Português de todas as cores em Macau

Com o português como língua oficial Macau atrai gente de todos os países onde se fale a língua. Vêm à procura de melhores oportunidades de emprego e encontram-nas. Só dos países africanos de língua oficial portuguesa estima-se que sejam várias centenas de residentes.

 

Pelé tinha 19 anos quando lhe falaram em Macau. Tinham-lhe dado o nome aos oito anos por jogar bem, como o Rei. Podia ter sido um segundo Pelé se não fosse Macau. Podia ter sido um segundo Pelé se não fosse o gosto pelo mundo da noite. Ou se a vida não desse as voltas que sempre dá. Hoje, fala no passado como algo que não regressa, mas que o enche de orgulho ao mesmo tempo. “Dava um livro”, diz ele. E dava. A começar pelas ruas da Damaia, em Lisboa, onde cresceu como gente e como jogador. Onde aprendeu crioulo de Cabo Verde e comeu kalulu com peixe de São Tomé. Saudades dessa África tem, que a outra, a verdadeira, nunca conheceu. “Já viajei pelo mundo inteiro, joguei em quatro continentes, mas a África nunca fui”. Sente-se português, mas diz ser de São Tomé e, se tivesse de escolher um país africano, era Cabo Verde.

Pelé nasceu com o nome de José Martins, em São Tomé, mas aos dois anos foi com os pais procurar melhor vida em Portugal. Aos seis anos foi descoberto por um manager, enquanto jogava à bola nas ruas da Damaia, com outros meninos que já não eram africanos, mas tinham demasiado ritmo no corpo para serem portugueses. Nasceu cedo o sonho de vir a ser grande, chutar a bola por esse mundo fora e aos 13 anos Pelé largava a escola. Os pais não queriam, mas adolescente sabe sempre mais que os adultos, não aceita lições.

Aos 15 anos assinou pelo Sporting, depois de jogar em clubes mais pequenos. Mas Alvalade era outro campeonato. A vida estava ganha, tinha o futuro pela frente e o sonho realizado. Foi a sua primeira desilusão.

Meandros contratuais deixaram-no no banco o ano inteiro. E depois não houve renovação de contrato.

Dois anos depois veio a segunda desilusão, o início do fim. “Fui o melhor goleador júnior do campeonato português, com 64 golos marcados pelo Famalicão. Era natural que pensasse que iria ser convocado para a selecção de sub-21 do campeonato do mundo, que ia acontecer três meses depois, na Austrália”. Não foi. “Quem não ia ao campeonato tinha de cumprir o serviço militar, que era de um ano e seis meses. Não tive escolha”.

Quando lhe falaram em jogar futebol em Macau disseram-lhe também que, do então território sob administração portuguesa, poderia saltar para outros países e jogar a nível internacional. Pelé estava desiludido. O Sporting já ia longe, a selecção de sub-21 longe ia. Aos 19 anos, a vida parecia perdida. “O meu pai disse-me para completar o serviço militar, que os meus sonhos se iriam realizar. Mas eu não podia esperar”. Pelé inventou uma desculpa para sair do quartel e nunca mais voltou. Era um desertor, mas não pensava no futuro, que naquela idade até a respiração parece engolir a vida. Jogou no Negro Rublo, em Macau, pela selecção do território, na Liga dos Campeões Asiáticos, e depois assinou contratos no Brunei, na Austrália e em Goa.

Mas Portugal. Portugal já lhe dava comichão de tanta saudade, de tanta vontade que tinha de voltar ao futebol português. E o Sporting que não lhe saía da cabeça. Arranjou um contrato para o Imortal de Albufeira.

Ficou lá cinco dias até ser preso por deserção do serviço militar. Oito meses no quartel de Beja. Era o fim.

“Acho que foi aí que eu entendi que o tempo tinha passado. Nunca seria um Pelé”. A sua carreira não terminou, mas José Martins passou a jogar só pelo prazer. Encarou a realidade. Acabou por voltar ao sítio onde fora feliz e hoje não quer outra coisa: Macau.

