Pratos com história

Em 1918, abria portas na Rua do Campo um pequeno restaurante que se gabava de ter pratos portugueses com o verdadeiro sabor de Portugal. Um século depois, a clientela mudou bastante, mas os sabores continuam quase iguais. A Vencedora, um dos restaurantes mais antigos da cidade, gaba-se agora de ter sido pioneiro a aproximar a cultura chinesa da portuguesa

 

Texto Vanessa Amaro e Sin Iok I | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e Acervo Pessoal d’A Vencedora

 

Lam Kuan era cozinheiro numa embarcação ao serviço da Marinha Portuguesa no início do século XX. Como grande parte da tripulação era portuguesa ou macaense, tinha de cozinhar ao gosto do ‘freguês’. Foi ali que aprendeu o que fazer com o bacalhau seco e salgado, ou a preparar as iscas temperadas com vinho e aceboladas que ainda hoje fazem parte da ementa de um dos primeiros restaurantes de comida portuguesa que Macau viu nascer, em 1918. Quando deixou o trabalho na embarcação, Lam Kuan viu na gastronomia portuguesa uma oportunidade de negócio. Investiu então as poupanças num pequeno espaço onde fazia cozinhados para fora e tentava que os poucos clientes que tinha passassem a palavra e o negócio prosperasse. Mas ter apenas um nome chinês no negócio, 坤記餐室, não estava a ajudar. E assim surgiu A Vencedora, baptizado em homenagem à embarcação com esse mesmo nome e a quem devia os novos dotes culinários. Não tardou para que os portugueses, a sua principal clientela de então, falassem d’A Vencedora e do cozinheiro Kuan.

No Anuário de Macau datado de 1921, A Vencedora já constava na lista de recomendações como uma loja que comercializava vinhos, azeite, conservas e chouriços, e que também servia refeições no seu espaço e aceitava “comensais de fora”. O espaço era pequenino – o número 26A da Rua do Campo –, não cabiam mais do que 30 pessoas sentadas e era preciso reforçar as contas a vender produtos portugueses acabados de chegar de longas viagens.

O fundador d’A Vencedora já não está cá para contar a história. Quem toma as rédeas agora do negócio são os seus três netos, depois de já terem sido os dois filhos os responsáveis pela consolidação deste restaurante, que em 1992 deixou o número 26 e mudou-se um espaço adquirido pela família a poucos metros da loja original.

Lam Kok Lon não se lembra bem quantos anos tinha quando começou a lavar pratos e a servir às mesas ali. Se calhar, diz, “esteve sempre ali” com o avô e o pai. Mas foi só em 1974, quando acabou o secundário, aos 18 anos, que passou a estar ali horas a fio e a se envolver em tudo. “Antes disso, dava só uma ajuda nas horas vagas, porque o meu pai dizia que a prioridade era os estudos.”

No início, a família toda estava mais envolvida com o negócio. Além do avô Lam, os dois filhos passaram a trabalhar ali. Mais tarde, foram os seis netos, mas hoje este é um negócio “para os velhotes”. “Eu não tenho filhos e os meus sobrinhos têm bons empregos e não têm grande interesse nisto. Neste momento, somos o meu irmão e eu, a minha cunhada e uma das minhas irmãs. Temos todos mais de 60 anos.”

Aqui tudo foi aprendido como parte de uma herança de família – desde a língua portuguesa à escolha dos ingredientes portugueses e os modos de prepará-los. Nunca houve cadernos nem bloquinhos de anotações. Está tudo na memória de Lam Kok Lon, que aprendeu tudo com o pai. Este, por sua vez, aprendeu com o seu pai, e o pai do pai de Lam Kok Lon aprendeu a ver e a seguir instruções dos portugueses na embarcação onde trabalhava. A ementa de pratos foi crescendo à medida que os clientes iam aprovando os sabores adaptados aos ingredientes mais à mão nos mercados de Macau. Na maior parte das vezes, os próprios clientes ajudavam o senhor Lam a confeccionar os pratos mais ao sabor original de Portugal. Há 20 anos que o menu é o mesmo e há três que os preços se mantêm inalterados. Hoje Lam Kok Lon, de 62 anos, já não tem a responsabilidade de cozinhar tal como o avô. Promoveu os seus assistentes a cozinheiros e apenas faz o controlo de qualidade. “Estas pessoas estão connosco há 30 anos, por isso estão mais do que habituados a cozinhar à nossa maneira.”

Eduardo Gracias, funcionário público na reforma, é um cliente habitual desde 1953. Já experimentou todos os pratos do menu e atesta que muito pouco foi alterado ao longo dos anos. Para quebrar a rotina, e por ser quase tão antigo como o restaurante (tem 86 anos), Gracias também tem direito a pratos personalizados. “Às vezes não me apetece nada do que eles têm na ementa e peço-lhes para fazer algo. Digo-lhes como quero e eles cozinham ao meu gosto”, conta.

Prato cheio, bolso vazio

Gregório Madureira, 83 anos, caminha para as seis décadas em Macau – e seis décadas passadas muitas vezes ali, à mesa. Foi dos primeiros restaurantes que lhe foi apresentado quando chegou à cidade como militar, em comissão de serviço nos idos anos de 1950. Os almoços eram por norma no quartel, mas o jantar era frequentemente feito nos poucos restaurantes portugueses e macaenses que havia na altura.

