O antigo bairro de San Kiu

O bairro da Ponte Nova, ou San Kiu (新桥) em chinês, deve o seu nome a uma ponte de pedra construída para substituir a de bambu. Nasceu como povoação desordenada que servia de base às embarcações do Porto Interior, e passou por inúmeras obras, que incluíram a demolição de barracas e o realojamento dos moradores em casas com melhores condições sanitárias. É hoje um dos bairros mais dinâmicos da península, com mais de 40 mil habitantes

 

Rotunda dos 3 Candeeiros

 

Texto e Fotos José Simões Morais

 

San Kiu (新桥) encontra-se a Oeste da parte Norte da península de Macau, numa zona de depressão limitada pelas margens de um dos ramais do Rio Oeste e as Colinas de S. Miguel e de Mong Há. Situado na freguesia de S. António, o bairro de San Kiu, que significa Ponte Nova, tem por centro o Largo da Cordoaria e os seus limites encontram-se na Rua de João de Araújo, partes da rua e estrada de Coelho do Amaral e das avenidas de Horta e Costa e do Almirante Lacerda. Entre estas duas últimas avenidas e a Estrada de Coelho do Amaral, assim como a Rua de Brás da Rosa, existia a pequena povoação ribeirinha de Sá Kong, que perdeu a sua identidade ao ser inserida em San Kiu.

Nos primeiros tempos da chegada a Macau dos portugueses, aí passava um curso de límpida água potável, a Ribeira do Patane, e por isso, nesta zona fundeavam as naus. Era abrigada dos ventos fortes e usada para fazer aguada, e as embarcações aproveitam também para serem reparadas. Por isso, nessa zona do Porto Interior foram-se criando cais, cresceram os estaleiros navais e como nas reparações das embarcações eram necessárias madeiras, aqui se fizeram docas para conservar os troncos de árvore na água. Por tal, não é de estranhar os dois templos dedicados a Lou Pan na zona de San Kiu – e apesar de hoje já não serem templos, ainda mantêm no seu interior o altar em honra ao grande mestre dos artesãos, acompanhado pelos seus dois ministros, o de Letras e o das Armas. O da Rua da Pedra foi fundado em 1854 pela Associação de Construtores Navais e era um lugar de reunião entre patrões e empregados, existindo aí o Templo Lou Pan Si Fu. Ao lado, a Escola dos Filhos dos Operários da Construção Naval, que foi estabelecida em 1954 com o ensino primário e mais tarde, passou a contar com o primeiro ciclo, tendo encerrado em 1975. Na Rua da Alegria, o edifício que agora é a sede da Associação dos Operários de Caiação e Pedreiros de Macau e onde funciona um jardim infantil, tem no seu interior placas referentes ao templo do período entre 1851 e 1861.

San Kiu deve o seu nome a uma ponte de pedra construída para substituir a de bambu, que se situava onde hoje é a Rua João de Araújo, e foi custeada pelos moradores do bairro. “Tal ponte permitia aos habitantes da zona atravessarem a Ribeira de Patane e era o único acesso ao Templo Lin Kai, que se encontrava no lado direito do curso de água, também conhecido por Regato de Lótus”, como refere Luiz de Gonzaga Gomes na sua explicação histórica. Esse riacho, com origem nas colinas de Mong Há e da Guia, corria por onde hoje se situam as ruas da Barca e de João de Araújo, desaguando no Porto Interior. Já o Templo Lin Kai, situado na Travessa da Corda, foi construído atrás do Regato de Lótus por volta de 1740 e reconstruído em 1830, sendo dedicado a uma divindade ligada à água.

Em 1864, começaram a ser abertas novas avenidas no campo, concretizando-se a ocupação efectiva levada a cabo durante o governo de Ferreira do Amaral. Quando a cidade cristã intramuros se expandiu após o desmantelar das muralhas que a separavam dos terrenos de cultivo, começou a construção de inúmeras habitações na área de hortas em San Kiu. “Como a ponte não bastasse para o grande movimento das pessoas que por ela diariamente transitavam, muitos moradores deste bairro, para entrar na cidade, tinham de fazer a travessia do riacho em tán-ká que nesse tempo costumavam varar em grande número nas duas margens.” Ora, “como ainda não existiam barcos a vapor, foi esse o período da sua maior prosperidade. Por isso, inúmeros tou da navegação costeira entravam constantemente nesses estaleiros a fim de sofrerem as beneficiações de que careciam para o prosseguimento das suas viagens. Os chineses passaram então a chamar Tou Sün Kái à rua que servia esses estabelecimentos e este nome passou para o português na sua tradição da Rua da Barca”, acrescenta Gonzaga Gomes.

