Comunidades

“O importante para o macaense é ter noção da sua diferença”

Multifacetada, culturalmente híbrida e plurilíngue, a comunidade macaense possui os atributos necessários para abraçar o projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. O veredicto é de Miguel de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, que olha para os desafios como oportunidades para a comunidade

Texto Marco Carvalho

Pragmáticos, um pouco supersticiosos, mas profundamente realistas. O retrato, traçado a pinceladas largas e espontâneas, por Miguel de Senna Fernandes, ilustra uma visão dos macaenses que não é nem unânime, nem inequívoca. 

A comunidade, apesar de pequena, tem diferentes leituras sobre quem são e o que reserva o futuro aos “filhos da terra”, mas o presidente da Associação dos Macaenses está convicto de que estas são algumas das características que podem fazer com que os macaenses se continuem a prefigurar como uma mais-valia tanto para o território, como no âmbito mais abrangente da região da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau. 

O debate sobre o que está na essência da identidade macaense está longe de ser um capítulo encerrado e a Associação dos Macaenses tenciona promover um novo colóquio sobre a questão num futuro muito próximo, diz o advogado e dirigente associativo. Mas, acrescenta, as características e os valores nos quais a comunidade se fundamenta são um garante de que os macaenses – a título pessoal ou colectivamente – se mantêm relevantes e que o contributo que podem dar constitui um trunfo para Macau.

Entre os valores e convicções partilhados pelos que dão corpo à mundividência maquista, sustenta Miguel de Senna Fernandes, um há em que a concordância é total: “Há certas questões que, quando falamos dos macaenses, têm de ser sempre colocadas. Há certos traços. Por mais que queiramos falar, por mais que queiramos debater, tudo se reduz a esses traços: mestiçagem e um apego a Macau. Macau é tudo para um macaense”.

E acrescenta: “Temos mestiços e são de Macau. E que mais? Há uma ligação muito forte, ainda que remota, a um espaço cultural mais vasto, que eu chamaria de espaço da lusitanidade. Este conceito não é incólume a críticas, mas exprime essa ligação, que é uma ligação que existe de facto e que começa pelos próprios nomes das pessoas. O que está em causa não é o facto de um macaense falar ou não português. Isto não interessa. O importante para o macaense é ter noção da sua diferença. Isto é que é importante”. 

Estratégia de sobrevivência

Da encruzilhada secular de culturas e povos de onde emergem os macaenses, a comunidade herdou uma apetência natural, quase inata, para o vanguardismo e a reinvenção, sem nunca comprometer aquilo que são nela os traços essenciais.

Foi assim no passado e assim deve continuar a ser no futuro, até porque a estratégia, defende o mesmo responsável, tem mostrado ser relativamente bem-sucedida. 

“Não foi por acaso que, há mais de cem anos, uma parte da comunidade macaense decidiu estudar em inglês, por exemplo. São tão macaenses como qualquer um, não falam é português”, refere Miguel de Senna Fernandes, que preside à Associação dos Macaenses desde 2006. “Tudo isto é uma estratégia de sobrevivência e é uma estratégia de sobrevivência com que os macaenses foram confrontados desde cedo. Se recuarmos até à fundação de Hong Kong, já encontrávamos aí esta estratégia de sobrevivência”, defende. 

“Andamos agora a falar da Grande Baía. Há mais de vinte anos que os macaenses se começaram a preparar para isto. É claro que nunca se pensou especificamente no projecto com estes contornos, mas a comunidade há muito que se está a preparar para que um dia possa trilhar um futuro aqui, em Macau, ou mesmo no Interior da China”, sublinha o também activista cultural. “Não é por acaso que, de mais de vinte anos a esta parte, os macaenses decidiram colocar os seus filhos a estudar em chinês. Há uma razão para isso e essa razão é o pragmatismo.”


“É fundamental que consigamos colocar as pessoas a falar, que possamos voltar a ser um local de congregação”

MIGUEL DE SENNA FERNANDES
PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS MACAENSES

Um tal pragmatismo, aliado a uma rápida capacidade de adaptação, pode fazer a diferença no contexto de integração jurídica, política e social em que se alicerça o projecto da Grande Baía. Multifacetado, culturalmente híbrido e senhor de uma experiência plurilinguística incomparável, o macaense tem tudo para ser bem-sucedido. 

“É precisamente o que nos faz diferentes que nos pode ajudar. Eu tenho competências linguísticas para discutir, a todos os níveis, com qualquer cidadão da Grande Baía. O macaense tem competências linguísticas. No meu entender, só lhe falta fazer valer a sua costela macaense. Se, na esfera da Grande Baía, isto pode ser uma mais-valia para os macaenses? É claro que sim”, argumenta Miguel de Senna Fernandes. 

Velhos e novos desafios

A diluição de Macau numa realidade política e económica mais abrangente exige capacidade de adaptação, mas não assusta os “filhos da terra”. Tal não significa, porém, que a comunidade e a própria Associação dos Macaenses não tenham em mãos desafios prementes. 

A pandemia da COVID-19 deixou sequelas que estão a afectar quer o funcionamento, quer as perspectivas de futuro da organização. 

“Inicialmente foi o desejo de se preservar uma identidade que levou à criação da Associação dos Macaenses. Esta identidade preserva-se através do movimento associativo. Isto é uma característica muito própria de Macau. Perante a perspectiva de um futuro incerto, é claro que a comunidade se sentiu minimamente preocupada com o seu futuro”, reconhece o dirigente. 

“No fundo, os objectivos não se alteraram. É a defesa de uma identidade, sob diversas formas e através de vários meios possíveis. Um dos meios fundamentais para isto são os convívios”, assume Miguel de Senna Fernandes. “Muitas vezes as pessoas têm tendência para considerar os convívios como apenas uma festa, mas é evidente que o aspecto fundamental dos convívios é a possibilidade de se fortalecer relações. Isto é fundamental para uma comunidade.” 

O encerramento da cantina da Associação dos Macaenses, uma decisão motivada pela COVID-19, desferiu um rude golpe na capacidade de a organização levar a bom porto o principal desígnio a que se propõe: congregar regularmente os associados e os membros da comunidade.

“A Associação quer, para já, voltar a focar-se naquilo que é a nossa comunidade. A pandemia veio mexer, realmente, com tudo. A própria vida comunitária sofreu imenso e há que reequacionar tudo. Se não temos dinheiro, há que pensar em maneiras de fazer dinheiro. Há que pensar em fazer receitas. Esta é uma associação sem fins lucrativos, mas mesmo não tendo fins lucrativos, precisa de receitas”, admite o dirigente. 

“É fundamental que consigamos colocar as pessoas a falar, que possamos voltar a ser um local de congregação. Se conseguirmos juntar regularmente os macaenses, num único momento que seja, eu dou-me por satisfeito”, assegura Miguel de Senna Fernandes.