Treina a equipa de futebol da Casa de Portugal, joga na equipa do Futebol Clube do Porto, do território, e é personal trainer no spa do resort-hotel MGM Grand. Com três filhas, estando duas na escola luso-chinesa “para aprender chinês”, tem a vida feita e um futuro pela frente. Portugal nem lhe passa mais pela cabeça e, neste momento, mais vontade tem de trazer a família, um dos irmãos quer vir, já que amigos em Macau tem mais que muitos.

Pelé tem o à-vontade e a descontracção são-tomenses. É homem de confiança e sorriso fácil. Faz amigos com facilidade e foi o que valeu quando começou a gerir bares em Macau. “Macau dá muitas oportunidades a quem quer trabalhar, fazer alguma coisa nova e a noite cá era toda igual, só davam house. Eu metia música africana, salsa, R&B e vinha muita gente às festas”. Embora Pelé não lhes dê o nome de festas africanas, a verdade é que a comunidade dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, que Pelé diz serem cerca de 700 pessoas, aparece em peso nessas noites de ritmos quentes. “Acho que me poderia ter tornado um craque no futebol se não gostasse tanto da noite. Mas agora já tenho 35 anos. O futebol profissional já vai longe e hoje só tenho a noite”. Um dos seus sonhos é ter o seu próprio bar dançante, onde, à noite, os corpos suem na dança e, de dia, o espaço se transforme na sede da Associação de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. “Só existem associações de cada país, mas era preciso unirmo-nos, termos uma associação de todos!”. Trinta e cinco anos é idade grande para o futebol, mas, para o comum dos mortais, ainda é juventude.

 

No centro comercial do maior casino do mundo

 

Thaís Pinheiro da Silva tem 25 anos, mas o ar senhoril e o lápis negro que lhe emoldura os olhos cor de mel dão-lhe um ar mais velho, de mulher consciente, madura. Nascida em São Paulo, no Brasil, e com o curso de hotelaria feito no Estoril, em Portugal, já tem os dois sotaques dissolvidos na linguagem própria de quem já é do mundo. Chegou há sete meses a Macau com o marido, que trabalha num restaurante do resort-hotel MGM Grand, sem trabalho garantido, nem perspectivas. “Mas ter estudado numa universidade da Europa e ter trabalhado em hotéis e restaurantes internacionalmente conhecidos ajudou muito. Em duas semanas arranjei emprego”.

São sete da tarde e o restaurante brasileiro Fogo Samba, no Venetian resort-hotel, ainda está a meio gás. Thaís aproveita para ver se está tudo em ordem, dar as últimas instruções aos empregados de mesa, fazer os acertos finais antes da enchente da noite. A seu cargo tem 60 empregados de mesa e 20 na cozinha e logística. Tudo o que sabe aprendeu no Estoril e nos locais onde trabalhou durante o curso, o Vila Vitta no Algarve, o Hotel da Penha Longa e o Hard Rock Café em Lisboa, onde conheceu o marido. Foram seis anos em Portugal, que já a fazem ter saudades do cozido à portuguesa e dos petiscos alentejanos que o sogro fazia. Saudades que não chegam a nostalgia, que Macau também lhe sabe bem. “Eu gosto muito de estar cá. Acho que as pessoas são simpáticas e, embora a cultura seja incomparavelmente diferente da nossa, penso que os chineses de Macau sabem respeitar a cultura dos outros. Para além disso, os salários são muito melhores”.

