Um lugar em branco

As saudades de Carlos d’Assumpção, ou do doutor Assumpção, como ainda lhe chamam, são cada vez mais fortes. Duas décadas depois da sua morte, não há em Macau uma individualidade que se lhe compare, diz quem o conheceu. Dotado de uma inteligência extraordinária, Carlos d’Assumpção continua a fazer falta à vida pública do território e àqueles que o rodearam durante a vida

 

 

Texto Alexandra Lages

 

Há quem se deixe dominar pela nostalgia. Contam histórias e experiências pessoais com um sorriso desenhado nos lábios, maravilhados por terem convivido com esta personalidade histórica. E há, claro, situações em que o discurso é atropelado por uma saudade imensa. Suspiram após cada frase como que a tentar esconder a emoção e, sobretudo, a tristeza pela ausência de Carlos d’Assumpção.

Fabuloso, exímio, de uma inteligência superior, humano, afável, extremamente educado, nunca mais acabam os elogios que se fazem a este homem que desapareceu há 20 anos. Todos vivem com uma certeza: como Carlos d’Assumpção não há ninguém, “nem hoje, nem nos próximos séculos”, diz o seu antigo pupilo Leonel Alves.

Todos os dias ao entrar na Assembleia Legislativa (AL), a então presidente substituta Anabela Ritchie parava em frente ao retrato de Assumpção e pedia-lhe a bênção. “Em muitas situações pensava: Como será que ele resolveria isto?”

Carlos d’Assumpção era mais do que amigo, pai, marido, político ou jurista. Era um mestre. Foi mestre de Anabela Ritchie, que o substituiu na presidência do hemiciclo após a sua morte, e de tantos outros macaenses que hoje têm um papel preponderante na vida pública desta região administrativa especial que o doutor Assumpção não chegou a ver nascer.

“Senti muito a falta dele,” diz Anabela Ritchie, emocionada. “Depois de 20 anos, ainda sinto dentro de mim o diálogo interrompido de uma maneira muito intensa,” confessa.

Anabela Ritchie e Carlos d’Assumpção trabalharam juntos no Conselho Ad Hoc criado para elaborar o Estatuto Orgânico de Macau após a Revolução de Abril. Ela foi nomeada deputada pelo Governador e ele eleito por sufrágio directo e promovido a presidente da AL. Foi o começo de uma “grande amizade”. “Foi um mestre que me ensinou tudo de política e da história de Macau”, diz a representante da comunidade macaense.

Carlos d’Assumpção tinha alma de professor. “Tinha paciência de chinês para ensinar”, dizem. Contudo, rejeitou o convite para docente de Direito em Coimbra, pois sentia a terra que o vira nascer em Março de 1929 a chamar por si.

“Era um professor nato e tinha imenso prazer em ensinar. Ele tomou para si o encargo de transmitir o que sabia aos mais jovens e tinha prazer em partilhar os seus conhecimentos. Era extraordinário”, recorda Anabela Ritchie. “Beneficiei muito por ter encontrado um Carlos d’Assumpção na vida.”

 

Referência para a vida

Leonel Alves, deputado à AL e advogado, não se esquece da primeira vez que viu Carlos d’Assumpção. “Se me lembro? Ainda hoje está presente”, exclama. Já ouvia falar no doutor Assumpção quando ainda era estudante de Direito em Coimbra. Voltou para Macau e fez questão de o conhecer. Colocou-se ao seu dispor para “dar um contributo para Macau” e recebeu “vários conselhos como advogado, homem e macaense”.

Jovem advogado, “com todas as dificuldades óbvias de quem inicia uma carreira”, Leonel Alves consultava muitas vezes Carlos d’Assumpção quando tinha dúvidas em alguns casos. E ficavam “até altas horas” a conversar. Carlos d’Assumpção era um noctívago. Era após o pôr-do-sol que se reunia com os amigos, conversava, ensinava, estudava e trabalhava.

Numa manhã do Verão de 1984, o jovem causídico recebeu um telefonema. Carlos d’Assumpção convidava-o para integrar uma lista para as eleições directas da primeira legislatura da AL de Macau. “Não podia dizer que não ao doutor Assumpção, mas pedi-lhe 24 horas para pensar. Era um grande compromisso, quando me disponibilizei era para debates e análises e não para seguir uma carreira política de deputado. Isso iria retirar-me muito tempo ao meu dia-a-dia. Estava no início da minha carreira de advogado e sentia dificuldades por todo o lado.”

Contudo, Leonel ficou logo desarmado. “Ele disse: ‘Só tem dez minutos para decidir’”, relembra o advogado entre risos. “Aqueles minutos foram terríveis para mim. Antes de chegar ao termo desses dez minutos, recebi um novo telefonema dele a querer saber a resposta.”

A resposta foi um sim meio inseguro e Leonel Alves iniciou uma “fase profícua em todos os sentidos: como jurista, legislador, político, homem e macaense”. Ainda hoje, Carlos d’Assumpção é a referência do advogado. “Tudo o que faço é sempre na mira que estou a seguir a mesma filosofia e pensamento que é, ao fim ao cabo, proteger bem a população de Macau e enaltecer os valores da comunidade macaense.”

 

O deputado e o general

O jovem coronel Garcia Leandro foi o primeiro governador de Macau após o 25 de Abril. Os primeiros tempos do seu mandato, entre 1974 e 1976, “tiveram altos e baixos, até porque grande parte da população portuguesa de Macau estava com medo do futuro, face ao que se passava no restante ultramar português de então,” recorda Garcia Leandro.

