TRADIÇÃO

O peixe seco que faz parte da história

Em Macau, a tradição da seca de peixe e marisco era comum em todo o território, mas são poucos os estabelecimentos que ainda hoje se dedicam a este negócio. Na vila de Coloane, apenas algumas lojas, como a “Lane de Peixe Ieng Lei”, mantêm as portas abertas agarradas a hábitos e memórias do passado

Texto  Tony Lai
Fotografia  Cheong Kam Ka

ANTES dos néones dos enormes empreendimentos turísticos terem chegado a Macau, a cidade era uma vila de pescadores, com menos visitantes e actividades económicas. Muitas lojas e bancas da tranquila vila de Coloane ainda hoje recordam a glória do passado, em contraste com o desenvolvimento em grande escala na península de Macau e na Taipa. Uma destas lojas é a “Lane de Peixe Ieng Lei”, situada a poucos passos do cais de Coloane.

É difícil não reparar na Ieng Lei ao caminhar pela Rua dos Navegantes. Na loja, estão pendurados vários tipos de marisco seco, desde peixe salgado e bucho de peixe seco, vieiras e ostras secas, a camarão seco e pasta de camarão. Ingredientes que estão entre os preferidos das famílias e restaurantes chineses para preparar alguns dos pratos mais tradicionais.

Cercado por todo este volume de marisco seco na Ieng Lei está Cheong Ieng, que supervisiona a palafita, com a ajuda da esposa e funcionários, desde a abertura da loja, há mais de cinco décadas.

Crescer com o negócio

Filho e neto de pescadores na região do Delta do Rio das Pérolas, desde muito jovem que Cheong vive em Coloane, conhecendo bem os meandros de uma vida ligada ao mar. “Comecei a acompanhar o meu pai e o meu avô no trabalho, inclusive a vender o pescado em mercados locais, desde os oito ou 10 anos de idade”, lembra Cheong, hoje já com 76 anos.

Com a família dedicada à indústria da pesca, o jovem Cheong não teve a oportunidade de ir à escola, pelo que tornar-se um vendedor de marisco foi a escolha óbvia. Cheong abriu a Ieng Lei em Coloane em 1965, quando tinha apenas 20 anos.

“Coloane era então uma simples vila de pescadores e todos os dias podíamos receber grandes quantidades de pescado proveniente de inúmeros barcos de pesca”, diz à Revista Macau. Além de vender uma grande variedade de peixe e marisco fresco, a Ieng Lei também salgava peixe, secando-o ao sol, coberto por uma camada de sal.

Alguns dos produtos da Ieng Lei são ainda parcialmente processados e secos ao sol

No início, a Ieng Lei era apenas uma pequena palafita, mas Cheong acabou por obter uma autorização para expandir a loja, conseguindo, assim, um vasto terraço e uma varanda para secar ao sol todo o tipo de produtos marinhos. “As autoridades não queriam que simplesmente colocássemos os produtos a secar na rua”, explica. “Na época alta, tínhamos que secar ao sol 4800 cates de peixes salgados todos os dias, alguns na varanda e outros no telhado.” Um cate – uma unidade de peso chinesa – equivale a cerca de 600 gramas.

Uma nova direcção

Registos históricos mostram que a indústria pesqueira de Macau atingiu o pico antes da década de 1940, com cerca de 60.000 pescadores locais – empregando mais de 70 por cento da população local – e milhares de barcos de pesca ancorados ao longo da linha costeira da cidade. Mas, em meados do século 20, o sector entrou em declínio, por causa do aumento do preço do petróleo e da redução dos recursos pesqueiros nas águas da região.

Foi face à redução significativa de pescado na década de 1980 que o negócio da Ieng Lei passou gradualmente do marisco fresco para os produtos marinhos secos. “No passado, havia 15 a 20 ‘lanes de peixe’ como a nossa, mas muitas fecharam ou transformaram-se em tascas ou restaurantes”, diz Cheong. “A contar com a nossa, agora existem apenas duas ou três ‘lanes de peixe’ ainda em operação na vila de Coloane.”

A Ieng Lei foi estabelecida em Coloane em 1965

Neste momento, a Ieng Lei vende uma variedade de produtos secos importados de vários países, como a Indonésia e o Brasil. Alguns destes produtos são parcialmente processados e secos ao sol na palafita que Cheong gere com a sua equipa. “Às vezes, a pedido de amigos e velhos clientes, compramos peixe fresco a vendedores locais para o salgar, mas é caro fazer isso hoje em dia”, diz. “Com um cate de peixe fresco não se consegue nem sequer meio cate de peixe salgado.”

Entre os muitos produtos disponíveis na Ieng Lei, o mais vendido – e com inúmeros nutrientes, segundo a terapia alimentar chinesa – é o bucho de peixe seco, preferido não apenas pelos residentes locais, mas também por visitantes do Interior da China, Hong Kong, Japão, Malásia e outras regiões. O mesmo não se pode dizer do peixe salgado. “A geração mais nova não gosta de comer peixe salgado; eles acham que não é saudável, mas a minha esposa e eu estamos acostumados a comê-lo e temos que o comer todos os dias”, conta Cheong.

“Os tempos são diferentes agora”, diz o lojista, na varanda da casa de palafitas, com vista para a vizinha ilha de Hengqin.

Tempos de mudança

Com a gestão da loja ao longo de mais de meio século, Cheong aprendeu a resistir às intempéries, não apenas do clima, mas também da vida e dos negócios. Este esforço passa por uma adaptação à actual realidade, visto que nos últimos anos os turistas, principalmente do Interior da China, têm comprado menores quantidades de produtos da Ieng Lei, devido às restrições alfandegárias. A pandemia da COVID-19 foi apenas o mais recente golpe para a Ieng Lei.

A loja também fornece marisco seco a restaurantes chineses locais

“O negócio está muito mais difícil agora, porque há poucos turistas, e, geralmente, eles são mais propícios a consumir estes produtos do que os residentes”, afirma Cheong. 

“Também fornecemos marisco seco a restaurantes chineses locais, que antes da pandemia faziam todas as semanas uma encomenda de pelo menos 10 cates de produtos; agora, encomendam, no máximo, uma vez por mês, e apenas dois cates, devido à escassez de visitantes”, explica.

Desde a abertura da loja que Cheong tem estado pessoalmente envolvido em cada passo do negócio, da aquisição da matéria-prima até à venda a clientes e comerciantes, passando ainda pelo processamento de produtos marinhos secos. Depois de mais de 50 anos ao leme da Ieng Lei, diz que ainda não está preparado para se reformar: “Um dia poderei passar o negócio aos meus filhos ou até aos netos, mas não agora. Gerir este negócio não é tão simples quanto parece.”