A virtude do Jade

Símbolo da civilização chinesa, o jade (yu, 玉) esteve sempre ligado à pureza e associado à virtude e às suas propriedades tanto mágicas, como curativas. É também uma pedra representativa do poder.

1 Pedras em Si Hui

 

Texto e Fotos José Simões Morais

 

São quatro e meia da manhã e um imenso número de luzes brancas pontilha a escuridão da noite dentro de um grande pavilhão. Estamos no mercado de Jade (天光墟) em Si Hui, distrito de Zhaoqing, na Província de Guangdong, onde diariamente chegam inúmeros homens de negócios. Uns vêm-se abastecer de objectos de jade, como pendentes, colares e pulseiras, para as suas lojas localizadas tanto nesta província, como noutras da China, mas outros aqui chegam para vender pedra em bruto. Estávamos habituados a ver peças de jade em muitos museus provinciais ou nos mercados de objectos de jade por todo o país, mas estas pedras não têm nada de parecido com o jade tal e qual como o conhecemos.

Teoricamente sabíamos estar o jade dividido entre nefrite, um silicato duplo de cálcio e magnésio, designado em chinês por zhen yu (真玉), ou jade verdadeiro e jadeíte, um silicato de sódio e alumina, conhecido apenas por yu. Aprendêramos com Luís Gonzaga Gomes que para distinguir entre estes dois minerais basta levar ao rosto ambos e o que revelar uma sensação de frio será a nefrite, o mais precioso e difícil de trabalhar na lapidação e polimento devido à sua maior dureza.

Nos museus observamos que o jade aparece com uma grande quantidade de cores, do branco ao verde, com uma vasta gama de tonalidades – amarelo, vermelho, castanho e até mesmo preto –, mas o preferido para os chineses é o jade branco creme e os verdes, desde o esmeralda ao acinzentado.

Foi então que nos lembramos de uma história ocorrida no Período Primavera e Outono com um habitante do Reino de Chu. Nos finais do século VIII, Bian He ao passear por uma montanha encontrou uma pedra que pelo seu olhar perspicaz e entendido conseguiu perceber ser de uma alta qualidade de jade. Com a ânsia de poder demonstrar o seu orgulho de cidadão e os seus conhecimentos, apresentou-se na corte Chu oferecendo tão valioso achado ao Duque Li. Este, após escutar a opinião dos sábios entendidos em jade, mandou-lhe cortar uma perna pois tinha-o feito perder tempo com uma pedra absolutamente normal.

Quando Xiong Tong, o segundo filho de Xiao’ao, irmão do Duque Li, se declarou ele mesmo como primeiro Rei de Chu, com o nome de Wu, provavelmente entre 706 e 702 a.C., Bian He voltou a encher-se de coragem e sabendo ter ali uma preciosidade, orgulhosamente foi ter com o novo rei para o presentear com aquela pedra de imperador. Tal como acontecera com o anterior chefe dos Chu, o Rei Wu, após escutar os peritos, mandou que lhe cortassem a outra perna pelo desplante de Bian He em se apresentar na corte com tão reles dádiva.

Os anos foram correndo e Bian He lastimava-se ainda pela sua pouca sorte. Foi numa dessas vezes de pleno desespero que o novo Rei Wen (689-677 a.C.) o encontrou a chorar. Perguntando-lhe o que acontecera, escutou toda a história e percebendo a dedicação ao reino da pessoa que tinha à sua frente, mandou um dos seus guardas cortar a pedra. Qual o espanto ao ver o precioso jade que continha e por isso, reconhecendo a honestidade e o sacrifício de Bian He, deu à pedra o nome de jade He.

Voltando a Si Hui, não soubemos por quanto foi vendida aquela meia dúzia de pedras de médio porte que necessitaram de dois homens para levantar cada uma. Mal ali chegaram despertaram a cobiça dos presentes. Após as observarem com muita atenção, tocando-as e retirando pequenos grãos da superfície das pedras, discutiram entre si o preço a pagar. Pelo exterior, nada indica haver na pedra algo parecido com o jade e só pessoas muito entendidas se aventuram a pagar fortunas por um calhau e mesmo essas, enganam-se. O negócio é de muitos milhares de yuans e se por vezes se perde, noutras fica-se milionário.

 

2 Pequim Qianlong Museu Palácio

 

Símbolo da civilização chinesa

Polido e trabalhado há milhares de anos pelos chineses, o jade foi considerado uma pedra auspiciosa e usado como amuleto, ferramenta e pedra medicinal, estando associado à profilaxia das doenças renais e daí o nome nefrite. Assim, os objectos de jade dividem-se entre os ligados às cerimónias rituais (de sacrifício e funerário), aos ornamentais e aos funcionais.

