A super-professora Wang

Dorme pouco e trabalha muito. Dá aulas de chinês em várias escolas de Portugal e é uma referência para os alunos. Wang Suoying, 62 anos, gosta do que faz, gosta de ensinar português, mas foi pelo esforço e dedicação com que tem estado a dar a conhecer a língua e a cultura chinesa em terras lusas que acabou por ser uma das nomeadas do concurso do programa Luz da China. Não ganhou, mas entre 1500 candidatos ficou entre os 20 mais votados. Perfil de uma mulher que nunca pára e que quando tem tempo para descansar… trabalha!

Wang Suoying

 

Texto Mónica Menezes | Fotos Paulo Cordeiro

Em Portugal

 

“Parece uma máquina! Nunca, nunca pára. O divertimento dela é ler e trabalhar. Chega a casa, liga o computador e não pára!” As palavras, ditas entre gargalhadas, são de Lu Yanbin, professor e marido de Wang Suonyng. Mas, embora pareça brincadeira, é a descrição perfeita da professora. Não é, aliás, por acaso que ainda em pequena a chamavam “caneta de ferro”. “Ela escreve muito rápido e todos na escola brincavam com ela por causa disso”, recorda o marido.

Ainda hoje, Wang Suonyng faz tudo rápido. Anda rápido, trabalha rápido, escreve rápido, come rápido, cozinha rápido, fala rápido. Até cansa só de olhar. Na última passagem de ano convidou mais de 30 pessoas para celebrar a data na sua casa. Entrou na cozinha às três da tarde e muito antes da hora de jantar já estava tudo pronto sem precisar da ajuda de quem quer que fosse. Diariamente, nunca dorme muito mais do que cinco horas. O marido refila. “Fico preocupado com a saúde dela. Descansa pouco e não gosta de ir ao médico.” Wang escuta a queixa e, à boa maneira portuguesa, bate três vezes na madeira. “Prometo que vou dormir mais”, diz, a rir, com ar de quem ainda não está preparada para cumprir a promessa.

Os dias desta professora começam, por norma, às oito horas e só acabam quando o corpo reclama, lá para as duas da manhã. Cada dia é mais ocupado do que o outro. “Segunda e terça-feira dou aulas na Universidade de Aveiro. São 14 horas em dois dias. Segunda é até às 21h00, terça até às 20h00. Mal terminam as aulas, apanho o comboio de volta a Lisboa.” À quarta-feira dá aulas na Escola de Medicina Chinesa do Dr. Pedro Choy, à quinta na escola de um antigo aluno e no colégio militar também. A regra instituída por si própria era guardar a sexta-feira para si, mas todos sabem que as regras nascem para ser quebradas. “Neste momento, à sexta à tarde estou a dar formação no Hotel Altis. É só conversação, aprendem poucos caracteres. Aprendem coisas como ‘bem-vindo a Portugal’, ‘este é o seu quarto’, ‘aqui tem a sua chave’. Coisas assim…”

À noite vai com o marido dar aulas na Universidade Europeia. Sábado também tem as manhãs repletas de aulas. O descanso chega ao domingo, mas passar o dia sem fazer nada nunca passa pela cabeça da professora. “Nos tempos livres, trabalho!” E solta uma gargalhada. Tempos livres é apenas sinónimo de estar em casa. Ficar sentada a ver televisão? Nem pensar! “Se não faço nada faço o quê? Acho isso tão esquisito. Ficar ali sentada… Não tenho paciência. Leio as notícias na Internet, na televisão vejo poucos minutos. Não tenho tempo para ficar ali sentada a ver um programa inteiro. Aproveito os tempos livres para escrever. Tenho sempre traduções para fazer ou outros trabalhos.” Já nem sabe bem quantos livros e artigos para revistas escreveu. Foram muitos, seguramente. Há mais de dois anos que escreve para uma revista de medicina tradicional chinesa. Como tem sempre tanta informação a saltar dentro de si, pede à secretária da revista que lhe relembre da data da entrega do artigo. “Sempre tive uma memória muito boa e sempre tive confiança em tudo o que tinha para fazer. Mas a minha memória já não dá. Agora já começo a apontar as coisas.”

