Foon Sham, artista plástico: “Sou uma peça inacabada”

Trocou a Ásia pelos Estados Unidos para perseguir o sonho de ser escultor. Trinta anos e uma história de peripécias depois, Foon Sham regressa às raízes como artista feito e pronto a apresentar em Macau o trabalho mais especial de toda a carreira

 

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Texto Filipa Queiroz | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

 

Cada tronco tem um toque, um cheiro. Os dedos deslizam por entre os veios que antes pulsaram de vida e transportaram a seiva como um desenho que aos poucos ganha vida, outra vida, ao sabor da imaginação. “Não há nada como a madeira. Se pegar num pedaço, digamos…de carvalho” – inspira -, “não há nada que iguale.” Expira. E sorri.

Foon Sham fala da madeira como de uma paixão. Uma paixão que se renova a cada tronco, a cada ramo, que se lhe atravessa o caminho. Como o primeiro há 30 anos, do outro lado do mundo, na School of Arts and Crafts da Califórnia. Nascido em Macau, tinha emigrado de Hong Kong, terminado o ensino secundário na área de Ciências. Só sabia que queria ser artista e que lhe interessava o design e os têxteis, mas convenceram-no a experimentar uma aula de escultura.

“Meu Deus. Foi amor à primeira vista!”, confessa. E como com qualquer amor, o artista perdeu o norte. Quando um professor lhe deu a primeira tarefa: “Cocei a cabeça e pensei: não sei fazer isto, não fui treinado para fazer isto”. Mas três dias depois, com a ajuda de um amigo carpinteiro que lhe passou a matéria-prima, nascia a primeira obra. “Foi um auto-retrato com chapéu. Não sabia esculpir nem colar madeira por isso cortei vários pedaços e comecei a juntá-los, como as crianças. Tinha cara, olhos e até cabelo. Eu tinha o cabelo comprido na época. Eram os anos 1970.”

 

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Califórnia, 1975

Não se comportava como um hippie mas vestia-se como um. Cabelo comprido, calças à boca de sino, mas pouca folia. “Não lhe passa pela cabeça, rodavam charros de marijuana nas aulas de desenho! Era uma coisa cultural, mas eu tinha sempre presente que estava ali com um objectivo e às custas da minha família – não podia falhar.”

Faz em 2015 40 anos que os pais e os irmãos do artista se juntaram para lhe pagar os estudos nos Estados Unidos. Sham foi acolhido na casa de uma família emigrante de Macau em São Francisco, amigos do pai. “Quando vivia em Macau o amigo do meu pai ensinava inglês, mas lá tinha outro trabalho. Aliás tinha dois empregos para conseguir sustentar a família. Recebeu-me como se fizesse parte do agregado. Não me deixava pagar renda, enchia-me a malga de arroz todos os dias e mandava-me comer exactamente como aos cinco filhos. Foi um grande exemplo para mim”, recorda o artista. “Em casa ia aprendendo a ver séries policiais e futebol americano – que é isso que eles fazem ao fim-de-semana -, mas na escola era muito trabalhador. Tinha de ser. Enquanto os outros se divertiam eu ficava na biblioteca a estudar.”

Quando terminou o bacharelato, Foon Sham conseguiu um trabalho como designer de produtos industriais. Longe do ideal, dava-lhe o suficiente para sobreviver, mas “o coração estava com a escultura”. Graças à ajuda de um professor que o recomendou a um casal judeu de mecenas, Sham conseguiu voltar aos estudos e fez o mestrado em Belas Artes na Virgina Commonwealth University. Mas apesar dos graus académicos que acumulava, não abundavam as perspectivas de trabalho na área.

“O que me valeu é que nos Estados Unidos dá sempre para servir à mesa.” E assim foi. Entretanto casado com uma colega de curso, cidadã americana, Sham trabalhou no restaurante de um familiar durante meio ano. Depois, como emoldurador. “Ganhava três dólares à hora. Três dólares!”, recorda. “Mas eu era bom naquilo, por isso num mês consegui um aumento para quatro dólares!” O emprego ocupava-lhe a maior parte do dia e a noite dedicava à escultura. “Os vizinhos reclamavam do ruído das serras e berbequins, batiam nas paredes e gritavam: “Pouco barulho! Não vê que queremos dormir?” A necessidade de ter um espaço mais isolado para trabalhar levou-o a frequentar mais aulas, numa escola local, a College of William and Mary, em Williamsburg, Virginia.

A primeira oportunidade como professor assistente surgiu em 1984. Aos sábados e em part-time. Um ano depois montava a primeira exposição individual na Gallery 10, em Washington, e com a ajuda de dois prémios passou a ter uma galeria a representá-lo. Trinta anos volvidos monta a 31.ª em Macau.