 

Cinema Alegria

 

Ameaça à saúde pública

De 1865 até 1881, o assoreamento do Rio do Oeste fez diminuir a profundidade em mais de um metro, o que impossibilitou a entrada aos navios de grande e médio porte que precisavam de mais de quatro metros de água. Em 1868, estava feito o aterro marginal que permitia a ligação por terra entre o Patane e o templo de Lin Fong. Segundo Luís Gonzaga Gomes, a “pequena derivação do braço do delta que banha o Porto Interior, entrava na zona de San Kiu e serpenteando até ao templo (Lin Kai) onde formava um largo charco, seguia depois em direcção à antiga aldeia de Mong Há, (…) para ir ligar-se outra vez ao delta.” Este curso de água salobra era um braço do Rio Oeste que, para Ana Maria Amaro, chegava até ao Largo das Três Luzes (Rotunda Carlos da Maia). Daí até ao começo da actual Rua da Barca (que passou a incluir a Rua das Pontes), havia um pequeno lago, que recebia boa água proveniente da Colina de Mong Há e sobretudo com origem próxima do Jardim da Flora, na parte Leste do Monte da Guia. Desde as nascentes seguiam estas límpidas águas por pequenas valas, que corriam mais ou menos onde hoje se encontram a Rua Pedro Coutinho e a Estrada Adolfo Loureiro até perto do começo da Rua da Barca.

Em 1875, o director das obras públicas apresentou o projecto e orçamento das obras a executar com a construção das pontes de San Kiu e Sa Kong na importância de 570 patacas cada uma. No ano de 1884 havia ainda a distinção entre as povoações chinesas de Sa Kong e San Kiu, sendo ambas alvo de atenção devido ao estado de insalubridade que punha em risco a saúde pública. Já em 1872 o Dr. Lúcio da Silva, chefe dos serviços de saúde, dava conta de uma epidemia de cólera e chamava a atenção do governo, pedindo providências para aumentar a limpeza na zona. Era urgente remover de Sa Kong as docas de construção de navios, cheias de lodo e matéria orgânica em decomposição. Na descrição de Adolfo Loureiro, “muito perto destas docas é que existem os verdadeiros bairros de San Kiu e Patane, consistindo num amontoado de pobríssimas casas de madeira, cobertas de ola, onde os charcos e os montes de detritos e despejos dão ao local um aspecto repelente e repugnante.” As dejecções dos habitantes, à mistura com os lodos sempre a descoberto, exalando um cheiro fétido, era no que estava convertido o canal San Kiu, que apresentava em torno do Templo de Lin Kai “umas pequenas várzeas de opulentíssima vegetação, mas intercaladas com pântanos e valas de águas estagnadas e verdes.”

Sendo um foco de infecção, julgou-se conveniente o entulhamento do canal, um braço de rio sinuoso que atravessava o Patane e chegava até às várzeas de Sa Kong, e que na ocasião das vazantes ficava completamente a seco.

O Capitão do Porto, Costa e Silva, a 6 de Junho de 1885, informava o governo: “Desde a estação Coelho do Amaral até ao estaleiro Samg vo um amontoado de barracas construídas de madeiras velhas, sem alinhamento nem método, separadas por becos tortuosos e imundos, e que se não inspiram receio, inspiram pelo menos tédio a quem delas se aproxima. Segue-se o estaleiro, que fica já sobre o lodo, não havendo depois barracas até aos fornos de cal Si-hap; em frente destes começam as habitações em tancás suspensos, que se estendem até ao estaleiro Veng vo, nas quais pela maior parte se não vêem moradores, que não tem portas, o que aliás é bastante justificável, visto não conterem coisa alguma de uso e apenas uma ou outra uns pequenos pagodes, e uma ou duas esteiras imundas, e que se comunicam por uns passadiços formados de tábuas podres; seguindo-se mais para o interior alguns estaleiros. Depois do estaleiro Veng Vo seguem-se outros até à ponte de San Kiu e para o Sul desta ainda outro sobre terra firme até ao extremo Norte do novo aterro de Patane, tendo estes no interior uns charcos, ou antes verdadeiros pântanos para depósitos de madeiras. Ainda para o Sul da ponte, mas ao lado da estrada, está a doca Ho-quae; no geral há também uma pequena povoação de tancás suspensos e barracas.”

 

Largo da Cordoaria 2

 

Saneamento e um novo bairro

O Dr. Tovar de Lemos no seu relatório diz terem sido as obras mais relevantes do ano de 1885 as que levaram à extinção dos pobres tancás sobre estacas que no canal de Sa Kong e San Kiu serviam de pestilento abrigo a mais de 2000 pessoas. A única solução que ele tinha para tão imundo lugar era o fogo ou o machado. Depois da sua visita e apresentado o relatório ao Governador Tomás de Sousa Rosa (1883-1886), este deu um prazo de três meses para o despejo. No entanto, os moradores não acreditaram na realização de tal ordem e ao terminar o prazo nada fizeram.