Com uma folga semanal, Thaís admite que também trabalha mais do que alguma vez trabalhou, mas compensa. Em Macau, consegue ter um nível de vida, e uma capacidade financeira para viajar e conhecer a Ásia, que nunca teve. E tem oportunidades de trabalho que nunca foram capazes de lhe dar. “A hotelaria em Macau é diferente da hotelaria de Portugal. Aqui há muito dinheiro e por isso se pensam e prevêem os detalhes que fazem os ambientes inesquecíveis. É por causa dessa capacidade financeira que eu tenho muita autonomia. Durante o meu turno sou eu que tomo as decisões, não tenho de estar sempre a perguntar ao meu superior se está certo ou errado”.

Thaís também admite que Macau é ideal para jovens. Explica que como há pouca mão-de-obra qualificada que fale inglês, a procura de estrangeiros licenciados é grande.

Para a brasileira, Macau não é um paraíso. Mas é sítio que trata bem os que chegam para trabalhar. Thaís não prevê o futuro. Por enquanto está aqui. E aqui há muitas oportunidades para crescer. “Quando eu cheguei não havia nada ali no Cotai, onde está a funcionar o Venetian. Em sete meses já há um monte de hotéis a serem construídos!”.

O Cotai Strip é uma zona de aterros, entre as ilhas da Taipa e de Coloane, que alberga uma das novas zonas do jogo de Macau.

 

Direito em Macau, advocacia na Guiné

 

O direito estava-lhe no sangue. Tanto o pai como a mãe, ambos guineenses, estudaram direito em Coimbra e Taylor Barreto Gomes sempre pensou em cursar direito ou ser jogador de futebol. A bola desapareceu-lhe da cabeça à medida que a sapiência da idade adulta foi chegando. Ficaram as leis. Com 23 anos, Taylor estuda na Universidade de Macau com uma bolsa da Fundação Macau. Vivendo em Coimbra, o pai, que trabalha na empresa importadora de castanha de caju da Guiné do avô de Taylor, preferia que ele se licenciasse na Europa. Foi a mãe, coordenadora da plataforma das Organizações Não Governamentais em Bissau, que lhe falou em Macau, que o curso de direito baseava-se no de Coimbra e era dado em português. “Eu tinha uma ideia completamente diferente de Macau. Achei que fosse pequenino, colonial, cheio de cultura”.

Não se pode dizer que Taylor esteja desiludido. Mas também não pensa exercer advocacia por aqui. “Macau é um sítio cheio de luxos, mas alienado. Cada vez mais se sente a falta de cultura. A maioria dos jovens estuda gestão para ir depois trabalhar nos casinos. Parece que só o dinheiro interessa aqui, não se pensa na vida social”. Ainda assim, Taylor admite que esta é uma experiência que o faz crescer e aos 23 anos só pensa em fazer algo pelo seu país, Guiné-Bissau. Estando no terceiro ano do curso, ainda lhe faltam dois para completar os cinco, mais os dois do estágio na Associação dos Advogados. “O curso é bom, e a bolsa que recebo dá-me para viver. Mas quero exercer lá, no meu país, onde qualquer gesto sabe a muito”.

Taylor nasceu em Coimbra no seio de uma família guineense que se tinha estabelecido naquela cidade portuguesa. Quando era mais novo dizia-se português, mas o tempo foi-lhe mostrando outra realidade. Todos os anos o avô, que não queria que os netos esquecessem o crioulo, mandava todos para Bissau. Taylor passava as férias do Verão e do Natal com os primos na Guiné e “isso fez-me muito bem. Se hoje entendo qual é o meu lugar no mundo, foi graças a essas férias que lá passava todos os anos”.
Portugal não deixa de ser o seu país, mas sente-se guineense. Talvez por saber que é lá que fará vida, talvez por ter família que sempre teve importância política na Guiné. O seu avô materno foi um dos ministros de Nino Vieira, e foi assassinado durante umas das férias de Taylor em Bissau. A mãe também tem ligações políticas e Taylor admite que poderá enveredar por esse caminho. Para Taylor, Macau é um ponto de passagem, que lhe dá estudos e maturidade, mas só um ponto de passagem até à Guiné. De onde veio, para onde vai.