Sabores com tradição

Hon Kee: um café especial

Foi durante anos a principal atracção da aldeia de Lai Chi Vun e nem os planos para modernizar a zona tiram o protagonismo ao Café Hon Kee, um espaço onde, há mais de 30 anos, Leong Kam Hon recebe os clientes com um sorriso e uma mão cheia de estórias

Texto Tony Lai
Fotografia Cheong Kam Ka

Lai Chi Vun, localizada na linha costeira de Coloane, é uma aldeia talhada pelo contexto social de Macau e pelo crescimento da indústria naval no século passado. Mas num aglomerado de construções que oferece um esboço da evolução de Macau, há uma que se destaca pela fama que granjeou ao longo de mais de 30 anos.

O Café Hon Kee, fundado em 1990 por Leong Kam Hon, continua a ser hoje uma das principais atracções para residentes e turistas, que colocam Lai Chi Vun nos seus roteiros com um propósito específico: saborear um café cremoso e batido à mão, uma especialidade única do Café Hon Kee.

O espaço, que mantém a aparência original desde que abriu portas, foi construído de raiz por Leong Kam Hon, que ainda hoje comanda as operações do café. “Num piscar de olhos, trabalhei e morei em Lai Chi Vun por mais de cinco décadas”, diz o construtor naval de profissão, que, apenas por um acidente, se tornou proprietário de um café.

Fama e proveito

O afamado café do Hon Kee, conhecido como “café batido à mão” em língua chinesa, é uma mistura de café instantâneo em pó, açúcar e água quente, com um toque especial: é batido manualmente cerca de 400 vezes. Este processo meticuloso confere à bebida uma textura suave e cremosa, diferenciando-a do café normal. A receita e o método de preparação já faziam as delícias dos clientes do Hon Kee há quase duas décadas, antes do surgimento do café Dalgona – uma bebida com receita e ingredientes semelhantes –, uma tendência que ganhou protagonismo na Coreia do Sul durante o período da COVID-19.

Este café típico, porém, demorou a entrar no menu do Hon Kee, conta Leong Kam Hon à Revista Macau. O proprietário, hoje com 68 anos, refere que aprendeu a receita com “um casal estrangeiro” que costumava visitar o café na década de 1990, durante o período do Grande Prémio de Macau.

“Embora tenha aprendido a fazer esta bebida, não a fazia para os meus clientes no início porque era difícil bater cada chávena de café cerca de 400 vezes”, diz Leong Kam Hon. No entanto, tudo mudou quando Chow Yun-fat, um dos mais celebrados actores asiáticos – mais conhecido pelos seus papéis em filmes como “Crouching Tiger, Hidden Dragon” e “God of Gamblers” –, visitou o café em 2004.

“Quando vi aqui Chow Yun-fat, senti a necessidade de fazer algo para o impressionar, e veio à mente a receita de café ensinada pelo casal estrangeiro”, diz o proprietário. O actor foi o primeiro cliente a experimentar o café batido do Hon Kee, tendo-se imediatamente tornado num fã da bebida. “Ele disse-me que nunca tinha provado um café com este sabor e textura em nenhum outro lugar, nem mesmo em hotéis famosos”, recorda Leong Kam Hon com um sorriso.

O Café Hon Kee foi fundado em 1990 por Leong Kam Hon

A validação de Chow Yun-fat e o mediatismo que se seguiu, tornou o Hon Kee popular não só entre os residentes de Macau, mas também entre turistas do Interior da China, Hong Kong, Taiwan, Malásia e várias outras regiões. 

“Antes da pandemia da COVID-19, havia sempre uma longa fila lá fora aos fins-de-semana e feriados”, salienta o proprietário. À medida que as restrições relacionadas com a pandemia foram sendo eliminadas, o café começou novamente a receber turistas do exterior, incluindo o próprio Chow Yun-fat. “Ele voltou há algumas semanas para tomar outra chávena de café”, refere Leong Kam Hon com orgulho.

Percalços na vida

Se perguntassem ao jovem Leong Kam Hon se ter um café fazia parte dos planos para o futuro, a resposta seria incisiva: “não”. Mas a vida, às vezes, tem outros planos e a criação do Hong Kee foi uma coincidência, ou mais precisamente, um acidente. 

Vindo de uma família humilde de pescadores, Leong Kam Hon e os seus pais mudaram-se para Macau em 1971, vindos da província vizinha de Guangdong, em busca de melhores condições de vida. A família estabeleceu-se em Lai Chi Vun, onde o jovem Leong Kam Hon encontrou emprego como construtor naval num dos estaleiros. “Foi o melhor emprego que consegui naquela época, porque só tinha frequentado a escola durante sete dias”, comenta.

