As “Chapas Sínicas” (東波檔)

As Chapas Sínicas são compostas por mais de 3600 documentos de correspondência oficial, provenientes da antiga Procuratura do Senado de Macau e fazem parte do acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e estão, desde Maio deste ano, inscritas no Programa Memória do Mundo da UNESCO. Os documentos ilustram as relações luso-chinesas desenvolvidas entre o Senado e as diversas autoridades chinesas, abrangendo um período entre 1693 e 1886, sendo que os temas se referem aos mais diversos aspectos da vida da cidade.

 

 

Texto Tereza Sena*

 

Contrariamente ao que muitas pessoas pensam, a presença portuguesa em Macau não assenta em nenhuma doação formal por parte da China em retribuição da ajuda militar no combate aos piratas em meados do século XVI. Resultou, antes, de um conjunto de circunstâncias e da conciliação de interesses de natureza comercial envolvendo portugueses, chineses, japoneses, siameses, malaios e outros parceiros asiáticos. Cria-se assim um entreposto comercial em solo chinês que, desde logo, se revelou um nicho de oportunidades e atraiu à pequena vila piscatória população marítima, artífices, serviçais e produtos das zonas circundantes. A pacificação dos mares e zonas costeiras era naturalmente uma condição fundamental para a actividade comercial e segurança do entreposto, contando-se para isso com o forte potencial bélico e naval dos portugueses.

A multiculturalidade do local é atestada logo desde os seus primórdios na bula da criação da Diocese de Macau de 1576, vão lá 440 anos, a primeira das formas de institucionalização do poder régio português sobre a região. Norteada pelo propósito da dilatação da fé cristã, a ordem que então ainda prevalecia no Ocidente, entenda-se, aspirava à criação da Respublica Christiana – a tão almejada república universal que reuniria todo o mundo cristão, se bem que já marcada pela cisão entre católicos e protestantes.

 

 

Deseja, por isso, o mesmo rei Sebastião, com piedoso afecto, para aumento do culto divino e da salvação as almas nessas partes, que seja elevado a cidade o dito lugar de Macau, situado na dita ilha de Macau, não só célebre pela multidão de habitantes mas também pela afluência de grande número de portugueses e mercadores e outros estrangeiros que para lá transportam e ali buscam mercadorias…[1].

 

 

Uma “multidão de habitantes”, que fontes chinesas – provavelmente urgindo uma clarificação da política a adoptar perante o rápido crescimento do entreposto –, exageradamente contabilizam em cerca de 10 mil indivíduos, a confirmar já a dimensão comercial de Macau e a atracção que o porto exercia sobre as populações vizinhas; “grande número de portugueses e mercadores”, no que se incluiriam os luso-descendentes, que, a fazer fé em testemunhos da época, variariam entre cerca de 600 e 800 na altura na passagem das naus do Japão – integrando uma comunidade de cerca de 1500 almas, contando com as respectivas famílias, escravos e serviçais –, e os tais “outros estrangeiros”, na sua maioria asiáticos, tudo isso a justificar uma regulação do poder eclesiástico, mas também do civil. Com efeito, o modelo seguido para a criação da Diocese era o europeu e pressupunha a existência de um poder civil exercido por um príncipe cristão – em Macau ainda ténue, episódico e em fase de estruturação – capaz de assegurar o exercício da autoridade episcopal.

A China, contudo, era o centro de uma outra ordem mundial assente no sistema tributário. Sublinhe-se que estamos a falar de dois universos rigorosamente auto-percepcionados como tal que, ao descompartimentarem-se, se encontram, se olham e ensaiam um contacto, com todas as dúvidas, reservas e cautelas que as respectivas diferenças e concepções do mundo lhes impunham. Daí resultaram naturalmente mal-entendidos, jogos de força, confrontos e desentendimentos, mas também curiosidade e admiração mútuas, colaboração e cooperação, na base do que se foi construindo um relacionamento.

