Escola para o mundo

Chegam dos quatro cantos do mundo onde se ouve falar português para estudar na China. A última vaga de estudantes lusófonos não só vai para o Império do Meio para aprender chinês como já conquistou um lugar nas fileiras das universidades chinesas nas mais diversas áreas, da arquitectura à medicina, das engenharias à diplomacia

 

Lusofonos nas Universidades Chinesas

 

Texto Vera Penêda | Fotos Wong Kei Cheong, em Pequim

 

Atraídos pela curiosidade e oportunidade num país gigante e desconhecido, os estudantes lusófonos estão agora a desbravar a China. O choque de transferir a vida para a Ásia tem a dimensão do desconhecimento. “Foi uma grande surpresa! É preciso estar aqui para entender a China”, foi assim que os estudantes lusófonos descreveram o primeiro encontro com o seu país anfitrião. “Vi uma China que não esperava encontrar: mais moderna e muito dinâmica, em franco desenvolvimento, que me impressionou pela positiva”, assinala o moçambicano Micael Chissico, de 26 anos, que já conhecia a China dos filmes de kung fu.

Bolseiros ou estudantes por conta própria, dão nota negativa à poluição, mas a experiência de vida e o idioma elevam a China ao quadro de honra. Têm as aulas todas em chinês e tiveram de aprender em meses o que levaria anos de dedicação para memorizar caracteres. Respeitam a cultura e o espírito empreendedor dos chineses, mas a maioria dos estudantes lusófonos quer regressar à pátria ou mudar para outro país, porque depois de ter a China no currículo, há um mundo por explorar.

As dimensões e a diferença impressionaram Micael Chissico, que chegou a Pequim há seis anos e está no quarto do curso de diplomacia na Universidade de Negócios Estrangeiros da China. Antes de abraçar o Império do Meio, porém, esteve três anos a estudar chinês. Patrick Silva, de 22 anos, é de Cabo Verde, está há três anos na China, estuda engenharia mecânica na Universidade de Tecnologia da capital, e fala de uma experiência única. A brasileira Kellen Mauri ficou inicialmente preocupada com o céu e o ar carregados, mas depois deixou-se conquistar. “Fiquei impressionada com o preço baixo da comida e a forma dos chineses comunicarem gritando, eu sempre achava que eles estavam brigando.” Os amigos de Kellen duvidaram que ela tivesse o estômago necessário para viver do outro lado do mundo sozinha. “No Brasil, as pessoas acham que na China só tem produtos falsificados, que tudo aqui se copia. Que a comida é horrível e os chineses só comem cachorro ou cobra”, diz a estudante de chinês a rir-se. Uma especialização em acupunctura no Brasil inspirou Kellen a voar para Oriente para aprofundar os seus conhecimentos de medicina tradicional chinesa.

Só este ano, e segundo dados do Ministério da Educação chinês, há mais de 77 mil estudantes provenientes de 175 países a estudar nas 353 universidades espalhadas pela China. Cerca de 700, ou  seja, menos de um por cento do total, são provenientes de países de língua portuguesa. Mas o número promete disparar. O Brasil, por exemplo, assinou no ano passado um acordo com o Conselho de Bolsas de Estudo da China a contemplar 5000 vagas para universidades chinesas até 2015. Todos os anos, a China oferece 250 bolsas de estudo que cobrem todas as despesas dos brasileiros e mais 600 vagas que isentam os jovens de taxas e propinas das universidades.  O programa visa áreas prioritárias de formação, como é o caso dos estudos graduados ou pós-graduados em engenharias, ciências naturais e energia renováveis, mas prevê também a participação de alunos das áreas de humanidades e artes.

Angola também está presente com força. O governo chinês oferece anualmente 1960 bolsas de estudos a alunos angolanos e em Setembro deste ano ambos os países assinaram novos acordos para rever para a positiva esse número.

A maioria dos alunos opta por programas ensinados em chinês, mas o número de instituições a oferecer cursos em inglês está a aumentar. Para o ano académico 2013/2014, 34 universidades chinesas abriram portas com mais de mil cursos leccionados em inglês.

