendo que o Governo da Região Administrativa Especial de Macau nos dá todo o apoio.

Assim, encontrar um dos quatro Cristos Rei do Mundo (foi o malaio Benny Banang, responsável pela obra que uma empresa de Xangai executa no Lubango, quem perguntou se era mesmo um dos três. Feitas as contas – Rio de Janeiro, Lisboa, aquele e o de Díli – acrescentou-se agora mais um); ver a imponência da

Serra da Leba, filmar a estonteante Fenda da Tundavala; e apanhar o pôr-do-sol na chegada ao Deserto do Namibe, permitiu-nos aliviar a pressão e recolher outras imagens que nos eram fundamentais.

Ao deserto íamos ainda buscar vestígios históricos de 20.000 anos, animais selvagens e um povo nómada de tradições ancestrais – os mucubais.

Feita a recolha, havia que regressar a Luanda para limar as últimas perspectivas e entrevistar Paulo Jorge que, além de voz autorizada na história da Angola independente, iniciou contactos em Pequim com o Partido Comunista da China ao tempo em que este repórter estava a nascer: há 40 anos, precisamente.

Em Angola, como na China, há ainda o bom hábito de ouvir com atenção os mais experientes falarem – lembrei-me lá desse ponto de contacto entre civilizações, de que nem sequer ía à procura.

Foi já na despedida que se confirmou, então, a sensação com que tinha ficado: o sr. Vicente, paquete do Jornal de Angola, ao entregar-me num hotel as fotografias de arquivo que tinham sido prometidas, explicou: “Dantes, se as quisesses, ías buscá-las, porque o interesse era teu. Mas agora os chefes estão a dar o exemplo. Estamos na Reconstrução. Eu vou fazer a minha parte para não dar má imagem a vocês que estão lá fora. Estamos a mudar as mentalidades aqui”. Mentalidades?!? Saíram duas Cucas.