 

Presença estrangeira

Em Macau é permitida a presença desses estrangeiros, intermediários e parceiros comerciais, regulados pelas suas próprias leis, a troco do pagamento de uma renda, o foro do chão. Estrutura-se a cidade cristã – a cidade do Nome de Deus, na China – com a criação e organização de poderes e instituições: o capitão-mor da viagem do Japão, a Misericórdia, a Câmara, onde residia o governo local. O Procurador da Câmara, criada em 1583, tinha em Macau a função de assegurar a ligação com as autoridades chinesas, sendo equiparado a Mandarim menor pela hierarquia oficial do Império, o que lhe conferia poderes jurisdicionais simples sobre a população chinesa de Macau. O mesmo procurador era também responsável pelos jurubaças, provavelmente organizados em 1627 num corpo de tradutores, que incluía, entre outros, um Língua Principal, responsável pelo grupo, e um Escrivão Sínico, ou seja um letrado chinês. Asseguravam a comunicação oficial entre chineses e portugueses, mas também a gestão da, e a comunicação com, a população chinesa de Macau e, acima de tudo, os equilíbrios entre autoridades, poderes e hierarquias. Escusado será discorrer sobre a sua importância para a vida quotidiana, subsistência e sobrevivência do entreposto ao longo dos séculos. Elementos de mediação – e possuindo dupla identidade –, esses homens viviam e moviam-se entre duas civilizações com diferentes concepções do mundo, princípios reguladores da sociedade, culturas, credos, tradições, usos e costumes.

 

 

Com o desenvolvimento de Macau foi a cidade – que assim já o era para os portugueses, com reconhecimento por carta de foral, desde 10 de Abril de 1586 – atraindo um cada vez maior número de gentes. E sentida, por parte da China, a necessidade de fazer impor as suas regras para que o entreposto permanecesse lucrativo – do que beneficiava – mas que não constituísse factor de perturbação da ordem interna do império. Mas, também, e principalmente, após a abertura de alguns portos ao comércio internacional nos finais do mesmo século XVII, com o que haveria de atrair gente de todo o mundo às zonas meridionais, com destaque para a região de Cantão, reservando então a Macau um papel de contenção do crescimento daquela metrópole e, sobretudo, de controlo da presença de grande número de estrangeiros. Mas não só deles. Também do crescente número de chineses que demandavam Macau em busca das inúmeras oportunidades que tal lhes proporcionava quer na esfera doméstica, comercial e industrial, mas também na da mediação e interpretação.

A China reforça o policiamento das zonas costeiras e revê a sua estrutura burocrático-administrativa para a região, dita regras de contenção e, sobretudo, preocupa-se com a administração da justiça. Refreia o crescimento da população chinesa e tenta evitar a sua contaminação pelas ideias e credos trazidos pelos ocidentais, proibindo a conversão desta ao catolicismo. Ainda que se tratasse duma disposição recorrente, esta proscrição só se estenderá a Macau – e convenhamos que apenas circunstancialmente – em meados da década de 40 do Século XVIII, com a imposição do encerramento do catecumenato da Igreja de Nossa Senhora do Amparo.

 

 

As “Chapas Sínicas”

Contenção da construção de edifícios e de muralhas defensivas; limitação do número de artífices e seu licenciamento; medição dos navios para pagamento de direitos e vistoria antes de subirem até Cantão; regras para a residência de estrangeiros; alugueres de prédios; visitas dos mandarins; resolução de pequenas e grandes conflitos, como os casos de morte envolvendo ocidentais e chineses – que obrigatoriamente, e sobretudo a partir da reforma judicial que ficou consignada no 大清律例 Da Qing Lu (Código da Grande Dinastia Qing) de 1740, caíam obrigatoriamente sob a alçada da justiça chinesa –, tudo isso consta do que se convencionou chamar de “Chapas Sínicas”, sendo que “chapa” era a forma como os portugueses designavam os “ofícios” utilizados na correspondência oficial entre Macau e as autoridades chinesas.

