Festival do Dragão Embriagado (醉龍節)

O Festival do Dragão Embriagado, ou de Tchoi Long, tem lugar no 8.º dia da 4.ª Lua (coincidindo este ano com o dia 14 de Maio). Hoje apenas celebrado em Macau, o evento com origem em Sek Kei, no antigo distrito de Xiangshan, Província de Guangdong, foi trazido pelos seus naturais que, migrando para Macau, com eles transportaram a tradição. O Dragão Embriagado está inscrito desde 2011 como Património Cultural Imaterial Nacional

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Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Coincidindo no tempo com as comemorações do nascimento de Buda, e a festa de Tam Kung que se realiza em Coloane, os festejos do Dragão Embriagado são organizados pela Associação dos Comerciantes de Peixe Fresco de Macau, que viu a sua proposta de candidatura da Dança do Dragão Embriagado a património intangível ser aceite por Macau, tendo em seguida sido integrada na lista do Património Cultural Imaterial Nacional.

O Tchoi Long é tempo de descanso para todos os vendedores de peixe fresco, estando as bancadas nos mercados locais lavadas e vazias até ao quarto dia a seguir ao festival, altura em que o peixe fresco volta aos mercados. Todos os vendedores comemoram este dia em honra de um ano próspero para o seu negócio, o que passa também pela ausência de tempestades no mar, ou epidemias que prejudiquem todos os que estão envolvidos com a actividade piscatória: vendedores, pescadores, carregadores, revendedores, armazenistas, e por que não os fregueses? É que sem haver quem compre, não há quem consiga vender…

O Festival caracteriza-se por três grandes linhas de força: a corporativa, porque organizado por um sector profissional tornando-se num dos fundamentos da coesão do grupo; a lúdica, pela dança e o envolvente e vibrante espectáculo que o rodeia e é partilhado por todos; e a solidária, pela partilha do já célebre “arroz da longevidade”, também conhecido pelo “arroz abençoado”, distribuído à população de Macau.

 

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O mítico dragão

A importância do dragão (龍,龙) na história e na cultura da China é enorme. Presente no mito da criação de Pan Ku, é referenciado como um dos quatro animais míticos que o ajudaram na criação do mundo. Força, virtude e honestidade é o que ele representa para o Confucionismo. Símbolo do poder imperial desde a Dinastia Han, os próprios imperadores eram tidos como uma incarnação do dragão.

Atesta ainda a sua importância o facto de ser o único animal não real que integra o zodíaco chinês. Na China, o mítico dragão concentra em si inúmeras facetas, contudo transporta sempre a ideia de bom augúrio. O Dragão é inseparável da água e representa a fertilidade. Na Primavera, traz dos céus as chuvas, proporcionando boas colheitas; no Outono mergulha nas águas, recolhendo-as para que as terras possam receber a semente.

Com a água, ou da água, vivem aqueles que em Macau o veneram com mais intensidade, os pescadores e os comerciantes de pescado. Os primeiros celebram-no no seu próprio meio, a água, na festividade do Barco-Dragão. Os comerciantes fazem-no em terra na celebração do Dragão Embriagado.

 

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Dança do Dragão Embriagado

Apesar de algumas tentativas de reanimação, a tradição da dança do Dragão Embriagado perdeu-se na terra de origem, só persistindo em Macau. Vedada às mulheres, são os jovens rapazes pertencentes ao clã a quem é passado o testemunho e o conhecimento da arte da dança traduzida em passos e gestos rituais.

A aprendizagem dos jovens para a Dança do Dragão tem uma forte componente iniciática, envolvendo um claro secretismo, sendo conduzida pelos dançarinos mais velhos. Até os ensaios para o Festival se realizam à porta fechada, e parece não ser fácil o treino intensivo a que os aprendizes têm que se submeter para serem aceites no grupo.

 

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Arroz da longevidade: a mão feminina

A comida para centenas, senão milhares de pessoas, começa a ser preparada com dois dias de antecedência, quando dezenas de baldes repletos de produtos começam a chegar à improvisada cozinha montada no local para o efeito. Às primeiras horas da madrugada do dia do Festival, inicia-se a preparação do “arroz da longevidade”.

Ao ritmo das pancadas de cutelo, cortam-se em finas tiras variadíssimos vegetais e diversos tipos de algas, com destaque para as brancas e para as castanhas-escuras, com uma forma peculiar que deu origem à designação local de “orelhas de rato”. Segue-se a confecção comandada por mãos hábeis em volta de gigantescos woks. É na preparação desta ementa que entra a intervenção feminina, arredada que está da dança por ser exclusiva dos homens. A mulher deve estar afastada do dragão, tradição que aqui se mantém, contrariamente ao que acontece na festividade do barco-dragão, onde as equipas femininas são hoje uma presença constante.