A indústria da construção naval foi durante décadas uma das quatro principais indústrias tradicionais de Macau. O sector teve um rápido desenvolvimento até à década de 1990, altura em que entrou em declínio devido à diminuição no volume de pesca e a uma maior competição de zonas vizinhas.

Após mais de uma década a construir navios, Leong Kam Hon sofreu um acidente de trabalho em 1986, que quase lhe custou o braço esquerdo, devido a uma infecção grave. “Lembro-me de dizer ao médico que o meu braço era praticamente a minha vida. Perder o meu braço significaria perder a minha vida”, refere. 

O café situa-se mesmo ao lado dos estaleiros navais de Lai Chi Vun

Depois de vários tratamentos e o que o próprio descreve como um “milagre”, o braço começou a melhorar. Porém, foram dois meses no hospital, seguidos de quatros anos de recuperação e fisioterapia para voltar a ter o controlo do braço esquerdo. A vida dentro dos estaleiros de construção naval fazia então parte do passado, mas não a sua ligação a Lai Chi Vun.

A opção viável

Com um leque de opções reduzido, educação e conhecimentos limitados, bem como quatro filhos para sustentar, Leong Kam Hon não demorou muito até escolher aquela que lhe parecia a solução mais viável para o futuro: abrir um café na aldeia onde vivia há quase 20 anos, servindo bebidas, sandes, massas e sopas de fitas.

Criar o Hon Kee ao lado dos estaleiros também fazia sentido, já que era lá perto que morava e conhecia bem as zonas e as pessoas. “No início, os nossos clientes eram maioritariamente os trabalhadores dos estaleiros, os meus antigos colegas, porque poucas pessoas se aventuraram por Lai Chi Vun”, conta Leong Kam Hon.

Quase tudo no espaço original, incluindo os pilares de madeira, os telhados, mesas e cadeiras, foi construído manualmente por Leong Kam Hon, servindo-se dos anos de experiência nos estaleiros navais e dos materiais que foram doados pelos próprios estaleiros. 

 “Os chefes do estaleiro tiveram pena da minha situação e permitiram que usasse alguns materiais”, recorda o proprietário do café. “Esta construção foi muito mais simples do que construir navios”, acrescenta.

Segundo Leong Kam Hon, os primeiros tempos do Hon Kee foram os mais complicados. Não só não tinha experiência na área da restauração, mas também a base de clientes era bastante limitada, conta. O negócio, confessa, só ganhou novo fôlego após a visita de Chow Yun-fat.

O café cremoso do Hon Kee já ganhou fãs além fronteiras

Ao longo dos anos, e à medida que a popularidade do café cresceu, Leong Kam Hon diz já ter recebido várias ofertas para comprar ou expandir as operações do café, que foram sempre rejeitadas. “Depois de considerar as minhas próprias capacidades, a qualidade do que oferecemos e outros factores, achei sempre melhor permanecer onde estamos”, afirma, agarrando-se à história e tradição que dão um encanto especial ao Hon Kee.

Nova etapa

A largada do último barco construído em Lai Chi Vun ocorreu em 2005, marcando o fim da indústria da construção naval naquela zona. Leong Kam Hon acredita que, se não fosse pelo acidente, teria continuado a trabalhar em estaleiros de construção até à reforma. “Talvez me tivesse tornado num operário da construção civil e tentado ganhar a vida dessa forma”, imagina.

O que nunca lhe passou pela cabeça, porém, foi deixar Lai Chi Vun, onde morou e trabalhou a maior parte da vida. “Desde que assentei os pés pela primeira vez em Lai Chi Vun, há cerca de 50 anos, tecnicamente nunca mais saí”, afirma. “Porquê? Não sei. Eu apenas sigo aquilo que sinto.”

A aldeia de Lai Chi Vun até vai ganhar nova vida. O Governo decidiu que parte dos estaleiros de construção naval vai ser preservada dado o seu “valor cultural” e a zona será dinamizada, procurando dar a conhecer ao público em geral aquela que foi, em tempos, uma das maiores indústrias de Macau.

A revitalização da zona arrancou com a instalação de uma área de exposições temáticas e um espaço para espectáculos e workshops. Está ainda prevista a criação de um espaço para desportos e uma livraria, um projecto que poderá abrir um novo capítulo na vida do Hon Kee.