Trata-se de um conjunto superior a 3600 documentos, incluindo mais de 1500 ofícios escritos em língua chinesa, cinco livros de cópias traduzidos para português, de correspondência oficial entre as autoridades chinesas e o Senado de Macau, e quatro volumes de documentos diversos, que acabam de ser reconhecidos como integrando a Memória do Mundo da UNESCO para a Ásia-Pacífico (MOWCAP), na 7.ª reunião do organismo, que teve lugar em Hue, no Vietname, em Maio de 2016. A candidatura da colecção denominada “Chapas Sínicas” (Registos Oficiais de Macau durante a Dinastia Qing (1693-1886) foi apresentada conjuntamente pelo Arquivo de Macau e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal tendo sido aprovada por unanimidade pelos membros dos países que integram a MOWCAP.

 

 

E são-no sem dúvida, porque constituem o testemunho documental de como se conseguiu ao longo de séculos regularizar e fazer vingar a coabitação num espaço sujeito a poderes, práticas e princípios tão diversos e a uma jurisdição mista, que vigorou em Macau até ao consulado de Ferreira do Amaral (ca 1803-1849, g. 1846-1849) e, como, após a auto-exclusão de Macau da ordem imperial chinesa, se processou o relacionamento sino-macaense e se geriu a população chinesa de Macau. É esta, ao fim e ao cabo, a documentação produzida na esfera de actuação da Procuratura do Senado e, mais tarde, da Procuratura dos Negócios Sínicos a partir de 5 de Julho de 1865 e até à sua extinção em 20 de Fevereiro de 1894.

Abarcando, se bem que de forma algo descontínua, o período que medeia entre 1693 e 1886, ou seja aproximadamente duas centúrias, as “Chapas Sínicas”, estão longe de serem os únicos documentos em língua chinesa de Macau mas, são sem dúvida, o conjunto mais significativo de documentação reveladora quer do estatuto de Macau, sujeito a renegociações e reconcessões periódicas – as concordatas ou códigos de consenso para que aponta a historiografia –, e da gestão diária da vida da cidade, até à celebração do Tratado de 1887. Por facilidade expositiva, poder-se-ão agrupar temática e formalmente da seguinte forma:

  • “correspondência oficial chinesa”, ou “documentos chineses” nesse contexto — para referir as chapas sínicas e respectivas traduções; as minutas, ofícios e respostas produzidos pelo Senado que, uma vez vertidos para chinês, seriam enviados às autoridades imperiais;
  • documentos sínicos —a documentação, em chinês ou português, produzida pela Procuratura do Senado sobre toda a espécie de assuntos referentes à população chinesa de Macau; às relações comerciais, jurisdicionais, administrativas, políticas e diplomáticas com os chineses, incluindo a codificação do aprendizado, experiência e saber em “matéria chinesa”.

Pouco ou nada sabemos sobre a sua história custodial e arquivística, para além de que acabaram por ser depositadas, em circunstâncias desconhecidas, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (IAN/TT). Assim, as “Chapas Sínicas” ou Dong Bo Dang [Colecção do Tombo], como são conhecidas entre os investigadores chineses, por lá ficaram esquecidos até à década de 1950 quando foram inventariadas pelo Padre 方豪 Maurus Fang Hao (1910-1980) a convite do Padre António da Silva Rego (1905-1986) em 1952, e mereceram a atenção isolada de estudiosos e investigadores chineses como 李維城Li Weicheng e 卜新賢Pu Hsin-Hsien nas décadas de 1950-1960, mas continuaram, e até bem recentemente, a ser encaradas pela historiografia ocidental, sobretudo portuguesa, de Macau, como se de um acervo documental extrínseco à cidade, ou uma espécie de curiosidade exótica se tratasse, não obstante o recurso pontual a alguma dessa documentação por parte de autores como António (1839-1881) e João (1863-1909) Feliciano Marques Pereira, Bento da França (1859-1906), Júlio Firmino Biker (1814-1899) e Luís Gonzaga Gomes (1907-1976).