 

Aprendendo, memorizando

A primeira prova foi dura mas superada. “É difícil, mas não é impossível”, ressalta Micael. “Os professores só falavam mesmo em chinês, tive que encontrar forma de entender. E só memorizando é que funciona. Eu não estava habituado, não é assim que aprendemos inglês na escola. É preciso decorar, é a única forma de aprender tantos caracteres, sabendo que vai da esquerda para a direita, de cima para baixo”, relembra o moçambicano.

Kellen, que também já domina o chinês, relembra a rapidez com que teve de aprender o idioma. “Num mês terminámos um livro que levaria quatro meses para ser ensinado no Brasil.” Para a brasileira, a parte mais complicada foi entrar no ritmo rápido de estudo e habituar-se ao método de memorização que é usado nas universidades chinesas.

Alguns dos alunos são bolseiros ao abrigo dos acordos que os seus países têm com o governo chinês. As bolsas cobrem as propinas, o alojamento, o material escolar e o seguro de saúde. Os alunos recebem cerca de 200 dólares (1500 patacas) para as despesas mensais, numa cidade onde se pode almoçar uma tigela de noodles por menos de o equivalente a 20 patacas (3 dólares norte-americanos ou 2 euros), mas uma embalagem de cereais custa cerca de 70. Moçambique é pioneiro entre os países lusófonos na oferta de bolsas via um grupo empresarial e sem vínculo ao governo chinês.

As bolsas de estudo não chegam para cobrir todos os gastos, já que o custo de vida está a aumentar na China – as rendas em Pequim, por exemplo, já se podem igualar com as de Nova Iorque. Para complementar os rendimentos, a maioria dos alunos encontrou trabalhos part-time: desde ensinar inglês ou português, organizar eventos ou estagiar nas embaixadas, não é difícil encontrar trabalho.

 

Brilho no currículo

Bernardo Zola não tem dúvidas de que a China é uma matéria que brilha no currículo e que o chinês, que cada vez conquista mais adeptos, não é a única vantagem de uma estadia no país. “O perfil e poder da China tornam muito claro que as pessoas que falam chinês e têm experiência neste país têm uma grande vantagem em termos de conseguir emprego. Multinacionais e empregadores estão bem conscientes que a compreensão real da China, da sua cultura e dos chineses, é uma mais-valia da próxima geração de líderes”, sublinha o angolano de 27 anos.

Zola, que estuda arquitectura na Universidade de Arquitectura de Pequim, explica que para além das vantagens no currículo, estudar e viver na China ainda é relativamente mais barato do que em países europeus, nos Estados Unidos, no Japão ou na Coreia do Sul.

A natureza distinta do país e o ambiente multicultural a que os estudantes universitários estão expostos também entram na lista de benefícios. “As vantagens de viver aqui é que cada dia eu vejo algo diferente, conheço alguém diferente, aprendo algo novo a cada momento e profissionalmente acredito que terei mais oportunidades de trabalho por estar vivendo na China”, aponta Kellen, que só pretende deixar o país quando for fluente em mandarim e puder diferenciar-se no mercado de trabalho. “Estamos num meio multicultural onde temos a oportunidade de interagir com pessoas das mais diversas nacionalidades e podemos viajar muito”, acrescenta Abi Goia, estudante de Medicina de 20 anos e português de ascendência guine-bissauense, notando que as pessoas que conheceu em Pequim marcaram para todo o sempre a sua vida.

 

Estrangeiro é especial

“Então o senhor não é branco? Não é americano?”, perguntaram a Patrick quando ele apareceu para uma entrevista de trabalho como professor de inglês. “Até já me perguntaram: ‘Se você tem pele escura porque é que os teus dentes não são negros?!’ Estas perguntas me fazem rir,” desdramatiza Patrick quando a diferença é-lhe apontada.

Os olhos azuis, a pele negra ou os maneirismos estranhos dificilmente passam despercebidos num país onde grande parte da população ainda não cruzou fronteiras chinesas. “Todos os dias eu percebo que sou tratada de modo diferente por ser estrangeira, principalmente por ser loura, de pele e olhos claros”, observa Kellen, contando como vive entre um misto de privilégios, simpatia e olhares encarados no metro e em outros lugares públicos. “Muitos chineses consideram os estrangeiros muito inteligentes (risos)”, diz.