Quando o governo mandou demolir tudo, foi necessário que esses trabalhos fossem acompanhados por uma força policial. Na área de Sa Kong, o governador mandou remover milhares de cadáveres que por aí tinham sido sepultados. Muitos deles ficaram depois depositados no que hoje é o Templo Chôc Lam Chi (Mosteiro da Floresta de Bambus), situado na Estrada de Coelho do Amaral. Mas segundo uma versão chinesa, foi para dar sepultura a esses ossos que já em 1865 um chinês taoista mandou erguer um templo, local de retiro para as suas práticas. Silva Mendes diz que esse templo foi mandado construir em Sa Kong por um rico comprador de Hong Kong, sendo “oferecido em 1911 à Associação Púrpura do Bambu para aí instalar o templo budista, então apenas constituído por uma sala”.

Os Serviços de Saúde continuavam a alertar o governo com relatórios como o de Gomes da Silva em 1886: “o pântano de Mong Há, o canal de San Kiu e a povoação de Sá-Kong, eis a meu ver, os três focos essenciais patogénicos das febres intermitentes de Macau”.

No ano de 1888, o governo determinou que se procedesse à regularização das margens do canal e ao empedramento do seu fundo. As obras começaram logo e arrastaram-se durante anos, com largas interrupções. Segundo Beatriz Basto da Silva, o aterro do antigo ribeiro ficou pronto em Junho de 1913. O entulhamento do canal deixou ao centro uma vala coberta para escoamento das águas das várzeas, formando em toda a largura do canal uma larga avenida arborizada que comunicava com o mar. Após saneado ficou a ser a Estrada Coelho do Amaral (conhecida no cadastro de 1905 pelo nome chinês Sa Kong Pu e seguia um trajecto diferente ao de hoje, pois começava na Rua Coelho do Amaral e acabava na Estrada do Istmo).

O canal é por fim aterrado, mas restou um trecho que se converteu num charco de água putrefeita, que se manteve durante anos e que após inúmeras reclamações de sucessivos chefes dos Serviços de Saúde. Foi aterrado só em 1935.

A ponte de pedra desapareceu com os aterros feitos e para a memória ficou a Travessa da Ponte, onde existe o Templo Seak Kam Tong, que fora planeado em 1885, mas só começou a ser construído em 1894, tendo terminado em 1902.

Existia também o Mercado de Sa Kong, primitivamente instalado onde hoje se encontram prédios, entre as ruas da Barca e da Erva, sendo depois transferido para um local próximo, entre a Rua da Erva e a Travessa da Ponte. Mudou de novo de lugar e dessa vez foi para um edifício entre as ruas da Barca, de João de Araújo e da Alegria, passando-se a designar Mercado de San Kiu. O edifício era propriedade de Vong Ü Chio, que arrendava as bancas aos comerciantes. Quando em 1934 a Comissão Administrativa entendeu que era prerrogativa municipal a exploração de mercados e que ficavam melhor servidos os interesses do público com a construção dum mercado novo na Avenida Almirante Lacerda, o proprietário sentiu-se prejudicado e pediu à Câmara que lhe comprasse o mercado. É no Boletim Oficial de 28 de Abril de 1934 que fica então reconhecido que a mudança do mercado de San Kiu para outro local acarretaria prejuízo para os comerciantes estabelecidos na área daquele mercado e por isso, o Leal Senado convidou o dono a indicar o preço e as condições por que pretendia vendê-lo. Vong Ü Chio pediu ao Leal Senado pelo edifício 165 mil patacas. Depois, nesse lugar foi construído o Cinema Ü-Lók (Teatro San Kiu), mas um incêndio em 1942 destruiu-o por completo e foi mais tarde construída uma escola no terreno.

O Templo de Lin Kai foi sendo ampliado entre os anos de 1875 e 1908 e devido aos aterros, efectuados entre 1888 e 1935, a ribeira foi canalizada. A zona fronteiriça ao templo passou a um largo, cuja toponímia indica ser o da Cordoaria. Com a construção do cinema Alegria, inaugurado em 25 de Fevereiro de 1952, este largo ficou substancialmente reduzido.

Saneada toda a zona, surgiu o bairro de San Kiu densamente povoado e cheio de comércio. Actualmente junto à Rotunda dos Três Candeeiros está um bazar a céu aberto, onde residentes e turistas fazem compras, sendo o bairro habitado por mais de 40 mil pessoas e com cerca de 1200 lojas.

 

Templo Sec Kang Tong