Embora muitas jovens acompanhem o desfile demonstrando as sua aptidões em artes marciais, tal pertence ao lúdico do desfile não estando directamente ligada a qualquer função inerente ao Dragão Embriagado.

As diferenças com o passado, assim como o tipo de arroz que se serve em São Domingos ou no Mercado Vermelho são de registar. As nossas “cozinheiras informantes” são unânimes quanto ao facto de hoje imperar uma maior variedade quando, antigamente, apenas um ou dois tipos de comida era ofertada, resumindo-se então ao prato vegetariano e de uma só qualidade, tal como ainda hoje acontece no arroz distribuído no Mercado Vermelho. A diferença é explicada pelo facto de em São Domingos, a organização “receber muitas ofertas de carne assada” circunstância que leva à confecção de uma variedade maior de pratos mistos.

Procuram o “arroz abençoado” pobres e ricos, velhos e novos. A saúde não faltará a quem o comer. As crianças comendo-o crescerão saudáveis e rapidamente. Por isso, recolhido nas longas filas de distribuição, o arroz é levado para a casa de cada um, e dividido pela família.

 

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Um dragão feito de cabeças e caudas

Ainda a dança não começou, e já os dançarinos que integram a Dança do Dragão Embriagado estão ébrios, ou quase. Pelas ruas de Macau, mais propriamente por um largo périplo que se inicia frente ao Templo de Kuan Tai, seguindo pela Rua do Tarrafeiro, Templo de Hong Kung, Rua das Estalagens e Iao Hon, até A-Má, grupos de dançarinos executam uma dança aparentemente desordenada e descompassada, transportando pesadas cabeças e caudas de dragão , bebendo enormes quantidades de álcool. Tudo isto é acompanhado, claro, pelo som dos tambores e dos gongos que os seguem. É um dragão sem corpo. O corpo imagina-se entre inúmeras cabeças e caudas que vagueiam pelos ares. Claro que há uma lenda, com variadas versões como é normal, para esta ausência do corpo do mítico animal, que se crê ter também origem bem perto de Macau em Sek Kei.

 

De Kuan Tai a A-Má

No dia assinalado, no largo em frente ao templo de Kuan Tai nas traseiras do mercado de São Domingos, inicia-se a festividade do Dragão Embriagado. Ali mesmo um monge taoista celebra um ofício abençoando as cabeças e as caudas dos dragões. Aos dançarinos a fita vermelha, que então é atada à cabeça e braços, dar-lhes-á força e perseverança para a sua tarefa.

Queimam-se oferendas e “dinheiro do além” para satisfazer deuses e acalmar espíritos. Os leitões assados são purificados pelos dragões abençoados.

Ao lado, no Largo do Senado, têm lugar outros rituais taoistas. Os leões, companheiros dos dragões no longo passeio que se aproxima, são, então, vivificados. No seu corpo inerte, nasce uma alma.

Frente ao templo realiza-se a primeira dança do Dragão Embriagado, seguindo-se a exibição dos dotes dos praticantes de artes marciais. Inicia-se então o desfile dos agitados dançarinos e músicos até ao Porto Interior. Deslocando-se em camionetas de caixa aberta, os dançarinos e companheiros da dança do leão fazem-se anunciar pelo ruído constante, com panchões e o ritmo incessante dos tamborileiros. Saltam do transporte em cada paragem e a dança continua. Agitam-se pelos ares as cabeças e as caudas dos dragões debaixo de uma chuva de álcool. Dança também o leão, comendo a alface e ficando com o lai-si.

A primeira paragem, embora breve, é no Largo de São Domingos. Aí, os leões agitados “batem-cabeça” frente ao portal da igreja o desfile segue o seu caminho e próximas paragens que, para além de templos, também incluem estabelecimentos comerciais ligados à actividade da venda de pescado.

E vai sendo assim ao longo do percurso, sempre que o desfile passa à porta dos estabelecimentos que se dedicam ao comércio de peixe. Renovam-se os votos de prosperidade para o negócio. Come-se o arroz da longevidade. No ar flutuam cabeças e caudas de dragão. Com paragens rituais, a dança continua a percorrer a ruas de Macau. Os dragões, com um ritmo cada vez mais agitado, reflectem os efeitos do álcool. O arroz da longevidade é agora distribuído no Mercado Vermelho.