 

 

Publicadas, no todo ou em parte, a partir de meados do século XX, por 章文欽Zhang Wenqin e劉芳 Liu Fang (Lau Fong), que também assina, com Isaú Santos, um catálogo da colecção em língua portuguesa, foram as traduções coevas, as chamadas “chapas sínicas em português”, publicadas por 金國平Jin Guo Ping e 吴志良Wu Zhiliang.

As “Chapas Sínicas” constituem um corpus documental que, para além de abranger os mais diferentes aspectos do relacionamento luso-chinês nos domínios político-administrativo, comercial, jurisdicional, penal, fiscal, militar, diplomático, religioso e cultural, abarca todos os domínios da vida da cidade. Não deixará certamente de ser esclarecedor para o estudo da vida quotidiana de Macau, da sua função intermediária no contexto do comércio internacional e do chamado “sistema de Cantão”. Sê-lo-á também para a história social, permitindo, por exemplo, a identificação de agentes e membros das elites de poder, redes mercantis, elementos de mediação pertencentes a todas as comunidades em presença. A relevância deste acervo, já também sumariada por鄧思平Tang Si Peng em 1992, é salientada pela investigação que劉景蓮Liu Jinglian sobre ele tem vindo a empreender analisando aspectos políticos e formais mas também jurisdicionais e judiciais do relacionamento luso-chinês. Mais recentemente temos o caso de Tang Weihua e Sun Chunlei, que as utilizaram para o estudo das questões relacionadas com a posse e arrendamento da propriedade urbana em Macau e frequentes disputas daí decorrentes envolvendo portugueses e chineses.

 

As “Chapas Sínicas em português”

O núcleo das “Chapas Sínicas em português”, constituindo, como se disse, um conjunto de cinco livros, iniciou-se em 1 de Junho de 1749. De facto, a pressão sentida no período que antecedeu a imposição do chamado “Código de Qianlong”, deram, como já demonstrei noutra sede, origem a um livro separado de traduções, ou seja, a uma nova codificação da correspondência oficial com as autoridades chinesas.

O “Código” foi o culminar de um período de constante negociação provocada pela particular tensão sentida nas relações sino-macaenses a partir de 1747. Discutiam-se casos de justiça; a entrada de estrangeiros (não portugueses) em Macau, mas as questões fundamentais prendiam-se com o controlo da crescente população chinesa; com a regulamentação dos limites da jurisdição mista e com a resolução de atritos de natureza religiosa (como o caso da igreja de Nossa Senhora do Amparo), resultando tudo isso no referido “Código de Qianlong” de 1749.

 

 

Assim, e sem pretender resolver aqui o eventual enigma da grande lacuna documental verificada na codificação da correspondência oficial chinesa do Senado de Macau, nem desvendar o mistério da remessa das “Chapas Sínicas” para Portugal, parece-me poder concluir que a atitude da oligarquia de Macau e da Coroa portuguesa — no que se incluem os vice-reis e governadores da Índia —, relativamente à tradução, acesso e preservação das chapas e outros documentos oficiais chineses está directamente ligada à própria percepção da precariedade do “estatuto de Macau”.

 

N.A.- Limitações de espaço não permitem a inclusão de informação bibliográfica detalhada nem de qualquer aparato crítico.

[1] Versão portuguesa da bula Super specula militantis Ecclesiae, de 23 de Janeiro de 1576, apud Manuel Teixeira – Macau e a sua Diocese, II –Bispos e Governadores do Bispado de Macau, Macau, Imprensa Nacional, 1940, p. 61.

 

*Investigadora do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais, Instituto Politécnico de Macau