A China ainda possui uma atitude ambígua para com os waiguoren (estrangeiros), ou como os chineses gostam de mais informalmente dizer, os laowai (velho estrangeiro). “A maioria gosta de conversar connosco, tem curiosidade de saber como é a nossa vida, querem tirar fotografias com os estrangeiros”, nota Azevedo Marçal, de 31 anos, o primeiro doutorando timorense na China – estuda Economia na Universidade de Economia e Gestão da capital.

É unânime que a segurança na China merece nota alta. “As pessoas me diziam: ‘É um país comunista, lá não se pode falar livremente’. É verdade que não há uma democracia no sentido ocidental mas também não sinto a ideologia comunista no meu dia-a-dia”, explica Azevedo. “Aqui as pessoas andam em segurança, estão focadas em melhorar as suas vidas e a maioria sente-se protegida pelo governo,” referiu o aluno.

 

Pés na China, olhos no mundo

Os estudantes lusófonos mudaram ao mesmo ritmo do país que os acolheu: a alta velocidade. Viram edifícios brotar como cogumelos e uma rede de metro espalhar tentáculos pela capital. Notaram que o yuan já vale menos que valia, sentiram que o custo de vida aumentou, as rendas dispararam. Dois anos de China suplantam 24 meses de vivência num país lusófono e é tempo suficiente para reciclar a visão que se tem do mundo.

“Estava centrado no mundo visto a partir de Moçambique, mas vivendo num país tão diferente, rodeado de pessoas de tantas culturas, comecei a olhar para o mundo de maneira diferente”, explica Micael, que gere o seu próprio serviço de traduções sino-lusófonas. “Respeito muito a cultura e o patriotismo chineses, penso que podem ser uma inspiração para os países africanos para resolverem os seus próprios problemas”, sublinha o estudante.

Azevedo já pensou como o seu país poderia beneficiar de um pouco do espírito chinês. “Vejo empreendedores onde quer que vou. Os chineses sabem fazer negócio, são trabalhadores e não querem perder tempo. Tempo é dinheiro e oportunidade. Esta forma de estar motiva-me para mudar a mentalidade no meu país”, observa o estudante de economia. Abi, que lê jornais em português de passagem para saber o que em geral se passa no mundo, diz que a sua visão do de vida também mudou. “Passei a prestar mais atenção à China e à Ásia. É um ambiente muito multicultural. Agora tenho um entendimento diferente das pessoas e do mundo.”

 

Da China com saudade

Para estarem em contacto e reunir mais de 200 compatriotas espalhados pela China, os estudantes moçambicanos criaram um núcleo de estudantes nos anos 1990. “É uma associação académica que promove o convívio, mas é sobretudo o interlocutor entre os estudantes e as entidades oficiais. Discutimos como melhorar a nossa estadia e as oportunidades na China”, explica Chissico, ex-presidente do Núcleo de Estudantes Moçambicanos na China (NEMOC).

À falta de um centro cultural lusófono onde se ouça a língua de Camões ou de um programa cultural lusófono regular, os membros dos países unidos pela língua portuguesa acabam por se encontrar informalmente e através de amigos.

Kellen, Abi e Bernardo consideram prolongar a estadia na China se surgir uma oportunidade de emprego, mas não se imaginam a lançar âncora permanente no país. Micael e Azevedo preferem ter um emprego de volta nos seus países que lhes permitisse manter uma ponte com a China. Patrick, que gosta de ser estrangeiro e de aprender outros idiomas, pensa ir para outro país, talvez a Alemanha.

Mas a saudade bate a todos. Sentem falta da família, do céu azul e da praia, de um bom churrasco e do arroz doce. Vão a casa uma vez por ano, ou só quando é possível. E sentem falta de calor humano. Todos os estudantes falam dos colegas chineses, mas reconhecem que o seu grupo de amigos é sobretudo internacional, com gentes de outros países que não a China. “Os chineses são menos calorosos, não pode chegar assim abraçando e beijando”, observa Kellen, notando que também saem menos para se divertir, o que acaba por impedir uma convivência mais próxima com um grupo chinês. Bernardo tem uma namorada russa e um grupo de amigos que é um misto de culturas. “A comunicação é mais fácil com estrangeiros.”

 

 

 

Estudantes lusófonos