A dançar é que as gentes se entendem

Sara Batalha em Macau
Não é preciso ter experiência. Basta curiosidade, vontade de aprender e partilhar. Dezenas de chineses, portugueses e não só participaram no unitYgate 2012 em Macau, a plataforma artística da Companhia de Dança Amalgama, que quer unir culturas através da dança e da arte. O evento sobreviveu a um tufão, fez vários amigos e promete voltar. Neste mês de Setembro está em Portugal

 

Sara Batalha em Macau

 

Texto Filipa Queiroz

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Up!…Down!… Stay down… Now push! E os corpos movem-se como se fossem ensaiados, sem o ser. Como ondas partem do mesmo oceano em que Sandra Battaglia é o vento que os sopra através das palavras, mas sobretudo dos gestos. O ritmo canto-o Laurie Anderson – Freefall (em português Queda Livre). Nada é por acaso. Enjoy your movement, come on, let go, comanda a coreógrafa. Os gestos são bebidos pelos olhos sedentos dos seis participantes chineses e uma portuguesa na sala.

Domingos, 27 anos, é o único rapaz. Não sabe falar português e apenas fala um pouco de inglês. “Mas também não preciso. As minhas colegas ajudam-me e o mais importante é mesmo observar e fazer”, conta num curto intervalo do workshop de Dança Contemporânea do unitYgate. “Estava curioso por saber como eram as aulas, e são especiais. A professora não diz que tem de ser assim ou assado, pede para nos mexer-nos livremente, para escolhermos como queremos dançar. Diz-nos para usar o corpo, expressar as nossas emoções e a nossa criatividade.”

Não é apenas um método, é uma filosofia. A filosofia por trás da Companhia de Dança que Sandra Battaglia dirige em Portugal, a Amalgama, com 12 anos, e do projecto que nasceu em Macau e que tem um pé aqui e outro em Portugal. O unitYgate – Pontes entre o Ocidente e o Oriente é uma plataforma artística, um intercâmbio cultural feito de uma série de workshops, que vão desde a dança ao ioga e à meditação, criação cultural e reflexão. Nasceu da “urgência de criar proximidade e organizar encontros que proporcionassem a todos uma verdadeira partilha, oportunidades de crescimento conjunto, de compreender esta pluriculturalidade”, explica Sandra Battaglia. “É suposto ser uma espécie de portal de união com a arte e através da arte.”

 

Primeiros passos

Quando chegou a Macau pela primeira vez, no ano passado, Sandra falava mal inglês. Veio a convite do Instituto Cultural para ensaiar um grupo composto por elementos de comunidades diferentes e conceber um show-case de dança multicultural, integrado no Festival de Artes de Macau. Voltaria dois meses depois, já acompanhada pela Amalgama, para participar na Grande Parada – Macau Cidade Latina, em Dezembro. Os convites fizeram com que a coreógrafa visitasse várias vezes a RAEM antes dos eventos.

“Tive a oportunidade de conhecer as culturas locais, de sentir o que de melhor pulsa nelas, e do que eventualmente carece esta proximidade cultural que tanto é estimulada e no fundo cria uma espécie de chamamento aqui a Macau”, explica a coreógrafa e directora artística. A especialidade dela é a dança contemporânea. Pouco conhecia da cultura chinesa. “E de repente estava a trabalhar com 70 pessoas que não se tocam, não se olham, nem sequer são espontâneas porque não sabem o que é ser espontâneo no movimento, e introduzo-os à minha metodologia. Não imagina o que foi…”, conta. “A resistência, os risos. Eu acho que nem eles sabiam o que sentiam”, completa.

Quem a vê agora, em momentos de grande intimidade onde portugueses e chineses se abraçam, se fundem e se recriam através da dança e com a dança, não diria. “Há uma coisa que caracteriza esta metodologia que é a condução. Faz com que as pessoas passo a passo vão derretendo essas couraças da resistência, do preconceito ou mesmo o sentimento de julgamento”, descreve.

No final das contas, foi desta espécie de revelação que apareceu a vontade de organizar o primeiro unitYgate. Fez-se apenas em Portugal, em Agosto e Setembro de 2011, com a participação de dois artistas de Macau – Chan U Hong e Renu Dhawan. O primeiro chinês e o segundo de origem indiana. Durante vários dias dezenas de pessoas participaram nos workshops, palestras e formações.

 

Pauliteiros de Macau

Volvido um ano, o unitYgate chegou finalmente ao território. Fez-se de 20 a 31 de Julho e incluiu workshops de música e dança tradicional portuguesa. Não é novidade que o género encontra fãs em Macau, e as sessões comandadas por Rui Filipe Reis não foram excepção. O músico e produtor português é que não sabia o que o esperava. “Já tinha vindo a Macau em projectos artísticos mas nunca para uma acção de formação. É muito interessante ter à frente pessoas com interesse em aprender e querer entrar dentro de áreas da cultura e tradição portuguesa que, para começar, não falam português”, conta Rui.

Nos workshops a ideia é partilhar repertórios, instrumentos, formas e estruturas originando uma espécie de fluxo em círculo, não só dando mas também recebendo e criando coisas novas. “Tivemos, por exemplo, uma pessoa da Mongólia que chegou com um acordeão, participou e acabámos por desenvolver material completamente novo”, explica. Cantou-se canto alentejano, dançou-se a Laranja da Horta Nova, o Fadinho de Parceiros, a Chula da Ariosa e os pauliteiros. Cláudia Santos faz parte da Amalgama há dois anos e coordenou a parte da dança. “É muito interessante, sobretudo percebermos como culturas diferentes têm interesse umas pelas outras. Parece que as pessoas saem das aulas com um certo brilho. Até pediram aulas extra”, diz.

Depois de Macau, o unitYgate 2012 continua em Portugal. De 14 a 29 de Setembro a Escola de Artes Mahara, em Mafra, e a sede da Comunidade Hindu de Portugal e do ESMTC, em Lisboa, recebem a segunda fase da plataforma, com mais eventos e a participação de oito artistas de Macau. Bailarinos do Violet Dance Company, do The Dance Studio Macau, Renu Dhawan e Ashid Dhawan. Há workshops de movimento, dança criativa, danças históricas, escrita criativa, sevilhanas, canto, pintura, percussão, dança contemporânea, kattak, jazz, hip hop, dança chinesa, tai chi, meditação, bollywood, pranayama e ballet.

A experiência não é um pré-requisito e, além da formação, há uma parte de criação conjunta, em que um grupo seleccionado cria um espectáculo, e de reflexão. “É um projecto em crescimento que provavelmente estará sempre em crescimento, e vai-se transformando e construindo ano a ano”, remata Sandra Battaglia, que espera inclusive expandir o projecto à Índia, China e Timor-Leste.

Da experiência em Macau fica um balanço “muito positivo” que, apesar de atrapalhado por um tufão sinal 9, levou durante uma semana dezenas de pessoas a dançar, aprender e partilhar através da arte ao ateliê da Casa de Portugal, na Areia Preta.