Torres Prestamistas Tak Sang Tai On (1900)

“Entre os vestígios do passado arquitectónico macaense, subsiste, em alguns bairros típicos da cidade, uma ou outra casa de penhores, cujo aspecto faz lembrar antigas fortificações com as respectivas torres de vigia. Na maioria dos casos, estas construções, designadas por torres prestamistas, assumem o formato de um paralelepípedo quadrangular, com uma média de sete pisos de altura, exibindo nas paredes laterais (a partir do segundo piso) estreitas aberturas semelhantes às seteiras dos antigos castelos, que serviam para vigiar e para disparar armas de guerra contra o inimigo.”[1]

 

 

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Margarida Saraiva

Investigadora, curadora e educadora

Tiago Quadros

Arquitecto

 

Toda a construção deve ser entendida como oportunidade de revelação de um lugar. As características essenciais que separam a arquitectura das outras artes de expressão visual fundam-se nos critérios espaciais e tipológicos e na gravidade que assegura a natureza essencialmente estrutural e construtiva do projecto arquitectónico. O espaço é determinado pelas propriedades concretas da terra e do céu. A fenomenologia do “espaço natural” ocupa-se, de forma sistemática, de toda esta totalidade feita de planícies, vales, colinas e montanhas. A este propósito, Norberg-Schulz defende que a terra, quando controlada, é “o palco cénico da vida quotidiana”, e que quando entre os homens se estabelecem relações, carregadas de significado, a paisagem natural origina a paisagem cultural.

 

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As Torres Prestamistas erguem-se sobre a complexidade das relações do espaço humano (do espaço natural à sua ocupação), entre os conceitos de “orientação” e de “identificação”, que determinam os aspectos essenciais das relações entre nós e Macau. Nestas obras estão presentes questões essenciais à arquitectura. Falamos da ordem e da razão. Do prazer do olhar, do escutar, do sentir e do tocar. Do percorrer a arquitectura. As Torres Prestamistas retomam a ordem inevitável – a ordem da construção, o sentido da ordem, a ordem e o caos. Mas ao mesmo tempo, estas torres eram casas, armazéns, alvos preferenciais dos constantes assaltos dos piratas. “Entre a porta principal e o balcão das transacções, notava-se a presença de um biombo de madeira, de formato quadrangular que servia para esconder o cliente dos olhos de quem circulava na rua. A face exterior do referido biombo, voltado para a rua, era pintada de vermelho, tendo ao centro a figura de um morcego de asas abertas – o morcego foi, desde longa data, símbolo das casas de penhores – e o nome do estabelecimento pintado a ouro.”[2]

“As cidades podem ser vistas, apreciadas ou avaliadas de avião, de carro particular, a pé ou de transporte público e os diversos pontos de vista que delas podemos ter não são irrelevantes. Há cidades que são belas quando sobrevoadas e se tornam monótonas quando visitadas a pé. Ao desinteresse suscitado por certa vista aérea de uma cidade, pode contrapor-se o fascínio de um passeio.”[3]

 

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As Torres Prestamistas que sobram na cidade vão estabelecendo um longo caminho de rupturas silenciosas, dando sinal de uma nova visão do espaço e da cidade, marcados por acontecimentos sociais, culturais e políticos da última década em Macau. Provavelmente como nenhum outro método de visualização, as imagens em movimento conseguem representar os espaços arquitectónicos como espaços “vividos” e “habitados”. O cinema é muitas vezes encarado como um meio que, através da relação espaço/tempo, da mise-en-scène, dos personagens e do argumento, pode circunscrever importantes debates sobre a arquitectura e a vida urbana. Com efeito, as Torres Prestamistas criam um “sentido de lugar”, fenómeno não só relacionado com a matriz da realidade física do espaço construído, mas também com a relação vivencial que estabelecemos com o seu significado.

Neste momento, desejava permitir-me um desvio, algumas considerações preliminares que irão precisar progressivamente os termos do debate que pretendo abrir. Falo da relação entre a história do espaço urbano, da arquitectura e das imagens em movimento na China. Das oportunidades que se podem gerar de partilha de reflexões em torno de discursos fílmicos sobre a arquitectura assim como leituras espaciais do cinema, cruzando as fronteiras das duas disciplinas. Numa época em que a cultura contemporânea chinesa é objecto de estudo um pouco por todo o mundo, sobretudo em centros universitários – dentro e fora da China – o exemplo das Torres Prestamistas em Macau deve ser analisado e debatido. E os estímulos gerados, serão de certo fonte de interesse para estudos académicos sobre a arquitectura, o urbanismo e a antropologia do espaço na China.

 

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Desconhece-se a data exacta em que as primeiras casas deste género foram estabelecidas na China. De acordo com alguns documentos da época, supõe-se que terão surgido durante a dinastia Tong (618-905). Aqui estamos perante o que podemos chamar de “poética” da aproximação. Com efeito, a beleza da Torre Prestamista está na sua simultânea lógica de “pertença” e na sua eminente “levitação” face a este lugar. A sua materialidade – impressa nas texturas do construído – coexiste com um sentido de abstracção que é dado pela rude geometria dos seus planos. A Torre Prestamista vive entre a aparição e o desaparecimento. Ora este diálogo é na realidade um encontro que se dá intimamente como se então fosse possível vermo-nos a nós mesmos ou, melhor, porque tal é precisamente possível com a arquitectura: este diálogo é um encontro com o nosso vazio fascinante e terrível. E é nesse diálogo estreito que reside a sua delicadeza. Estamos perante uma arquitectura que vive e declara o espaço sem o modificar. Uma arquitectura que parte da natureza e afirma a natureza, sem ter vontade de a imitar. Uma arquitectura que acumula e agrega, mas que se despe na subtracção. Uma arquitectura que parece simbolizar a não-construção, a não-estrutura, o não-objecto. E sem demoras, o chá de jasmim consome-nos a tarde imensa.

 

[1] BARROS, Leonel (1 de Novembro de 2008). “Torres Prestamistas” in Jornal Tribuna de Macau, p. 16.

[2] Idem.

[3] PINTO RIBEIRO, António (2011). “A minha cidade são cidades”, in Questões Permanentes, Lisboa: Livros Cotovia, p. 291