Com mais ou menos memória, a energia nunca lhe falta. “Acho que é o génio que me faz ser assim, a minha convicção.” Divertida, recorda o que uma aluna lhe disse há uns tempos: “Ela entrou na minha sala e disse: ‘professora, vim à sua aula doente, mas vim para absorver a sua energia!’. Sou sempre muito activa durante as aulas.” Segredos para isso, diz que não tem nenhum. Não faz exercício físico a não ser andar de um lado para o outro, tem uma alimentação equilibrada que mistura cozinha tradicional portuguesa com chinesa. “De Portugal gosto do arroz de pato e do bacalhau com natas. E do bacalhau que o meu marido inventou e deu o nome de bacalhau de 1002 maneiras.” O marido, que ouve a conversa, ri-se.

 

Wang Suoying

 

Nomeada, eu?

Este é o lado mais humano da professora. O lado profissional, a fama comprovada de boa professora, de embaixadora da língua e cultura chinesa em Portugal já lhe valeu uma condecoração do Governo de Macau, em 1999, e, mais recentemente, a nomeação para integrar a lista das personalidades que mais têm contribuído para a divulgação da cultura chinesa no estrangeiro. Esta lista, organizada numa parceria entre a CCTV e o Ministério da Cultura chinês, escolheu 1500 personalidades entre todo o mundo e Wang Suoying acabou por ficar na lista dos 20 maiores contribuintes da divulgação da língua chinesa pelo mundo. Surpreendida, nem por um momento perde a humildade. “Quando me ligaram, eu estava no cartório. Atendi o telefonema e disse logo que não queria essa nomeação. No mundo inteiro foram nomeadas 1500 pessoas. Quando a embaixada me ligou a dizer que eu e o meu marido [foi uma nomeação conjunta] estávamos na lista dos 30, fiquei admirada.”

Mais ficou quando tempos depois lhe disseram que já estava na lista final dos 20 nomeados. “Nunca pensei que tínhamos hipóteses de ganhar. Sou uma pessoa prática e pragmática, quero é fazer bem o meu trabalho, quero fazer bem as coisas de todos os dias. Tenho consciência que as outras 19 pessoas são muito mais importantes e influentes que nós. Eu e o meu marido fazemos coisas comuns. Damos aulas. É uma coisa importante, claro, preenchemos o nosso dia-a-dia com trabalhos interessantes em prol da divulgação da língua chinesa. Somos pessoas comuns que fazemos coisas comuns. Quem ganhou foi o Mestre Xingyun, um monge budista, uma coisa muito mais importante.” A forma simples como encara o que faz não tira importância ao seu trabalho, ao muito que já fez e ao muito que ainda quer fazer.

 

Wang Suoying

 

Mil funções

Wang Suoying é mestre em Linguística, professora no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, é tradutora, escritora e investigadora sobre as línguas, literaturas e culturas da China e de Portugal. Tem dois livros escritos, em parceria com a amiga Ana Cristina Alves, que constam no Plano Nacional de Leitura – Contos da Terra Dragão e Lendas da Terra Dragão –, escreveu com o marido o Dicionário Conciso de Chinês-Português, a Gramática da Língua Portuguesa, a Fonética da Língua Portuguesa, Lições de Chinês para Portugueses, manuais de Chinês I a Chinês VII. A solo escreveu um livro em mandarim que explica o Código da Estrada de Portugal aos imigrantes chineses que querem tirar a carta de condução. Coordena o projecto de ensino chinês a mais de 600 crianças dos 3.º e 4.º anos em São João da Madeira. Foi por causa deste novo projecto que escreveu – e ainda está a escrever – livros de ensino de mandarim para crianças.

No meio de tudo isto, ainda teve tempo para criar o coro Molihua, com alunos portugueses que cantam apenas em chinês. O seu rosto enche-se de orgulho quando fala dos seus cantores. “Já é um coro muito famoso! Eu não canto, trato apenas da parte administrativa. Eles já foram convidados para cantar no dia nacional da China, convite feito pelo embaixador. Em Maio, também cantaram na abertura das festas de Lisboa. Já foram a Arcos de Valdevez, onde estava no público o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Elogiou muito o nosso coro. Chegou a dizer-me que de todos os coros que ele conhece, o nosso é um dos cinco melhores!”

