Bonecos articulados com ling

Os espectáculos de teatro de marionetas de sombra ede ópera, que no passado eram um ingrediente assíduo das festas populares da China, antes do aparecimento da televisão, praticamente desapareceram. Hoje, é possível o reencontro com essa magia. Voltaram a ser ma forma de entretenimento, tal como uma peça de teatro ou uma ópera, que juntam famílias e curiosos

 

O espírito ling faz mover o boneco com uma gestualidade graciosa, enquanto o titereiro por cima o maneja. A marioneta, nome mais vulgar do títere, representa Zhong Kui na imagem de um boneco articulado e manipulado por fios.

Num cenário despido de palco e sem esconder o titereiro é-nos narrada, num cadenciado de momentos e pela expressão corporal e de gestos, parte da história de vida desta personagem: depois de ter reprovado, pois adormeceu durante a prova do exame para mandarim, volta passados três anos à capital para o repetir. Apesar de ter feito um bom exame, o seu nome é substituído pelo de um sobrinho do Comissário Imperial. Passados nove anos volta à capital mas, no caminho, um espírito mesquinho apanha-o numa armadilha e desfigura-lhe a cara. Tendo passado nos exames, mas devido à sua fealdade, não foi escolhido para nenhum cargo oficial. Desconsolado, entregou-se à bebida e a provocar desacatos – altura em que agarra a jarra pousada sobre a mesa e simula verter vinho para o copo. Segurando a jarra por várias vezes, dela parece beber. Estes movimentos só são possíveis porque os títeres em Quanzhou têm a particularidade de também agarrarem, com os polegares, objectos com asas ou o pé dos copos.

As companhias de teatro de marionetas, de sombra e de ópera, eram muito requisitadas para animar as festas e os serões até ao aparecimento da televisão. Desde então, decaiu o interesse por esses espectáculos, o que provocou grandes dificuldades financeiras a muitas companhias. Mas no princípio do século XXI estas formas de teatro, que quase desapareceram, começam a ressurgir.

Antes dos espectáculos, os artistas (e depois de colocarem incenso no altar da deusa Flor de Ouro – a Senhora Huifu-, protectora do teatro de Sombras e de Marionetas na China) retiram do baú os títeres. Estes são feitos de madeira e têm diferentes tamanhos, variando por norma entre 45 a 70 cm de altura. Com um complexo trabalho de mãos, os titereiros manipulam os fios, que se encontram ligados aos títeres. Os que movem o corpo, a cabeça e os braços estão ligados a uma pequena vara de madeira, enquanto os fios que mexem os membros inferiores e as mãos são directamente puxados pelos titereiros sem ajuda da vara. As vestes escondem o corpo. Para os titereiros, os títeres têm alma e é por isso que, antes dos espectáculos, e depois de os retirarem dos baús, os acariciam e falam com eles,  procurando que o espírito ling os possua.

 

História dos títeres

 

Durante nossa visita a Mandalay, em Myanmar, onde assistimos a um espectáculo de marionetes, ficámos a saber que as origens deste teatro estão na  Índia e na China. Procuramos nas bibliotecas livros que nos dessem pistas para chegar aos títeres e titereiros.

O espectáculo de bonecos articulados (mu’ouxi) terá começado no século X a.C., durante a dinastia Zhou, e muitas dessas representações estavam incorporadas nas cerimónias funerárias.

Em 1979, um boneco articulado de madeira, com dois metros, foi desenterrado de um túmulo da dinastia Han do Oeste (206-24 a.C.), na província de Shandong. Composto por 13 partes atadas com fios o boneco pode sentar-se, estar de pé, de joelhos e andar. Na província de Shaanxi, em 1988, foram encontrados, num túmulo do período Xin (9-24), dois títeres de madeira cuja cabeça e mãos tinham mobilidade também com ajuda de fios. E no período dos Três Reinos (220-280) havia espectáculos onde titereiros punham os bonecos a fazer acrobacias e a dançar ao som de música.

Com a abertura da rota do Oeste, muitos foram os grupos artísticos estrangeiros que actuaram na China vindos sobretudo da Índia.

Esses grupos contribuíram para a grande evolução na arte deste espectáculo, que passou a ser também encenado para o divertimento do público e não apenas efectuado em funerais. Os bonecos deixaram de ter o tamanho das pessoas e passaram a ter dimensões mais reduzidas.

Na dinastia Tang, os títeres eram conhecidos como “esculturas de madeiras com fios atados” e foi como um desses velhos bonecos que se sentiu o imperador Xuanzong ao ser deposto. O teatro de marionetas passou a ser executado também nas cerimónias de casamentos.

Na corte da dinastia Song, no século XI, os espectáculos com títeres eram muito populares. Por essa altura, chegavam ao porto de Quanzhou muitos indianos e com eles trouxeram esta arte já bem desenvolvida, com especializações, e que contavam entre outras com espectáculos de bonecos sobre a água (hoje ainda é possível vê-los em Hanoi, Vietname).

 

Na casa das marionetas

 

Sabemos ser Quanzhou, antiga cidade portuária de Fujian, de onde partiam os juncos pela Rota Marítima da Seda, um dos locais na China ligados às marionetas. Durante dias, deambulando pela cidade, procuramos uma loja de títeres, questionando os habitantes sobre onde as encontrar – mas debalde. Já sem esperança, uma manhã, durante um passeio, ao olhar para uma montra, vemos uma enorme marioneta de dedo. Entramos e um ambiente íntimo (nada parecido com as outras lojas) revelou estarmos numa dessas lojas onde os títeres são as personagens principais. Fascinados pela imensa variedade de lindíssimas marionetas logo perguntamos onde assistir a um espectáculo. Dizem-nos que a trupe estava em digressão e teríamos de esperar duas semanas. Esperámos. Voltamos duas semanas depois e ficamos a saber que, nesse dia ao fim da tarde, iria haver um pequeno espectáculo.

Entramos na casa das marionetas. O espectáculo vai começar e da figura do titereiro, vestido de preto, apenas a cara e as mãos se percebem, apesar de não estar escondido por cima do palco, como normalmente acontece.

Vemos Zhong Kui, que nasceu e viveu durante a governação do imperador Xuanzong (712-755), ainda se apresenta com as vestes vermelhas de oficial imperial dadas a título póstumo. Vai manejando a sua espada que reduz a cinzas os fantasmas, não fosse ele uma divindade, Juiz General do Mundo dos Espíritos…