O período da passagem do Paleolítico para o Neolítico na China ficou conhecido como Idade do Jade, por ser esta pedra preciosa utilizada como objecto representativo do poder supremo, pois através dela se comunicava com os deuses e espíritos no Céu e com os humanos na Terra.

O Livro dos Ritos da dinastia Zhou na secção sobre o jade (Zhou Li Chunguan Dazongbo) refere ser esta pedra usada na produção dos seis objectos para os rituais praticados em reverência ao Céu, à Terra e às quatro direcções. Assim o bi, cuja cor cang, que se refere tanto ao verde-escuro como ao azul, servia para homenagear o Céu e o cong, amarelo, era usado para o culto da Terra. Com o gui, verde, venerava-se a direcção do Leste, com o zhang, vermelho, o Sul, com o hu, branco, o Oeste, e com o huang, preto, a direcção Norte.

O imperador tinha um ceptro de jade como prova do seu mandato pelo Céu, um selo de jade com que carimbava as ordens imperiais e os ornamentos de jade eram utilizados pela corte, indicando a categoria a que pertencia quem os usava.

O disco furado de jade (bi) representa o Céu e foi encontrado em muitas sepulturas neolíticas. Acreditava-se que o jade protegia o corpo depois da morte e assim se fizeram fatos de jade, para além de se tapar todos os orifícios do corpo do morto com a pedra, pois era o símbolo da ressurreição e longevidade. Exemplo disso foi o imperador Zhou, o último da dinastia Shang que, após perder a guerra com Wu (daí tornou-se o primeiro rei da dinastia Zhou), preferiu imolar-se a ser prisioneiro. Assim vestiu-se com jade, acreditando perpetuar-se para a eternidade.

Datada do tempo do Homem das Cavernas, há 10 mil anos, foi encontrada uma pedra esculpida de jade em forma de colar. De pedra ornamental, não só de adorno como de expressão na realização ao nível da virtude, para objectos de uso quotidiano, com jade se produziram machados e punhais para uso agrícola e para a caça. É pelo trabalho dos objectos de jade que se pode avaliar os avanços e recuos da evolução da sociedade chinesa. Em meados do Neolítico, a manufactura atingiu um elevado grau de maturidade, havendo dois grandes pólos de produção de jade: a Nordeste a cultura Hongshan (4700-2900 a.C.) e no Sudeste, a cultura Liangzhu (3300-2200 a.C.). Com a chegada da cultura Longshan (2500-2000 a.C.) à bacia do Rio Amarelo, os objectos de jade passaram a ser sobretudo para uso dos rituais, tendo decaído de qualidade. Já nas culturas estabelecidas ao longo do Rio Yangtzé, a produção virou-se para uma figuração animal.

Com o início das dinastias chinesas, um novo ciclo começou. Na dinastia Xia (2070-1600 a.C.), o uso de jade estava virado para utensílios militares e rituais e assim continuou até meio do período da dinastia Shang (1600-1046 a.C.), quando, aproximadamente em 1300 a.C., fizeram a mudança da sua capital. Em Yin, actual Anyang na Província de Henan, a par de um grande desenvolvimento dos trabalhos em bronze, também o jade alcançou um novo patamar, num período em que os objectos de jade apareceram por todo o Norte e Centro da China.

O conhecido por Caminho do Oeste da Seda começou por ser o do jade. Uma das primeiras viagens terrestres para o Ocidente foi feita pelo Rei Mu (976-922 a.C.), com a finalidade de ir a Hotan, onde se encontra um dos principais filões de pedra de jade branco, considerado o mais puro e o melhor que existe na China. Expedição relatada na Bibliografia do Rei Mu, o Filho do Céu sobre a passagem pela bacia de Tarim do quinto rei da dinastia Zhou do Oeste, onde em Hotan (actual Khotan, na Província de Xinjiang) carregou com muito jade três das suas carruagens puxadas por oito cavalos. Depois, o Rei Mu continuando para Ocidente, chegou junto ao Rio Amu Dária, onde deu uma magnífica festa e pelas estepes do Norte regressou ao reino. Este é o relato de uma das primeiras viagens chinesas para Oeste.