 

Mais ideias

A energia, a forma como se entrega a tudo o que faz, parece não ter fim. Não pensa no que vai fazer quando se reformar. Não sabe se vai continuar em Portugal, onde vive desde 1991, ou se volta para a China. Sabe que quer traduzir Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano, como já traduziu A Queda de um Anjo e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. “Há muito coisa que gostava de escrever. Gostava de escrever a gramática da língua chinesa. Tenho planos para escrever o quarto volume do livro para crianças, um livro de conversação.” Mas há mais. Aos 62 anos, Wang Suoying não está com a mínima vontade de deixar de fazer o que mais gosta: ensinar. “Sempre disse para mim própria que enquanto eu conseguir vou continuar a dar aulas. Gosto de dar aulas em Aveiro. Fui eu que montei o curso, fiz os livros, os manuais. Enquanto eu conseguir aguentar essa viagem, vou continuar. Se algum dia não conseguir, saio. Tenho convites da China para depois da reforma ir para lá dar aulas de português. A minha resposta é sempre ‘logo se vê’. Agora não posso prometer nada.

Não gosto de fazer planos para o futuro. Quando vim para Portugal não sabia que ia ficar tantos anos. Agora também não vou dizer que depois da minha reforma vou viver na China. As circunstâncias mudam. Sou uma pessoa comum e o meu lema é fazer bem o dia-a-dia. O que vai acontecer daqui a uns anos? Não sei.” Tem apenas a certeza que não pode ficar sem fazer nada. “Se ficar sem fazer nada, vai ser muito chato. Não aguento essa ideia, tenho de encher a minha vida.”

 

Aos olhos dos alunos

Não era preciso estar nomeada para um prémio, aparecer nas revistas ou jornais, dar entrevistas para a televisão, para a professora Wang marcar de forma especial a vida dos seus alunos. Mónica Amaral, antiga aluna, fala com um carinho especial da professora que lhe mudou a vida. “Conhecer a professora Wang foi um marco para mim. Primeiro, porque acho que como professora aprendi muito com ela. Adorei a personalização das suas aulas e as relações próximas que mantém com os seus alunos. Por outro lado, hoje estou a dar aulas de mandarim em São João da Madeira graças a ela.” Mónica foi aluna de Wang Suoying na Universidade da Aveiro, enquanto estava a fazer a licenciatura de Línguas e Relações Empresariais. Na memória ficou-lhe a forma como a professora rapidamente aprendeu o nome de todos os alunos. “Éramos muitos e na segunda aula já nos tratava a todos pelo nome.” Entusiasmada por poder falar numa mulher que tanto admira, Mónica Amaral realça o orgulho que Wang Suoying tem pelo seu país e cultura, “o que torna o gosto dos alunos pelo mandarim também mais afincado”.

Vasco Lúcio, outro antigo aluno de Wang, também não poupa elogios à professora. “É uma pessoa extremamente trabalhadora e dedicada ao ensino da língua chinesa. Nós, alunos, costumamos dizer que a professora anda sempre a 100 à hora, mas reparei que, apesar disso, é uma pessoa que tem um grande gosto por aquilo que faz. Quem corre por gosto não se cansa e acho que se pode usar esta frase quando falamos da professora Wang.” Este antigo aluno do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, depois de ter recebido as bases de mandarim com a professora Wang, sente que a sua vida deu um salto, um salto para a China! “Desde que comecei a estudar chinês que já fui quatro vezes à China. Já viajei sozinho pelo país praticamente todo, mesmo pelas regiões mais remotas onde é difícil um estrangeiro que não saiba falar a língua orientar-se.”

Mas com Wang Suoying, com os ensinamentos que ela lhe passou nas aulas e que Vasco nunca esqueceu, não só se orientou como também conseguiu bolsas de estudo que a professora lhe deu a conhecer. “Foi ela que escreveu as cartas de recomendação exigidas para conseguir obter essas bolsas.”

Prova de que a professora é “muito amiga dos seus alunos. Mantém relações com aqueles que já formou, pergunta por eles e interessa-se em saber o que estão a fazer com as suas vidas, ajudando-os sempre que isso esteja ao seu alcance”, aponta Mónica Amaral.