 

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Macau, 2014

Segundo alguns críticos de arte, o trabalho de Foon Sham combina o estilo de Richard Serra com o minimalismo de Martin Puryear. Além da madeira também usa outros materiais como o aço e o papel, num trabalho com formas orgânicas e aparência natural, mas cuja experiência proporciona uma certa sensação de inquietação ao espectador. “Mar de Esperança”, que apresentou em Macau, na galeria da Fundação Rui Cunha, entre os dias 13 e 18 de Janeiro, é um deles. E é diferente.

A obra original foi feita há dez anos, quando a mãe do artista morreu vítima de cancro. É um bloco de madeira esculpido em forma de embarcação, rodeado de barcos de papel com mensagens escritas e folhas de chá. O trabalho mais pessoal do artista que até hoje continua a explorar as potencialidades da instalação artística, mas movendo-se do espaço exterior público para a galeria, e ao mesmo tempo para o espaço metafórico pessoal e da experiência partilhada.

“Lembro-me de estar a cortar a madeira e as lágrimas escorrerem-me pelo rosto, só conseguia pensar na falta que a minha mãe me fazia. Então pensei fazer alguma coisa que servisse como metáfora para a partida dela e a ‘transportasse’ para um lugar que o autor acredita ser calmo e pacífico.” Depois, numa segunda fase, a irmã de Sham lembrou-se de fazer um barco de papel, escrever uma mensagem para a mãe e colocar junto à peça. Finalmente, como estava envolvida com um grupo de apoio aos doentes e familiares de doentes com cancro, sugeriu que lhes propusessem fazer o mesmo. “Eu pensei, porque não?”, diz Sham. E de facto a analogia era perfeita. “Estávamos todos no mesmo barco.”

A obra foi instalada tempos depois na Austrália, onde ficou, e depois refeita para ser apresentada em Hong Kong – inclusive no Queen Elisabeth Hospital –, e agora em Macau. “Expor aqui é muito especial. Porque foi cá que a minha mãe me trouxe ao mundo e porque é a primeira vez, precisamente com uma peça em homenagem a ela.”

Além da exibição, Sham deu dois workshops com artistas e aspirantes a escultores locais. Não está fora de questão voltar e fazer uma residência, como já fez em países como o México, Chile, Escócia, Austrália, Noruega e Hungria. “Mas teria de passar aqui algum tempo e de preferência longe de todo este trânsito. Nasci e vivi aqui até aos sete anos, lembro-me de passear de bicicleta e de uma estátua de um tipo num cavalo. Desapareceu tudo. Mas quando estes dias subi à Colina da Penha pensei que podia passar ali um mês e produzir.”

Voltar definitivamente é mais complicado. “Gostava de ensinar aqui na Ásia mas receio que a minha técnica não se adeqúe. Aqui ainda se usa muito o método da imitação, da duplicação. Eu não quero criar duplos de mim, quero formar artistas tão bons ou melhores do que eu.” Para criar, diz que há pouca procura e pouco espaço, quer físico quer criativo, mas nunca se sabe. “Eu próprio sou uma peça inacabada.” E o talento tem descendência. Com cidadania norte-americana mas a cultura chinesa no sangue e no dia-a-dia. Um dos dois filhos de Sham gosta de desenhar e em casa são cultivados princípios como o respeito pelos mais velhos, um comportamento mais contido e, claro, não faltam noodles e chao fan na mesa.

 

 

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Perfil

Foon Sham nasceu em Macau em 1953, filho de emigrantes do Interior da China. Em Macau, a mãe foi directora de uma escola preparatória e o pai dava aulas de chinês e inglês num liceu. A família Sham mudou-se para Hong Kong quando o artista tinha sete anos, onde ficou até completar o ensino secundário na Escola St. Louis. Foon começou a interessar-se pela arte por influência da irmã, estudante de pintura e caligrafia chinesa, e recorda-se do ponto de viragem. “Uma vez na escola tive de dissecar um rato na aula de Biologia e estava tudo mal, mas o professor notou que o desenho do processo estava absolutamente perfeito. Foi então que percebi que não ia ser médico nem cientista.”

A visão artística de Foon Sham assenta em três princípios básicos – “acumular, crescer, mudar”, uma ideia por detrás de trabalhos como por exemplo Flow: Landscapes of Migration, em que o artista propôs embelezar um terreno com a colaboração de quem ia visitando o recinto da mostra. Um projecto onde o “dar e receber” fazia alusão aos imigrantes que adoptaram os Estados Unidos como casa e que incluía a presença dos cinco elementos essenciais da cultura chinesa: metal, madeira, água, fogo e terra.

Actualmente Sham é escultor e professor de Arte da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Desde os anos 1980 teve 30 exposições individuais e participou em mais de 120 exposições colectivas nos EUA e noutros países, como Canadá, Noruega, México, Austrália e Hong Kong. Nos últimos anos expôs na Galeria John Davis em Hudson, Nova Iorque, em 2010; apresentou Project 4 em Washington D.C., em 2009, e participou numa exposição colectiva no Museu de Arte Katonah em Nova Iorque, em 2010.