 

5 Si Hui Trab jade 2

 

O bi de jade

Uma história do período dos Reinos Combatentes (475 a 221 a.C.) e registada mais tarde por Sima Qian (145 a.C.) conta que o Reino de Zhao tinha um bi de jade deslumbrante, uma verdadeira jóia sem preço. O Rei de Qin, Zhaoxiang, sabendo da existência do disco, no ano 283 a.C. ofereceu ao de Zhao em troca 15 cidades. O Duque de Zhao, Huiwen (299-266 a.C.), sem poder confiar no de Qin, temia que se entregasse o bi não receberia depois as cidades, mas se não o fizesse, seria invadido e conquistado devido ao poderoso exército desse reino. Assim, como não podia recusar tal pedido, resolveu enviar o objecto por um dos seus homens de confiança, Lin Xiangru, diplomata muito inteligente e íntegro.

Este, ao passar para as mãos do Rei de Qin o disco para ser examinado, apercebeu-se que ele não fazia intenção de entregar as 15 cidades da troca. Usando de argúcia, o enviado revelou ter o disco um pequeno defeito e quando o Rei lhe passou o bi, rapidamente se preparou para o destruir. Aterrorizado ao ver que ia perder o invulgar objecto, logo mandou que trouxessem o mapa do seu reino e apontou as 15 cidades. Mas o enviado Zhao replicou que a troca deveria ser realizada durante uma grande cerimónia e que esta só deveria acontecer passado cinco dias. Enquanto isso, o Rei deveria jejuar, tal como fizera o Duque de Zhao antes de se separar da sua preciosidade. O Rei concordou e retirou-se. Nessa mesma noite o enviado ordenou a um dos seus homens que levasse às escondidas o bi de volta para o reino de Zhao. Quando após cinco dias, durante a realização da cerimónia, o Rei de Qin se preparava para receber o disco de jade de Lin, mas este acusou o governo Qin de nunca respeitar a palavra que dava e por isso, com receio, tinha enviado de volta o disco de jade. Se Zhaoxiang o quisesse, teria de mandar um emissário ao reino de Zhao e se entregasse as 15 cidades prometidas, seguramente o Duque não se negaria a entregar o disco. Avisou que não temia pela sua vida caso o Rei o quisesse castigar. Zhaoxiang, percebendo a inutilidade de matar Lin Xiangru, permitiu a sua partida para o Reino de Zhao, onde foi recebido como um herói e promovido a primeiro-ministro.

O He Shi Bi foi mais tarde retirado ao último Duque de Zhao pelo Rei de Qin, Yin Zheng, após conquistar o Reino de Zhao. O disco foi transformado em selo imperial quando o rei se tornou o primeiro Imperador Qin e depois foi passando por outras mãos, perdendo-se-lhe o rasto entre as dinastias Tang e Ming.

Com o dia a despontar, mesmo dentro do mercado de Jade em Si Hui (四会), a maioria das pessoas começa a abandonar o local. Terminada a escuridão da noite, parece ter ficado revelado o valor escondido no interior de cada pedra. Dentro do pavilhão restam apenas abertos os balcões de venda de objectos ornamentais feitos em jade. Já na rua encontramos um outro negócio, este familiar, onde se procede ao trabalho nos fragmentos de pedra de jade, provenientes das sobras das grandes peças, ou das pedras de qualidade inferior. Não é apenas em pequenas lojas ao redor do mercado que se faz uso das máquinas eléctricas para o trabalho de transformar a pedra bruta de jade em objectos ornamentais. Por toda a vila se escuta o barulho da rotação dos esmeril eléctricos a cortar, a gravar e a polir.

Em todos os mercados de jade que visitámos pela China apenas se vendia a pedra já transformada em objecto de arte, umas de trabalhos recentes e outras pertencentes às antiguidades. Quando em 1994 viajámos por Xinjiang, o jade branco, cuja cristalização vista em transparência contra a luz era perfeita e uniforme, comprava-se por uma bagatela. Anos passaram e o seu valor tem vindo exponencialmente a aumentar. Apesar do preço actual não estar ao alcance de todos, não há chinês que não traga consigo um objecto feito com essa preciosa pedra. O fascínio do jade advém de um brilho discreto e translúcido, num reflexo de virtude que nenhuma outra pedra parece conseguir transmitir.

 

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A vila do jade

Subindo o rio Xi (Oeste) encontra-se a vila de Si Hui, que conta com uma história de 2200 anos. Construída durante a dinastia Qin, a povoação tem actualmente mais de 400 mil habitantes e está situada na borda Oeste da Província de Guangdong, pertence ao distrito de Zhaoqing. Além das suas famosas tangerinas que durante o mês de Dezembro e Janeiro adoçam as bocas de quem as prova, há ainda para visitar dois templos antigos. Um taoista e outro ligado a Hui Neng, o sexto Patriarca do Budismo Zen, que aí passou 15 anos.

 

3 Mercado de Rua Jade