O Fat Siu Lau, outro centenário restaurante da cidade, era o grande concorrente d’A Vencedora, mas a clientela principal –  militares em comissão de serviço – abundavam naqueles anos. Na década de 1940, por exemplo, chegou a haver cerca de 800 soldados nos quartéis de Macau e os restaurantes que serviam pratos portugueses começaram a despontar nas zonas de maior afluência de pessoas. “Estavam sempre todos cheios. Se não havia mesa aqui ou ali, encontrava-se sempre algum com um lugarzinho”, recorda Madureira.

Gracias e Madureira lembram-se bem dos tempos em que A Vencedora funcionava como uma espécie de cantina dos militares. “Cerca de 90 por cento da clientela era portuguesa, à qual juntava-se uns quantos macaenses. Raramente se viam chineses. Era quase tudo militares que procuravam um ambiente descontraído e familiar”, aponta Madureira. Os dois amigos também se lembram bem daqueles que se foram embora e deixaram contas por pagar. “Nunca estivemos na lista”, dizem orgulhosos.

Lam Kok Lon disse que a família nunca somou as patacas que ficaram por cobrar e hoje já ninguém liga às dezenas de vales amarelados e desfeitos guardados numa caixa de madeira. Pedro, por exemplo, bebeu uma garrafa de cerveja no dia 11 de Julho de 1963, assinou o vale de 2,10 patacas, mas nunca regressou para quitar a dívida. O mesmo fez Domingues, no dia 18 de Outubro de 1968, que almoçou bem e não deixou uma única pataca na mesa. “Segundo o meu pai contava, os clientes diziam que pagavam no fim do mês, que assim só se faziam as contas uma só vez. Mas depois nunca mais cá punham os pés”, conta a rir-se. Daí veio o dizer que hoje já não faz sentido: “Português de Portugal come bem e paga mal”.

Ainda assim, Lam Kok Lon foi surpreendido – aliás, muito surpreendido – quando dois velhos clientes voltaram, mais de 40 anos depois, e insistiam em quitar a antiga dívida. “Explicaram que foram deslocados assim de repente e tiveram de ir embora sem ter tempo, nem cabeça, para acertar as contas.” Já ninguém se lembrava da dívida, “algo irrisório nos tempos que correm”, por isso os irmãos que hoje gerem o estabelecimento não quiseram aceitar o pagamento. Os ‘maus’ clientes pagaram então em géneros, oferecendo garrafas de vinho e de bagaço caseiro.

Tudo em família

Há 28 anos, Carlos Peixoto chegava a Macau e foi ali, numa mesa de canto ainda no antigo espaço d’A Vencedora, que teve o seu primeiro jantar. O empresário, de 52 anos, não ficou desiludido com o que comeu e desde então fez-se cliente fiel. Tornou-se amigo da família e até pede-lhes ajuda quando precisa de resolver questões mais complicadas em língua chinesa. Gosta de prolongar os almoços a conversar com “os mais antigos”, que “têm sempre grandes histórias de Macau”.

O ambiente continua basicamente igual àquele que Peixoto encontrou há 28 anos. “A modéstia, a boa conversa e o convívio continuam os mesmos. Sobretudo, sentimo-nos em família aqui.” Por isso mesmo até chega a levar os seus cozinhados, como uma feijoada portuguesa, para comer com todos os empregados à mesa. Também para Gracias, que chega a almoçar e a jantar ali no mesmo dia, ainda mais do que a comida, o ambiente familiar é o que mais lhe puxa. Gosta de sentar-se à mesa e ficar à conversa sem olhar para as horas. “Grandes conversas já tive aqui. É um espaço muito familiar, de muito convívio”, diz o macaense de 86 anos.

Os irmãos Lam não se queixam do negócio, que, dizem, nunca lhes falhou. Nunca sentiram grande concorrência de outros estabelecimentos de comida portuguesa que foram abrindo ao longo do tempo. Mas recordam os tempos áureos da casa sempre a abarrotar, entre 1985 e 1999. “Acho que foi a altura em que houve mais portugueses em Macau. Tínhamos a casa sempre cheia e recusávamos muitas reservas.” Hoje os jovens portugueses já não visitam tanto este local. “Temos muitos portugueses velhos residentes; estão sempre cá, dia sim dia sim. Os mais novos de vez em quando aparecem, mas não voltam com frequência.”

A Vencedora também aparece nos livros de viagens classificado como um restaurante pitoresco e tradicionalmente português. Por isso, avistam-se muitos clientes de outras paragens, com os visitantes de Hong Kong, do Japão e da Malásia a ocuparem muitas mesas com regularidade. O bacalhau cozido com grão (MOP 130), as iscas de vaca (MOP 80) e o bitoque (MOP 75) formam o trio de pratos com maior saída.

O dia dos irmãos começa às 8h00, com uma visita ao mercado da Horta da Mitra, de onde sai grande parte dos ingredientes que são usados nas refeições do dia. A base para os pratos portugueses, como o azeite e o chouriço, nunca falha. “O nosso fornecedor é tão antigo como o restaurante e já sabe bem o que precisamos”, refere Lam. Nas prateleiras, só há vinhos portugueses. “Temos de tudo, alguns baratos e outros mais caros; tudo ao gosto do cliente.”

Quinze pessoas trabalham ali diariamente, cinco deles são locais e fazem parte da mobília da casa há mais de 30 anos. Essa é também uma das razões pelas quais os irmãos Lam afastam a hipótese de reforma. “Temos estes empregados super leais, que gostam de cá estar. Temos de dar o exemplo e continuar com eles.”

Só há uma falha a corrigir, já apontada por dezenas de clientes: a sobremesa. Lam disse que já arriscaram fazer arroz doce, mas que nunca apanharam o jeito. Por isso, cliente que reclama da falta de açúcar no fim da refeição “leva com um licor de amêndoa amarga e sai feliz”.