Cultura chinesa: Longevidade

A longevidade pertence à trilogia das divindades populares, também conhecida pelas três divindades estelares(三星san xing): a Felicidade (福fu), a prosperidade (祿lu) e a longevidade (壽shou).

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Ana Cristina Alves

Doutorada em Filosofia da Cultura Chinesa

 

 

A Divindade Estelar da Longevidade (壽星)

A longevidade pertence à trilogia das divindades populares, também conhecida pelas três divindades estelares(三星san xing): a Felicidade (福fu), a prosperidade (祿lu) e a longevidade (壽shou).

Do ponto de vista pictórico, a longevidade surge associada ao grou e ao pessegueiro, normalmente ao fruto, o pêssego. Na imagem, podemos observar ainda a Divindade da Longevidade a segurar uma bengala, talvez em madeira de pessegueiro, onde transporta uma cabaça, lugar privilegiado do fabrico da pílula da imortalidade. Encontra-se também rodeada de morcegos que, por homofonia (fu蝙蝠), indicam a riqueza.

 

Leitura Etimológica do Carácter da Longevidade (Shòu)

Quem quiser durar muitos bons e longos anos, ou mesmo, imortalizar-se, poderá dirigir as suas preces à divindade estelar da longevidade, tal como a leitura etimológica dos traços do carácter indica.

Na interpretação de Wieger, em Chinese Characters: Their Origin, Etymology, History, Classification and Signification (1965: 313), o carácter da Longevidade shòu (夀) é composto pelo componente ideográfico velho (老lao) e pelo componente fonético chóu, que pode, por seu turno, indicar a lavoura, o caminho, ou talvez o seguir inquirindo (口kou) pelo caminho.

Tal hermenêutica poderá ser confirmada por uma contemplação intuitiva do próprio carácter, na forma complicada, mas também na simplificada (寿). Nesta última sobressaem longas linhas a seguir.

 

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Filosofia e Poesia da Longevidade

Que felicidade poder durar muitos e largos anos com saúde, sentem os chineses e entre eles, com particular intensidade os taoistas, que, mesmo na forma de Taoísmo filosófico, nos apresentam uma receita para atingir a longa vida. Ela vem exposta, respectivamente nos capítulos 7 e 5 do Clássico da Via e da Virtude. Comecemos pelo capítulo 7 (Laozi, 1999:14):

 

O Céu é eterno e a Terra permanente.

O Céu e a Terra podem durar longamente,

porque não vivem para si próprios

(天地久。天地所以能且久者,以其不自生,故能生。)

 

Este desprendimento do Céu e da Terra, modelos que a humanidade deve seguir, em relação a si próprios não significa em primeiro lugar, tal como se poderia pensar, desprendimento moral. Na verdade a questão situa-se aquém da moral, do bem e do mal, da bondade e da maldade, do altruísmo e do egoísmo. O Céu e a Terra sustentam tudo o que existe entre eles, duram e fazem durar, prolongam a sua existência, bem como a de todos os outros, na base do desinteresse e do cultivo daquele vazio existencial que nada agarra e tudo sustenta. Note-se o que nos é dito no capítulo V da mesma obra (Laozi, 1999:10):

 

O Céu e a Terra não são benevolentes

Para eles os seres não passam de cães de palha[1].

O Sábio não é benevolente,

trata o povo como cães de palha.

(天地不仁,以万物为刍狗:圣人不仁,以百姓为刍狗)

 

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O sustento do Céu e da Terra, bem como do Sábio, é o vazio, somos informados adiante. Este vazio não é apenas a ausência de forma, mas a condição de possibilidade anterior a toda a forma e, ainda, tanto das palavras, que logo se esgotam, como do que reside no coração (《多言数穷,不如守中》Laozi, Ibidem).

Aos seres resta a duração, ao seguirem o modelo do Céu e da Terra que os sustenta, equilibrando-se no vazio do seu coração. Quem deseje durar muito não deve agarrar-se a nada, nem mesmo ao seu coração, mas antes ao que vem dele, concentrando-se em mantê-lo em equilíbrio, sem excessos nem deficiências de paixão, procurando produzir formas harmoniosas, por meio da harmonização de forças senão contrárias, pelo menos complementares.

Se trocarmos a filosofia pelo território da poesia, contemplamos, com o mandarim poeta Bai Juyi (772-846), um dos grandes símbolos da longevidade, o grou (鹤), em «Interrogando o grou»:

 

O milhano procura comida

o pardal faz o ninho

e tu permaneces solitário,

imperturbável sobre uma pata,

todo o dia na beira do lago

ao vento, à chuva, imóvel silencioso.

Posso perguntar

Em que estás pensando?

(乌鸢争食雀争窠,独立池边风雪多。

尽日踏冰一足,不意如何?)[2]

(Bai Juyi 1991:49)

 

Esta é, sem dúvida, uma das grandes receitas da longevidade na dinastia Tang sempre sonhada, raramente concretizada por mandarins e outros homens mundanos, sobretudo os de veia mais poética e filosofia naturalista.

O ideal da longevidade seria seguir o comportamento modelar do grou solitário, em contacto constante com a natureza, à beira do lago. Mas a vida é tensão e, por isso, o ser gregário que é o homem tem de lutar pela satisfação das suas necessidades básicas, tal como o milhano que procura comida ou o pardal que faz o ninho.