A romaria prolonga-se durante quase todo o dia. Depois do Porto Interior, abençoados os seus ‘lanes’ de peixe – como aqui se chamam as lojas de venda de pescado –, é a vez de se percorrerem todos os mercados de Macau, onde as cerimónias se repetem, voltando depois ao templo de onde partiu

O desfile termina no templo de A-Má, deusa protectora das gentes do mar. A ela e a todas as outras divindades se pediu protecção para mais um ano.

 

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A festa em Macau ao longo dos tempos

Em Macau, o Festival do Dragão Embriagado nem sempre foi como o conhecemos hoje. As alterações económicas e sociais levaram a lentas adaptações. Os mais velhos ainda se recordam da escassez de meios nos tempos em que tudo o que envolvia o festival estava dependente dos recursos da Associação e dos seus sócios e amigos contribuintes, num tempo em que ainda não havia subsídios. Estes só começaram a surgir há cerca de 20 anos e têm vindo a crescer e a suportar a organização da festa até hoje, que é já uma atracção turística.

A inclusão do Dragão Embriagado na lista do Património Imaterial da China veio dar ainda maior fôlego ao evento que se vem tornando numa cada vez maior atracção turística e aumenta a curiosidade e a adesão a esta tradição, por parte de residentes e estrangeiros.

Longe vão os tempos em que as actividades festivas se realizavam à noite, sendo o dia, com maior ou menor participação, dedicado ao desfile de crianças pelas ruas da cidade. Os mais pequenos, maquilhados a rigor e vestindo trajes tradicionais, carregavam bouquets de flores aos ombros e passeavam coloridas representações da fauna marítima construídas em seda ou papel. Este desfile terá deixado de se realizar a partir dos anos 60 do século passado. Actualmente, os festejos envolvem cerca de 600 pessoas, entre membros e dirigentes da Associação, seus familiares e amigos.

 

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A lenda do Dragão Embriagado

Existem diversas versões da lenda que terá dado origem à Dança do Dragão Embriagado. Uns falam de um bêbado que matou uma enorme serpente e que, depois, a terá lançado ao rio. O rio ficou vermelho de sangue e quem dessa água bebesse, de tudo ficaria curado. Ligeiramente diferente é a versão que impera entre os vendedores de peixe de Macau, e que aqui recontamos.

Em tempos que a memória não alcança grassava devastadora epidemia pela cidade e termo de Zhongshan, provocando a morte a muitos habitantes. O recurso aos entendidos de então e seus remédios mostraram-se ineficazes. Acontece que nesse tempo um cortador de lenha, ao passar junto de um rio, deparou-se com uma enorme cobra e, para se defender, acabou por matá-la com diversas machadadas reduzindo-a a pedaços.

Os passantes paravam para observar o sucedido. Ao mesmo tempo que se iam juntando ao lenhador, para comemorar o feito, iam partilhando entre todos o vinho que alguns transportavam consigo. Aconteceu que, à medida que os efeitos do álcool iam toldando as cabeças, alguns deles pegando nos pedaços do réptil, terão iniciado uma estranha dança. É então que os pedaços separados do animal levitam até aos céus transformando-se num dragão.

Perante o estranho fenómeno interrogaram-se se não estariam a receber uma mensagem divina. Olhando em redor, outra maravilha acontecia perante os seus olhos. As plantas que tinham ficado salpicadas com o sangue da serpente estavam agora diferentes, com um viço nunca anteriormente visto. Seriam estas plantas um medicamento para a cura da peste? Os doentes correram para elas, ingeriram-nas e ficaram de imediato saudáveis.

Toda a população acorreu ao local escapando a um fim esperado. Zhongshan via-se assim livre da epidemia. Perante a cura milagrosa, e como agradecimento, trataram de reconstruir um dragão com alguns pedaços de madeira. Tudo terá acontecido no oitavo dia da quarta lua, o dia do Banho do Buda. E assim terá sido o início das comemorações do dragão embriagado, com um cortejo onde os pedaços do dragão talhados em madeira se movimentavam pelos ares como que voando acompanhando a ébria dança, e tal como a lenda o conta.

Outras lendas variam em pormenores, mas o essencial é o poder curativo daquelas águas ensanguentadas. De referir que frequentemente se atribui à serpente muitos dos poderes do dragão, contudo não devemos esquecer que ele próprio se crê ter nascido de uma serpente da qual herdou um dos componentes do seu corpo, o pescoço. O dragão é um ser mítico composto por enxertos de pedaços de animais reais que para ele transferem alguns poderes. Para além da serpente, podemos acrescentar o camelo, visível pela sua cabeça, as patas de tigre, as garras de águia, os bigodes da carpa, os olhos do coelho e os chifres do veado.

 

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