Conheceu o jurista e político macaense em Junho de 1974 quando se deslocou a Macau em missão. “Nessa altura, contactei todas as entidades mais representativas de Macau e o Carlos d’Assumpção impressionou-me logo pela informação que me deu, pela qualidade e prudência dos seus conselhos, pela verdade que me transmitiu sobre a situação real de Macau, sobre o quadro de interesses em confronto, e pelo comportamento que manteve enquanto estive em funções, durante mais de quatro anos,” salienta.

Garcia Leandro teve uma “relação muito forte e diversificada” com Carlos d’Assumpção. “Era o líder da comunidade macaense. O seu conselho foi-me sempre muito útil para questões que ele conhecia pela cronologia e por dentro, como ninguém,” sustenta.

Como político, o ex-governador recorda-o como sendo “muito hábil” e dirigia com “grande mestria” a AL desde a sua abertura solene em Agosto de 1976 até à sua morte, em 1992. Por vezes, “tinha dificuldade em conciliar interesses divergentes que a si recorriam,” diz.

Relativamente aos interesses de Portugal e de Macau, às relações com a República Popular da China e com Hong Kong, Garcia Leandro e Carlos d’Assumpção estiveram “sempre de acordo”. “Pôs sempre, acima de tudo, os interesses de Portugal – era um grande patriota – e teve sempre muito cuidado com o futuro dos macaenses.”

 

Português de Macau

Anabela Ritchie acredita que Carlos d’Assumpção tinha uma visão para Macau. “Era um acérrimo português de Macau e macaense,” defende. “Tinha muito a ideia do tripé, que há três comunidades em Macau, e é preciso haver um equilíbrio.”

Na AL, Carlos d’Assumpção era o “fiel da balança” e um “super-deputado”, recorda Leonel Alves. “Com a sua ausência, obviamente tudo se modificou”, afirma o antigo pupilo. “Não posso dizer que a mudança foi para pior, mas foi diferente. A marca da AL passou a ser outra. Até hoje, deputados chineses lembram-se como a Assembleia funcionava, o papel que o doutor Assumpção tinha ao nível das comissões e ao nível dos pareceres. Não havia parecer nenhum que não passasse pelo crivo político-jurídico e até literário dele – porque ele escrevia com um belíssimo português”, conta.

O filho mais velho, também Carlos, tinha 31 anos quando o pai morreu. Recorda-se de ver a casa “sempre cheia de gente” durante a sua infância e adolescência. “O meu pai estava sempre pronto a ajudar quem necessitasse. Tinha imenso orgulho em ser português,” enfatiza.

Carlos d’Assumpção, o pai, não cobrava honorários para dar conselhos jurídicos a macaenses e portugueses. Até ajudava adversários políticos que procuravam os seus préstimos. “Um dia perguntei-lhe porque é que os ajudava”, recorda Leonel Alves. “Ele riu-se e respondeu: ‘Temos que ser humanos’”.

E ganhava os recursos administrativos. Aliás, ganhava quase todos os seus casos. “Daí ter conquistado o imenso respeito da comunidade chinesa”, explica Anabela Ritchie.

“O meu pai era um homem conservador, mas capaz de sentimentos muito profundos, embora não fosse muito demonstrativo”, conta o primogénito com palavras emocionadas. “Era muito amigo do seu amigo, muito íntegro, e gostava de estar com os amigos à hora do jantar”, introduz.

Carlos lembra-se das histórias que o pai lhe contava quando era criança, da maneira como o pai gostava de ver as pessoas a aprender. “Era muito exigente, mas não exigia mais de nós [os três filhos] do que a si próprio. Exigia, mas dava o exemplo,” afirma.

O pai era muito grato a Macau, conta. “Dizia que era um português de Macau e que isso lhe deu todas as oportunidades que teve na vida. Dizia que tudo o que tinha devia a Macau.”

Carlos sempre teve um grande orgulho no pai. “Sinto-me muito orgulhoso porque ele se considerava português. Quando foi convidado para participar na redacção da Lei Básica, o meu pai insistiu em pedir autorização ao então presidente da República de Portugal. Antes de tudo, era português de Macau.”

Grande parte do actual capítulo sobre as liberdades e garantias da Lei Básica foi feito pela mão de Carlos d’Assumpção. Trabalhou nisso, já doente.

 

Um cavalheiro

Tal é a admiração que a investigadora Celina Veiga de Oliveira tem por Carlos d’Assumpção que está prestes a publicar a sua biografia. Quando se mudou para Macau para dar aulas no liceu, em 1980, já tinha ouvido falar do jurista e político várias vezes em Portugal. “Falaram-me que era um excelente advogado, grande aluno em Coimbra e presidente da AL. Não demorou muito para nos encontrarmos.”

E as expectativas foram mais do que superadas. “Era uma figura que se destacava, culto, bem educado, elegante, afável para as pessoas e disponível para ajudar os outros”, recorda.

Era ao mesmo tempo discreto. Um verdadeiro cavalheiro. “Não tinha muita vontade de protagonismo, mas tinha um carisma muito forte que toda a gente respeitava. Era um português com um toque britânico. Muito ponderado, tudo o que dizia era com um enorme bom senso, muitíssimo sensato e inteligente.”

A investigadora destaca o facto de Carlos d’Assumpção ter sido sempre eleito deputado pela via directa, o que lhe conferia “muita legitimidade”. Na obra Um Homem de Valor, Celina Veiga de Oliveira presta-lhe homenagem. A fotobiografia deverá ser lançada até ao fim deste ano.

“Tinha uma postura de líder”, acrescenta Anabela Ritchie. Era, no fundo, uma personalidade ímpar. “Ainda hoje penso, se ele continuasse vivo, o que é que faria em determinados momentos, mesmo depois da transição para a China”, diz Leonel Alves. “Costuma-se dizer que ninguém é insubstituível. Neste caso concreto, a substituição é extremamente difícil.”