A longevidade ideal é cultivada à distância da doença que nos rouba a vida e seus prazeres ou solitariamente em contacto com a natureza. Pode até chegar-se ao ponto mais que perfeito de atingir a imortalidade, só que aí, como bem nos explica Li Bai em Dois Imortais, muda-se de dimensão (Li Bai, 1996: 255):

 

No monte Jinhua transfigurou-se Songzi[3]

An Ji chegou às ilhas Penglai

Ambos alcançaram a imortalidade em tempos remotos

Sim, mas onde estão agora?

 

Se a imortalidade implica uma transmutação de nível e qualidade, já a longevidade não tanto a ideal, mas a possível é descrita pelos poetas, nomeadamente por Bai Juyi, por meio do equilíbrio em tensão.

Note-se o que nos diz primeiro em Sossego (1991:253)

 

(Felicitando-me pelo bom da vida, durante um breve afastamento dos cargos oficiais)

 

De casaco acolchoado, orelhas aquecidas, sapatinhos felpudos,

            No torreão, à janela, sentado à braseira,

corpo em sossego, coração em paz, tarde levantar.

            Pergunto-me se os cortesãos na capital conhecem o bom da vida.

 

Ou ainda em《苦热题恒寂师禅室》(Meditação Chan sobre o Calor e a Amargura)[4]

人人避暑走如狂,

独有禅师不出房;

非是禅房无热到,

为人心静身即凉[5]。

 

(As pessoas fogem como loucas do calor,

Só o Mestre Chan permanece em casa, sem temor.

Não chegará o ardor à casa da meditação,

Que refresca o corpo e acalma o coração.)

 

O poema resume bem a filosofia Chan (禪). O fundamental reside no coração, só este tem, por meio da meditação, o poder de acalmar e relaxar a mente, bem como de refrescar o corpo, já que ambos são indissociáveis. Não é então preciso fugir para lado nenhum, a fim de encontrar a paz, basta uns momentos de reflexão em contacto com a natureza, o que se pode realizar sem se sair de casa, ou, idealmente no campo.

 

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Porém, como o óptimo é inimigo do bom, aconselham-se momentos de descontracção, as pausas e os repousos justamente merecidos, em alternância com os tempos febris de trabalho, a bem do equilíbrio homeostático e da paz do coração, porque para se alcançar o verdadeiro repouso é necessário que o coração perceba intuitivamente o que é a paz e onde encontrá-la, caso contrário não se tranquiliza, nem se equilibra.

E quando tal sucede se não é o caos, nem o desespero, é o amargo de boca, o acidental, ao sabor da pena, como nos indica Wang Wei (701-761), no poema 《偶然作》, que traduzi por Ao sabor da Pena[6]:

 

老來嬾賦詩

惟有老相隨

當代謬詞客

前身應畵師

不能捨餘習

偶被世人知

名字本皆是

此心還不知

(1993:220)

 

À medida que envelheço, entrego-me preguiçosamente à poesia

Só ela na velhice me alivia.

As minhas palavras actuais são falsos convites.

Fui pintor numa outra existência de limites,

E incapaz de abandonar o hábito,

Fiquei no mundo idolatrado,

O meu nome conhecido,

O meu coração esquecido.

 

A fama que o artista granjeia, e que o irá imortalizar, não o satisfaz. Há uma certa longevidade outorgada por terceiros, que é quase desprezada em nome do um sentir-se bem e em equilíbrio consigo próprio e com os outros, esse sentimento que poderia ter concedido a verdadeira longevidade ao poeta de pouca dura, se contarmos os seus anos de existência, não mais de sessenta.

A partir da apresentação deste pequeno poema biográfico, somos levados a distinguir vários tipos de longevidade. Primeiro a mundana, adquirida pelo nome que se deixa no mundo, associado a uma determinada família, e tão importante do ponto de vista dos valores confucionistas. Depois a concreta e real, onde o autor das linhas de vida cose o seu destino em equilíbrio com as forças que o rodeiam, num balanço que depende sobretudo do coração e uma vez conseguido tem como recompensa a extensão dos anos de vida daquele que conhece e dá a conhecer o seu interior. Por fim, a imortalidade, concedida aos praticantes do verdadeiro caminho e sabedoria.

É à divindade estelar da longevidade que devemos, segundo a filosofia tradicional chinesa, prestar culto e orar para prolongar tanto quanto possível a nossa existência, por isso se conclui com uma prece imaginada a um crente chinês:

 

À Divindade da Longevidade:

Que felicidade poder durar,

a meditar,

a rir,

e a cantar.

Sem maçar,

sem pesar.

Durar por durar,

sem contas de calcular,

apenas por rezar,

bem viver e amar;

por saber estar,

sem de outros muito depender

para sobreviver.

Que enorme alegria poder partir,

quando é tempo de ir,

sem pena de deixar

o que não se pode levar.

Longa vida quero pedir,

se a divindade mo permitir.

 

[1] Bonecos de palha atirados à fogueira para oferta às divindades. Fácil é de encontrar a analogia entre os cães de palha e os seres humanos, cujas vidas se vão consumindo e imolando na fogueira dos dias até à extinção.

[2]《问鹤》(Interrogando o Grou)http://www.zidiantong.com/shici/w/wenhe3264.htm

[3] Budista que se imolou pelo fogo, a fim de apressar a sua metamorfose. E An Ji colhia ervas medicinais e produzia elixires.

[4] http://www.zidiantong.com/shici/k/kuretihengjishichanshi2763.htm

[5] Tradução da autora do artigo.

[6] Cf. com a tradução de grande qualidade de António Graça de Abreu: «Linhas» in Poemas de Wang Wei. 1993. É no entanto em nome de a liberdade de “poetar”, que aqui fica a minha interpretação do poema. Macau: Instituto Cultural de Macau